segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

A Carta do Patriarca

1. Por mais surpreendente que possa parecer somente hoje é que tive acesso, na sua inteireza, à carta do Cardeal-Patriarca de Lisboa, datada de 21 de Dezembro de 2009, dirigida aos Párocos e às comunidades cristãs (católicas) da Diocese de Lisboa.

Nela o Senhor Patriarca começa por mostrar a sua indignação contra as insinuações graves que um jornal diário da capital fez ao sugerir que teria havido um “pacto” subentendendo uma certa condescendência da Igreja para com o projecto-lei sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Mais adiante desmente que tenha havido qualquer “pacto” ou “compromisso” que “ … significasse, ainda que indirectamente, o condicionamento da liberdade da Igreja de afirmar a sua doutrina acerca de qualquer problema da sociedade portuguesa.” Em seguida esclarece que o primeiro-ministro reconheceu o direito da Igreja anunciar a sua doutrina publicamente sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, através das suas intervenções pastorais. Avançando, entretanto, que “A Igreja reconhece a legitimidade legislativa do Estado, mas não deixará de interpelar a consciência dos decisores e de elucidar a consciência dos cristãos sobre a maneira de se comportarem acerca de leis que ferem gravemente a compreensão cristã do homem e da sociedade.” Depois, reafirma que a Hierarquia anunciará a sua “posição” quando entender oportuno pelos meios consentâneos com a sua missão. Logo acrescenta, no plural (majestático? Ou a quem mais se refere?), que “não consideramos consentâneas com a missão da Hierarquia formas públicas de pressão política que os cristãos, no exercício dos seus direitos de cidadania, são livres de promover ou de nelas participar.”.

Termina afirmando que a doutrina da Igreja é conhecida mas que importa explicitar os seus fundamentos, o que faz em cinco linhas… Conclui dizendo que se trata de salvaguardar a verdade acerca do casamento e da família e não de tomar posição sobre as pessoas homossexuais.

Pode ler a totalidade da carta em nota de rodapé.[1]

2. 1. Eu suponho que o jornal diário a que o Senhor Cardeal-Patriarca se refere na sua missiva é o i, pois foi o único, do meu conhecimento, que avançou com tal notícia, assinada por Ana Sá Lopes. Caso assim seja, verifico que o Senhor Patriarca não só não desmente a substância do que foi noticiado como parece confirmá-lo. De facto, o jornal noticiava a 17 de Dezembro: “O cardeal-patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, garantiu a José Sócrates que a decisão do governo não provocará nenhuma guerra santa, soube o i. A Igreja continuará a repetir a sua doutrina sobre o assunto mas não sairá à rua.” [2] (itálico meu). Esta frase é seguida, umas linhas adiante, por esta outra que lhe proporciona um contexto interpretativo: “O PS ficou sossegado com a gestão do dossier casamento gay a partir do momento que percebeu que não iria haver um combate na rua liderado pela hierarquia.”[3] Este sossego do partido socialista explica-se porque em “Em Espanha, o cardeal Rouco, bispo de Madrid, esteve na linha da frente anti-casamento gay e levou os católicos para a rua onde engrossaram as manifestações anti-casamento gay. Em Portugal, a aprovação da proposta de lei que institui o casamento entre pessoas do mesmo sexo não irá contar com o mesmo tipo de oposição da hierarquia católica.”[4]. Segundo a comunicação social esta posição da Hierarquia da Igreja teria sido decisiva na resolução do governo em avançar com o projecto-lei de legalização do “casamento” entre homossexuais.

2. 2. Ora na sua carta, referindo-se obviamente, para usar a expressão do jornal, ao “combate de rua” o Senhor Patriarca escreveu: “não consideramos consentâneas com a missão da Hierarquia formas públicas de pressão política que os cristãos, no exercício dos seus direitos de cidadania, são livres de promover ou de nelas participar.”

Aqui reparo, por diversas razões: a) Os nossos Bispos renunciaram porventura à sua cidadania? Não vão eles votar, procurando com isso não só cumprir o seu dever como dar exemplo aos católicos leigos para que também não o deixem de fazer?

b) Não foram Bispos que convocaram e lideraram, no Norte e por este país abaixo, manifestações multitudinárias que vieram a culminar na concentração na alameda D. Afonso Henriques (Fonte Luminosa) contra o gonçalvismo? Sem essas iniciativas nunca se teria dado esta e muito provavelmente teríamos permanecido muitos anos sob a égide comunista.

c) Não organizou o próprio Jesus Cristo, modelo de todo o Bispo, uma manifestação, por exemplo, com a entrada triunfal em Jerusalém?

d) Dar publicamente testemunho da verdade na caridade, saindo com o povo de Deus à rua, quando ambas perigam gravemente, é uma pressão política incongruente com a missão da Hierarquia?

e) São os Cardeais e Bispos que o fazem noutros países e nações inconsequentes com a sua missão?

2. 3. Escreve o Senhor Patriarca que “A Igreja reconhece a legitimidade legislativa do Estado … ”. Pelo contexto esta frase parece só poder significar que a Igreja reconhece, sem mais, a legitimidade absoluta do Estado para legislar seja o que for. A continuação da frase não contradiz esta afirmação categórica mas limita-se a chamar a atenção para as questões do esclarecimento das consciências e dos comportamentos por parte dos católicos. Se interpreto correctamente isto significaria que o Estado teria legitimidade para elaborar leis injustas. Sendo assim, teria inteira legitimidade para decretar o extermínio dos judeus, para elaborar “leis” racistas, para liberalizar o aborto e a eutanásia, para legalizar “casamentos” entre pessoas do mesmo sexo e todas as demais monstruosidades que lhe possam ocorrer. Mas isso seria um absurdo tamanho que repugna não só à consciência cristã mas a toda a consciência verdadeiramente humana. Que isto está em total contradição com a Tradição e doutrina da Igreja não é preciso demonstrá-lo, desde Santo Agostinho a São Tomás de Aquino, passando pelo Papa João XXIII até ao Papa Bento XVI todos ensinam exactamente o contrário do que se pode depreender dessa afirmação. Acresce que não é a primeira vez que as palavras do Senhor Patriarca, neste aspecto, parecem ser uma negação da verdade anunciada pela Igreja. Por que será? Será que o defeito está em mim? Não haverá alguém que me esclareça?

