domingo, 28 de novembro de 2010

Homilia de D. João Lavrador na vigília pela vida nascente


Estamos reunidos, em comunhão com toda a Igreja, em oração pela vida nascente.

Ao colocarmos a questão da vida no conteúdo da oração, reconhecemos o seu valor inestimável, fundamentamo-la na sua fonte divina e assumimos o compromisso de a defender tanto em cada um de nós como na cultura envolvente.

Entre os diversos desafios com que se depara a sociedade actual, este da defesa da vida humana é sem dúvida o prioritário. Esta está na origem de todos os direitos e de todos os valores. Nela entronca tudo o que do ser humano se possa pensar, valorizar e ser. Como afirma João Paulo II, trata-se de uma verdade fundamental que a comunidade dos crentes, hoje mais do que nunca, é chamada a defender e propagar. A mensagem cristã sobre a vida está «escrita de algum modo no próprio coração de cada homem e de cada mulher, ressoa em toda a consciência desde o princípio, ou seja desde a própria criação, de tal modo que, não obstante os condicionalismos negativos do pecado, pode também ser conhecido nos seus traços essenciais pela razão humana»[1].

Neste sentido, somos comunidade reunida em oração também para implorar ao Senhor de toda a inteligência e da verdadeira Sabedoria que ilumine a razão e o coração de cada ser humano para que sem obstáculos possa reconhecer a vida como um valor fundamental que se traduz no maior de todos os bens sociais e culturais.

Por isso, no discurso à assembleia geral da pontifícia academia para a vida, em 2001, João Paulo II dizia que «o conceito de criação não é somente um esplêndido anúncio da Revelação, mas também uma espécie de pressentimento profundo do espírito humano»[2]. Do mesmo modo, continua o Santo Padre, que «a dignidade da pessoa não é noção que deriva somente da afirmação bíblica segundo a qual o homem foi criado "à imagem e semelhança" do Criador, não é um conceito radicado no seu ser espiritual, graças ao qual ele se manifesta como ser transcendente a respeito do mundo que o envolve. A reivindicação da dignidade do corpo como "sujeito" e não simples "objecto" material, constitui a lógica consequência da concepção bíblica da pessoa»[3]. «Trata-se de uma concepção unitária do ser humano, conclui, que muitas correntes de pensamento ensinaram, desde a filosofia medieval até aos nossos tempos»[4].

Insiste, então, João Paulo II, sublinhando que «o compromisso pelo diálogo entre a fé e a razão não pode deixar de reforçar a cultura da vida, unindo ao mesmo tempo dignidade e sacralidade, liberdade e responsabilidade de cada pessoa, como componentes imprescindíveis da sua própria existência. Será, assim, garantida, juntamente com a defesa da vida pessoal, a tutela do ambiente, ambos criados e ordenados por Deus, como se comprova pela própria estrutura do universo visível»[5].

Lembra a este propósito o que se pode ler na sua Encíclica Fides et Ratio quando diz: «a Igreja continua profundamente convencida de que a fé e a razão se ajudam mutuamente", exercendo, uma em prol da outra, a função tanto de discernimento crítico e purificador, como de estímulo para progredir na investigação e no aprofundamento»[6]. A esta luz se deve reconhecer que as grandes instâncias relativas à vida de cada ser humano desde a concepção até à morte, o compromisso pela promoção da família segundo o desígnio original de Deus e a urgente necessidade, já sentida por todos, de salvaguardar o ambiente em que vivemos, representam para a ética e para o direito um terreno de interesse comum.

São direitos fundamentais que estão em causa.

Já Bento XVI, em discurso perante a mesma Academia Pontifícia para a vida, começa por denunciar os ataques contra a vida que ele descrevia como pressões para a legalização do aborto nas nações da América Latina e nos países menos desenvolvidos, mesmo com o recurso à liberalização das novas formas de aborto químico, sob o pretexto da saúde reprodutiva: incrementam-se, diz ele, as políticas do controle demográfico, não obstante já sejam reconhecidas como perniciosas também nos planos económico e social; e ao mesmo tempo, no que toca aos países mais desenvolvidos aumenta o interesse pela investigação biotecnológica mais aprimorada, para instaurar subtis e vastas metodologias de eugenismo, até à busca obcecada do "filho perfeito", com a difusão da procriação e de várias formas de diagnóstico, que tendem a garantir a sua selecção. Uma nova onda de eugenética discriminatória encontra consensos em nome do presumível bem-estar dos indivíduos e, de maneira especial no mundo economicamente progredido, promovem-se leis para legalizar a eutanásia. Tudo isto acontece enquanto, sob outro ponto de vista, se multiplicam os impulsos em favor da legalização de convivências alternativas ao matrimónio e fechadas à procriação natural. Nestas situações a consciência, por vezes subjugadas pelos meios de pressão colectiva, não demonstra suficiente vigilância acerca da gravidade dos problemas em jogo, e o poder dos mais fortes debilita e parece paralisar inclusive as pessoas de boa vontade[7].

