segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O Venerável Ancião das Sabedorias Primordiais


Quando entrei para o Seminário da Luz, a um mês de fazer 25 anos, desafiava-me regularmente, após o jantar, a jogar xadrez com ele na sala da comunidade. Os olhos sempre a sorrir e grandes exclamações bem-dispostas acompanhavam habitualmente esse exercício de pensamento. Quando não ia a pé para a UCP e acompanhava os restantes na carrinha da casa via-o sempre a ler, durante o percurso, quase sempre, as obras de Santo Agostinho, soltando de quando em vez a palavra genial!

Foi meu professor, primeiro, de Ontologia, depois de Teologia Filosófica Tive dificuldades com a sua sebenta da primeira cadeira – era densa, árida, numa linguagem exigente, alheia ao linguajar normal. Mas era essencial. Li-a repetidamente e o que não entendia nas primeiras leituras vim a compreender nas sucessivas. Não deixei, no entanto, porque com ele estávamos sempre à vontade, de o remoquear dizendo-lhe que tinha sido a cadeira mais penitencial que alguma vez tinha tido. Não se atrapalhou e logo perguntou, retoricamente, se tinha gostado de cerveja da primeira vez que a provei para logo concluir: agora gostas, não é verdade? Percebendo onde queria chegar e reconhecendo que tinha razão respondi que sim. Porém não tive coragem de lhe confessar que a primeira vez que me deram a beber cerveja foi a caminho de um acampamento, no Algarve, organizado pelo Colégio S. João de Brito, tinha eu então 11 anos. Numa das paragens, os mais velhos apanharam o Padre desprevenido e mandaram vir uma caneca para mim. Estranhei o sabor mas não poderei assegurar que não gostei. Triste e desarranjado traste este que sempre fui…

Com a disciplina de Teologia Filosófica fiquei maravilhado e devorei a sua sebenta com grande gosto. Como é que a mesma pessoa pôde escrever dois textos tão diversos e distantes entre si no estilo só se explica pela versatilidade do seu autor.

Quando o ia consultar à sua cela ficava sempre fascinado. Olhando para a sua secretária não o via a ele mas somente a uma luz que dali irradiava e ouvia uma voz cordial que se sobreerguia num crescente de alegria. Os livros empilhados eram como uma espessa floresta misteriosa que o abrigava. Depois, as estantes que cobriam todas as paredes, alçando-se pelo alto pé direito até ao tecto, eram montanhas e cumes de erudição e sabedoria. O seu leito afundava-se cercado de grande tomos amontoados que lhe serviam de consolo nas longas noites escuras. Para chegar perto da sua mesa de trabalho tínhamos de caminhar com mil cuidados, como numa gincana, para não embater nas pilhas entremeadas no soalho apinhoado. Contígua à sua cela, uma outra de igual extensão, mas sem os estorvos da habitação, acumulava em sólidas estantes outra imensidade de volumes para sua consulta habitual. Pegando ao acaso em variadíssimos livros, verificava que estavam sublinhados, com notas, cheios de papelinhos cortados a assinalar uma multidão de páginas. Deus do Céu, perguntava a mim mesmo, como é possível ter tanta informação naquela cabeça.

Nas homilias e nas conferências, creio que por timidez, assumia um ar e uma voz demasiado formais, algo artificiais. Tudo o que dizia tinha o maior rigor, não se permitia fantasias nem “liberdades de pregador”. Mas era quando o apanhávamos desprevenido que a sua chispa, a sua verve vinham à superfície. Por isso, com frequência, depois das refeições, quando descontraidamente caminhávamos pela mata do convento, lhe colocava dúvidas ou contrapunha argumentos só para o ouvir discorrer sobre filosofia e teologia. Então era brilhante, sentindo-se à vontade e sem uma plateia à frente tinha tiradas geniais, frases lapidares, respostas surpreendentes, argumentações admiráveis, ensinamentos excelsos. Era uma aliança viva entre a Fé e a razão.

Muitas vezes insisti com ele que quando se retirasse do ensino deveria completar a sua vasta obra de artigos com algum livro que fosse a síntese do seu pensamento ou um guia para os textos que deixava. Mas via-o reticente e por isso comecei a insistir que publicasse então em livro os seus artigos dispersos pelas várias revistas e enciclopédias. Pedi inclusive a outros confrades que instassem com ele nesse sentido e, seguramente, que muitas outras pessoas lhe terão sugerido o mesmo. Foi, pois, com enorme alegria que quando voltei para este convento ele me ofereceu os dois volumes da sua obra, intitulada O Ser e os seres.

O seu olhar bondoso procurava atentar sempre no melhor como que “ignorando” tudo o mais. Estou persuadido de que se deparasse com uma ratazana em putrefacção só veria a brancura dos seus dentes! Era assim, mesmo para com filósofos que trouxeram grandes males à humanidade. Procurava o que de bom e verdadeiro neles havia, mesmo que fosse muito pouco, e salientava-o. Não é que fosse destituído de espírito crítico, pelo contrário, a sua grande sensibilidade e a sua inteligência arguta detectavam com grande lucidez e desgosto as insuficiências, limites e perversões das doutrinas malsãs, mas a sua cortesia e delicadeza não suportavam a crítica desassombrada. Apesar de as reconhecer como tais, era de uma grande compreensão, compaixão e misericórdia para com as misérias humanas respondendo cristãmente com enorme paciência e Esperança a todos os que a ele acorriam em busca de auxílio.

Connosco, seus confrades, era jovial e “alinhava” nas brincadeiras e graçolas dos mais novos intervindo com espírito e bom humor. Sempre senti da sua parte apoio e incentivo quer em relação à vida franciscana quer em relação às leituras e estudos particulares a que me dedicava.

Nestes últimos anos em que convivemos aqui neste convento da Luz comecei a chamar-lhe, com carinho e boa disposição, venerável ancião das sabedorias primordiais. Referia-me, é óbvio, não à antiguidade da sua pessoa, pois é evidente que nunca conheceu Adão, mas ao acesso àquele saber incontaminado que pré-existiu a queda original, àquela sabedoria onde se bebe a verdade na Sua fonte, que é o fundamento que sustenta toda a realidade. É claro que, em virtude da sua humildade, torceu o nariz a este cognome. Mas eu persisti com carinho continuando a referir-me a ele de esse modo.

Como a enfermidade ruim o abocanhasse participou dos trabalhos de Cristo, da Sua Paixão, até que S. Basílio Magno e S. Gregório Nazianzeno, por incumbência de Deus, vieram buscar a sua alma no dia em que a Igreja os celebra, a saber, a 2 do mês de Janeiro deste ano de 2010.

Seguramente, assim o creio, partiu com grande alegria interior na companhia destes Santos a quem ele muito venerava não só pela santidade mas também pelo saber.

Padre Manuel Barbosa da Costa Freitas, da Ordem dos Frades Menores, venerável ancião das sabedorias primordiais, aos 81 anos de idade, cumprida, com generosidade e humildade, a sua missão na Terra foi chamado pelo Seu Criador e Redentor, que o tinha feito para Si. Morreu um Homem.

Nuno Serras Pereira

04. 01. 2010