1. A Igreja Católica presente nas Dioceses de Portugal está de parabéns pelo modo como acolheu o Santo Padre, sucessor de Pedro e vigário de Cristo. Uma palavra de particular de apreço é devida ao Senhor D. Carlos Azevedo pelo empenho inexcedível na organização da Visita Apostólica de sua Santidade.
O que agora escrevo não pretende ser uma reflexão ou meditação sobre este acontecimento de Graça tão grande para todos nós. Desejo tão só, e muito sucintamente, esclarecer, por um lado, um grave erro de tradução, generalizado na comunicação social e repetido pela generalidade das pessoas, sobre as declarações do Papa Bento XVI proferidas a bordo do avião que o transportava para Portugal, e, por outro, contextualizá-lo devidamente.
2. Em vez do do traduziram no e em vez do na trasladaram da. Ora isto muda por completo o sentido das declarações do Papa. O que sua Santidade disse foi: “ … os ataques ao Papa e à Igreja vêm não só de fora, mas que os sofrimentos da Igreja vêm justamente do interior da Igreja, do pecado que existe na Igreja. Também isso sempre foi sabido, mas hoje o vemos de um modo realmente terrificante: que a maior perseguição da Igreja não vem de inimigos externos, mas nasce do pecado na Igreja.”. De facto a Igreja é Santa e Imaculada, é-o na Sua Cabeça, Jesus Cristo, na sua alma, o Espírito Santo, nos seus Sacramentos que nos comunicam a Santidade Divina, no seu membro mais eminente, a Virgem Santíssima. Nós, por ela gerados e santificados pelo Baptismo, é que a traímos miseravelmente com o nosso pecado, conspurcando essa Comunhão com Deus em Jesus Cristo em que ela consiste – a Igreja é Cristo em nós. Se somos membros deste Corpo é não só porque fomos santificados mas para nos mantermos e crescermos na Santidade. Isso significa que, devido à nossa natureza ferida, como consequência do pecado original, permanece em nós uma certa inclinação para o mal. Por isso vivemos de perdão em perdão, de misericórdia em misericórdia até que, se formos fiéis à Graça que nos é concedida, alcancemos aquele estado de Glória, de liberdade perfeitíssima, em que já não poderemos pecar. Na Igreja, enquanto peregrinos, aprendemos pelo arrependimento e pela conversão[1] a passar do estado ínfimo de liberdade – podemos pecar -, para o da verdadeira liberdade, possível nesta vida, a saber, o de podermos não pecar. Esta possibilidade é-nos conferida pela Graça de Deus, acolhida e correspondida.
Durante muitos anos leu-se em livros de “teologia”, foi ensinado por professores na UCP e pregado por Padres e Bispos que a Igreja era Santa e pecadora. Para sustentarem esta afirmação garantiam que os Padres (Pais) da Igreja (aqueles grande teólogos dos primeiros séculos que ecoavam e interpretavam a Palavra de Deus transmitida pelos Apóstolos) a denominavam de Casta Meretriz, ou Santa Prostituta. A verdade, porém, é que esta frase só se encontra em Santo Ambrósio, e uma só vez, num dos seus sermões sobre Raab (cf. Josué, 2 e 6). Na mente deste grande Padre da Igreja, que teve uma influência decisiva em Santo Agostinho de Hipona, que se lê pelo contexto em que a expressão aparece, a palavra meretriz, ou prostituta, é usada para significar que a Igreja se entrega a todos para lhes comunicar a Santidade. Como quem diz: assim como a meretriz se entrega a todos incitando-os ou/e cumpliciando-se nos seus pecados, assim a Igreja Casta e Santa se dá a todos, não para os perder, mas para os converter e salvar. A Igreja no seguimento de Jesus Cristo e em união com Ele mistura-se com os pecadores e carrega com os seus pecados, para os resgatar e redimir.
3. O Santo Padre ao afirmar que a Igreja sempre soube que os ataques à mesma e os seus sofrimentos tinham origem, não somente fora dela, mas que partiam do seu interior, do pecado que nela existe dá, de novo, razão a todos aqueles que através da sua história foram reformadores e denunciadores dos pecados dos seus membros. De facto, uma das formas mais insidiosas do pecado na Igreja é a daqueles que acusam de falta de caridade e de provocar a desunião na mesma os que proclamam a verdade integral da doutrina, e apontam, como recomendava S. Francisco de Sales, os lobos onde quer que eles estejam. Já na Carta aos Católicos da Irlanda o Papa tinha escrito que os pecados ali cometidos pelos mesmos tinham feito mais mal à Igreja do que muito tempo de perseguições exteriores.
4. a) O Papa, na sua resposta à interrogação dos jornalistas, fala do pecado na Igreja, como vimos. Mas naturalmente há que distinguir entre pecado e pecado. Há o pecado leve ou venial e há o pecado grave ou mortal. Importa ainda distinguir entre o pecado ocasional e o pecado habitual, mesmo que ambos possam ser mortais, não há dúvida de que o vício tem uma gravidade acrescida. Depois, é necessário ter em conta quem peca e em que circunstâncias. Por exemplo, a fornicação é de si pecado mortal, mas se for cometida por um Sacerdote ou Religioso tem a agravante de ser um sacrilégio.