Apelava, então, à formação da consciência moral no sentido de ser capaz de orientar rectamente o comportamento humano. Para isso, deve alicerçar-se no fundamento sólido da verdade, ou seja, deve ser iluminada para reconhecer o verdadeiro valor das acções e a consciência dos critérios de avaliação, de maneira a saber distinguir o bem do mal, também onde o ambiente social, o pluralismo cultural e os interesses sobrepostos não contribuem para isto.

Realça o Santo Padre que «a formação de uma consciência autêntica, porque está fundamentada na verdade, e recta, porque determinada a seguir os seus preceitos sem quaisquer contradições, sem atraiçoamentos e sem compromissos, constitui hoje em dia um empreendimento difícil e delicado, mas imprescindível»[8].

Seguindo o convite do Santo Padre, sublinhamos a necessidade de reeducar para o desejo do conhecimento da verdade autêntica, para a defesa da própria liberdade de opção diante dos comportamentos de massa e das seduções da propaganda, para nutrir a paixão pela beleza moral e pela clareza da consciência. Esta é a tarefa delicada dos pais e dos educadores que os acompanham; e é tarefa da comunidade cristã, em relação aos seus fiéis[9].

Radicados na fé e com o olhar e o coração colocados no Verbo encarnado, temos como cristãos uma garantia e uma responsabilidade maiores na educação cristã da consciência que se prolonga por toda a vida. Somente assim, sublinha Bento XVI, será possível levar os jovens a compreender os valores da vida, do amor, do matrimónio e da família. Só deste modo será possível levá-los a apreciar a beleza e a santidade do amor, a alegria e a responsabilidade de ser pais e colaboradores de Deus no acto de dar a vida. Pelo contrário, na falta de uma formação contínua e qualificada, torna-se ainda mais problemática a capacidade de juízo nos problemas apresentados pela biomedicina, em matéria de sexualidade, de vida nascente e de procriação, como também no modo de tratar e curar os enfermos e cuidar das camadas mais frágeis da sociedade[10].

Urge, como dizia João Paulo II, combater a cultura da morte com a cultura da vida. Empenhemo-nos em construir a civilização do amor. Deixemo-nos enviar na missão de Jesus Cristo que nos diz: «Eu vim para que tenhais a vida e a vida em abundância» (Jo. 10,10). Decidamo-nos a favor da vida.

Termino com o pelo que João Paulo II nos faz na Exortação Apostólica «Christifideles Laici», quando diz que «a consciência moral da humanidade não pode ficar alheia ou indiferente perante os passos gigantescos dados por uma força tecnológica que consegue ter um domínio cada vez mais vasto e profundo sobre os dinamismos que presidem à procriação e às primeiras fases do desenvolvimento da vida humana». Por isso, realça que «talvez nunca como hoje e neste campo, revela-se a Sabedoria como única âncora de salvação, para que o homem, na investigação científica e na aplicada, possa agir sempre com inteligência e com amor, isto é, no respeito, diria mesmo veneração, da inviolável dignidade pessoal de todo o ser humano, desde o primeiro instante da sua existência»[11].

Perante tal panorama, convida os fiéis leigos que, a qualquer título ou qualquer nível, se empenham na ciência e na técnica, bem como na esfera médica, social, legislativa e económica, a enfrentar corajosamente os desafios que lhes lançam os novos problemas da bioética[12].

Que Nossa Senhora que nos oferece a decisão plena e incondicional por um Sim radical em favor da vida e que concebendo a Jesus Cristo no seu seio nos traz a realização da esperança, nos abençoe e nos encaminhe pela vida que não tem fim.

Amén

Igreja Catedral do Porto, 27 de Novembro de 2010

+ João Lavrador, Bispo Auxiliar do Porto

NOTAS:

[1] João Paulo II, Carta Encíclica O Evangelho da vida, (1995), nº 29

[2] João Paulo II, Discurso à VII Assembleia Geral da Pontifícia Academia para a vida (2001), nº 4

[3] Ib. nº 4

[4] Ib. nº 4

[5] Ib., nº 5

[6] João Paulo II, Encíclica Fides et Ratio, (1998) nº 100

[7] Bento XVI, Discurso aos participantes na Assembleia Geral da Pontifícia Academia para a vida (2007)

[8] Ib.

[9] Cfr. Ib.

[10] Cfr. Ib.

[11] João Paulo II, Exortação Apostólica post-sinodal Christifideles Laici (1988), nº 38

[12] Cfr. Ib., nº 38