2. 4. Depois, afirma que a salvaguarda da verdade acerca do casamento e da família, nesta questão do “casamento” entre pessoas do mesmo sexo, nada tem a ver com a tomada de posição sobre as pessoas homossexuais. Como isto é possível é coisa que não entendo de todo. Pois se o que está em questão é precisamente a reivindicação por parte de pessoas homossexuais do “casamento” entre elas como é que isto nada tem a ver com elas, isto é, com a posição sobre elas, ou seja, com a verdade sobre elas? A mim parece-me extraordinário e mesmo impossível. Mas ficarei imensamente agradecido a quem me possa esclarecer.


Nuno Serras Pereira

11. 01. 2010


[1] Irmãos e Irmãs,

A propósito da aprovação pelo Governo do Projecto de Lei sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a apresentar à Assembleia da República, um jornal diário da capital noticiou em título que o Patriarca de Lisboa, num encontro com o Primeiro-Ministro, celebrou com ele um “pacto”, subentendendo nesse título uma certa condescendência da Igreja com o referido Projecto-Lei. Dada a gravidade da insinuação que deixou perplexos muitos católicos, dirijo-vos esta carta para esclarecer o que realmente se passou.

1. O Patriarca de Lisboa encontrou-se, de facto, com o Senhor Primeiro-Ministro, a pedido deste, no dia 20 de Outubro. Ficou assente entre ambos que não haveria declarações para o público sobre os assuntos nele abordados. O Patriarca de Lisboa foi fiel a este compromisso de discrição. Consideramos perfeitamente normal que, apesar do ordenamento constitucional de separação da Igreja e do Estado, que não exclui o princípio da cooperação confirmado na Concordata, haja momentos de diálogo entre os Órgãos de Soberania e a Hierarquia da Igreja. Esses encontros são, por natureza discretos, dada a consciência mútua de que a Hierarquia da Igreja não quer imiscuir-se na esfera política e na área de competência do Estado e dos seus Órgãos de Soberania.

2. O encontro noticiado, o primeiro entre o actual Primeiro-Ministro e o Patriarca de Lisboa, foi uma troca de impressões sobre diversos aspectos da nossa sociedade actual, da qual a Igreja faz parte enquanto comunidade particularmente significativa. Acerca de nenhum dos pontos abordados nesse encontro, houve “pactos” ou “compromissos”. Ambos os interlocutores estavam conscientes da especificidade das instituições que representavam. Nem o Senhor Primeiro-Ministro sugeriu nenhum “pacto”, nem o Patriarca de Lisboa podia assumir qualquer compromisso que significasse, ainda que indirectamente, o condicionamento da liberdade da Igreja de afirmar a sua doutrina acerca de qualquer problema da sociedade portuguesa.

3. O assunto referido pela comunicação social, a possível legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, foi realmente abordado. Mereceu um intercâmbio de perspectivas sereno e franco. O Senhor Primeiro-Ministro afirmou a sua determinação em avançar com o Projecto, o Patriarca de Lisboa reafirmou a posição da Igreja e a disposição de a afirmar publicamente quando achasse oportuno e pelos meios próprios da sua intervenção pastoral, direito da Igreja que o Senhor Primeiro-Ministro claramente reconheceu.

4. A Hierarquia da Igreja mantém, assim, toda a liberdade de anunciar a sua doutrina acerca desta questão e fá-lo-á quando achar oportuno e pelos meios consentâneos com a sua missão. A Igreja reconhece a legitimidade legislativa do Estado, mas não deixará de interpelar a consciência dos decisores e de elucidar a consciência dos cristãos sobre a maneira de se comportarem acerca de leis que ferem gravemente a compreensão cristã do homem e da sociedade.

A Hierarquia da Igreja usará os meios e os modos consentâneos com a sua missão: proclamação da sua doutrina e o diálogo com pessoas e instituições para o qual está sempre disponível. Não consideramos consentâneas com a missão da Hierarquia formas públicas de pressão política que os cristãos, no exercício dos seus direitos de cidadania, são livres de promover ou de nelas participar.

5. A doutrina da Igreja acerca do casamento entre pessoas do mesmo sexo é conhecida. Nesta circunstância concreta, é, certamente, ocasião de explicitar claramente os seus fundamentos. Está em questão uma alteração grave da compreensão antropológica do casamento, da sua dimensão institucional baseada num acordo celebrado entre um homem e uma mulher, constituindo, assim, uma família, célula base da sociedade. Esta concepção do casamento e da família está, desde sempre, expressa em todas as culturas, porque radica num elemento basilar da verdade da natureza.

Não se trata, nesta circunstância, de tomar posição sobre as pessoas homossexuais; a doutrina da Igreja, marcada pela verdade e pela caridade, está claramente expressa. Trata-se, isso sim, de salvaguardar a verdade acerca do casamento e da família.

A Encarnação do Verbo de Deus, que estamos a celebrar no Natal, exige de nós a firmeza da verdade e a bondade da caridade.

Desejo a todos um Santo Natal.

Lisboa, 21 de Dezembro de 2009

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

[3] Idem

[4] Idem