Ora pelo contexto da pergunta percebe-se que o Santo Padre exprime uma comoção grande pelos pecados cometidos por Bispos, Sacerdotes e Religiosos. Não é somente o pecado de pedofilia e de abuso de menores que o aflige, mas também o facto de ele ser cometido por Consagrados que deviam ser a presença viva de Jesus Cristo e, pelo contrário, estorvam ignobilmente o acesso a Ele, chegando a servir-se dos Sacramentos, profanando-os sacrilegamente, para o abuso infame e abominável. Submeter a inocência a um assalto maligno desta monta é despoletar ou desencadear uma sucessão de distorções, perversões e pecados na vida de um sujeito que dificilmente serão superados. O clero, que assim procede, tem de tomar consciência de que não terá somente de dar contas a Deus da sua alma mas também das de todos aqueles com quem se encontrou. E os Prelados, particularmente, serão submetidos a um rigoroso Juízo sobre a responsabilidade de não terem posto um fim imediato às predações de que tinham conhecimento.
b) Alguns vaticanistas e comentadores mais argutos repararam que em pleno auge de agressões exteriores à Igreja e ao Papa, menos de 15 dias depois da Carta aos Católicos da Irlanda, este tenha, na homilia da Missa Crismal, ensinado o seguinte: “ … é importante para os cristãos não aceitar uma injustiça que é elevada a direito – por exemplo, quando se trata do assassinato de crianças inocentes ainda por nascer.”[2] A relação com os casos de abuso de menores na Igreja foi imediatamente notada. Mas praticamente ninguém alcançou o seu significado. Erradamente supuseram que o Papa estava a querer “desculpar-se” com o aborto, como quem diz, vocês que estão para aí a agredir-me tomem consciência da monstruosidade que andam a fazer.
Ora importa muito atentar que a Missa Crismal, celebrada na Quinta-feira Santa, é aquela celebração em que os Presbíteros (Padres) de todo o mundo se reúnem à volta dos seus Bispos, cujas homilias lhes são particularmente dirigidas, e renovam as suas promessas Sacerdotais. Nestas palavras dirigidas aos Presbíteros, como Bispo de Roma e Pastor Universal, o Papa exortava-os à luta contra a injustiça e a falsidade, e ao combate pelo direito, pela verdade e pela paz. Admoestava-os contra o gravíssimo pecado do aborto provocado. Como quem lhes diz: vede bem que pela vossa indiferença, silêncio, se não mesmo por aconselhamento não vos torneis cúmplices de crime tão medonho. Tendes de ser, como hoje se diz, pró-activos na defesa da vida.
Ao adverti-los, anunciava a todos os cristãos, mormente aos católicos, o pecado mortal que é os pais matarem seus próprios filhos nascituros e da gravíssima injustiça de uma sociedade que legaliza esse crime horrendo e detestável, tantas vezes com a cumplicidade activa, com a cooperação formal e material, de tantos políticos e eleitores católicos. Avisava-os de que a “contracepção” que conduz ao aborto, ou é em si mesma abortiva, que a reprodução artificial que dizima tantas pessoas humanas no início das suas vidas são assassinatos de crianças inocentes. E ao denunciar este gravíssimo pecado responsabilizava os Sacerdotes, diante de Deus, pelas absolvições e Comunhões sacrílegas que muitos têm dado ou distribuído. Apontava, para usar a expressão que usou na homilia da Missa no Terreiro do Paço, para a necessidade de arrependimento e conversão de tantos “filhos (da Igreja) insubmissos e até rebeldes”.
Este é evidentemente um dos pecados na Igreja a que o Santo Padre também se referia na entrevista concedida aos jornalistas na viagem que fez para Portugal.
Nuno Serras Pereira
15. 05. 2010
[1] " ... Cristo, o Salvador, concedeu a Israel conversão e perdão dos pecados (v. 31) – no texto grego, o termo é metanoia – deu penitência e perdão dos pecados. Para mim, esta é uma observação muito importante: a penitência é uma graça. Há uma tendência na exegese, que diz: Jesus na Galileia teria anunciado uma graça sem condições, absolutamente incondicionada, portanto também sem penitência, graça como tal, sem pré-condições humanas. Mas esta é uma falsa interpretação da graça. A penitência é graça; é uma graça que nós reconheçamos o nosso pecado, é uma graça que saibamos que temos necessidade de renovação, de mudança, de uma transformação do nosso ser. Penitência, poder fazer penitência, é um dom da graça. E devo dizer que nós, cristãos, também nos últimos tempos, muitas vezes evitamos a palavra penitência porque nos parecia demasiado árdua. Agora, sob os ataques do mundo que nos falam dos nossos pecados, vemos que poder fazer penitência é uma graça. E vemos que é necessário fazer penitência, ou seja, reconhecer aquilo que está errado na nossa vida, abrir-se ao perdão, preparar-se para o perdão, deixar-se transformar. A dor da penitência, isto é, da purificação, da transformação, esta dor é graça, porque é renovação, é obra da misericórdia divina. E assim estas duas coisas que São Pedro diz – penitência e perdão – correspondem ao início da pregação de Jesus: metanoeite, ou seja, convertei-vos (cf. Mc 1, 15). Portanto, este é o ponto fundamental: a metanoia não é algo particular, que pareceria substituída pela graça, mas a metanoia é a vinda da graça que nos transforma." Bento XVI, Homilia na Missa com os membros da Pontifícia Comissão Bíblica, 15. 04. 2010.
[2] Bento XVI, Homilia na Santa Missa Crismal, 01. 04. 2010