P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Isabel estava à espera de um filho. A expectativa tinha sido muita porque desde que casara com o João, ambos agora com trinta e oito anos, tinham decorrido dez anos de malogradas esperanças. Mas quando – finalmente! – se confirmou o diagnóstico da gravidez, todas as agruras de uma aflitiva espera se transfiguraram na alegria do nascimento iminente.
Todos os dias eram todos para a criança a nascer. Enquanto o João andava já à procura de cadeirinhas acopláveis ao assento do carro, a Isabel só tinha olhos para as montras das lojas de bebés, onde namorava todo o tipo de vestimentas para todas as estações, sempre indecisa na opção mas decidida em dar ao tão esperado filho o melhor enxoval.
Chegou finalmente o dia da desejada ecografia. Quando apareceram as primeiras imagens daquele ser diminuto, agitando-se no ventre materno, Isabel apertou com força a mão do João. A médica não teve dificuldade em reconhecer que se tratava de um rapaz mas, ao mesmo tempo que o disse, ambos notaram que pelo seu semblante perpassou uma sombra aziaga, a que correspondeu um imediato sobressalto nos pais do petiz. A médica levantou-se e ao ver o olhar ansioso do casal, não conseguiu esconder a sua preocupação e tristeza:
- Tenho muita pena, mas o vosso filho padece trissomia 21.
Isabel sentiu como que uma tontura, enquanto o João a abraçou sem saber muito bem o que dizer. Na dolorosa confusão do momento, engasgou umas quantas frases, na ilusão de que o diagnóstico pudesse não ser confirmado, mas a médica foi peremptória no seu veredicto. Esmagados por aquele antecipado luto, os dois regressaram a casa em silêncio, apenas intervalado pelos seus soluços.
Murcha a primavera da esperança, abateu-se sobre a família o inverno da desesperação. As questões sucediam-se em catadupa e o aparente silêncio de Deus, tão distante lá no seu longínquo Céu, dilacerava os corações da Isabel e do João. Surgiu então, com uma estranha evidência, a única resposta lógica àquele drama: não permitir que a criança vingasse e proceder, quanto antes, à interrupção da gravidez. Amigos houve que lhes aconselharam esse recurso, fazendo-lhes ver que, com a sua idade, não poderiam prestar a assistência necessária a um filho tão dependente. Outros recordaram-lhes a gravidade moral do acto, mas o João e a Isabel sentiam-se tão abandonados por Deus que quase lhes parecia justa aquela retaliação.
Marcaram a intervenção, numa clínica especializada. O João, por razões profissionais, não pode acompanhar a Isabel que, sozinha, teria que pôr termo à sua gestação. Mas, antes de sair de casa, ouviu tocar a campainha: era uma vizinha que, com um filho pela mão, lhe pedia licença para usar o telefone, porque o marido estava inanimado e não tinha outro meio de chamar a ambulância. Isabel levou-a até ao telefone e depois afundou-se numa poltrona. Foi então que, para seu espanto, viu que a criança era mongolóide. O pequenino sentou-se ao seu colo, pegou-lhe na mão, perguntou-lhe o nome e falou-lhe, com entusiasmo, das suas brincadeiras.
Terminada a chamada telefónica, a vizinha chamou o filho e pediu desculpa a Isabel pela sua inconveniência. O pequerrucho deu um beijo a Isabel e correu para a mãe, que o levou consigo, ficando Isabel só. A verdade é que não estava só, estava também com o seu filho, que era como aquele menino carinhoso que se sentara ao seu colo. Foi então que lhe veio à mente um pensamento aterrador: não podia matar uma criança assim! Não podia abortar o seu filho! Era seu, Deus tinha-lho dado para que o amasse e ele, que já estava de algum modo no seu colo, esperava as suas carícias de mãe. Não importava como fosse ou deixasse de ser, era seu e era também de João, era sobretudo um filho predilecto de Deus!
Naquela noite, houve festa na casa do João e da Isabel porque o seu filho, que estava perdido, foi encontrado e, estando morto, ressuscitou. Deus acendera no fogo do seu Espírito aqueles dois corações, quais círios pascais, porque quando o amor e a vida vencem o pecado e a morte é Páscoa. Outra vez.