1. Na edição de 29-8 passado, saiu no PÚBLICO o artigo «Igualdade de género ou falsa identidade», da minha autoria, no qual se questionava o actual regime legal de alteração de sexo. A 4-9 seguinte, no mesmo jornal, foi dado à estampa um texto intitulado «Uma questão de respeito», assinado por dois ex-deputados da Assembleia da República, que pretende responder àquele primeiro artigo.
2. Importa, em primeiro lugar, saudar o PÚBLICO pela divulgação dos referidos textos, num gesto de grande respeito pela liberdade e de pluralismo democrático, tanto mais louvável quanto a corajosa publicação do primeiro artigo foi criticada pelos referidos ex-deputados, decerto pelo pouco respeito que lhes merece a liberdade de pensamento e de expressão.
3. É certamente honroso, para qualquer autor, que dois ex-deputados comentem um seu texto de opinião, sobretudo se o mesmo já tinha merecido a viva felicitação de muitos leitores, entre os quais outros dois ex-parlamentares, professores universitários, etc.
4. A inegável discordância entre os dois artigos é, certamente, salutar, mas é de lamentar a atitude acintosa dos referidos ex-deputados, porque só na base do respeito mútuo e da tolerância é possível um diálogo construtivo.
5. Pelo contrário, o artigo «Igualdade de género ou falsa identidade», embora crítico, não é ofensivo para ninguém, nem contém nenhuma falta de respeito em relação a nenhum ser humano, quaisquer que sejam as suas ideias e opções.
6. A este propósito, transcreve-se o que na edição do PÚBLICO, mas a 14-8 passado, o mesmo autor escreveu e agora reafirma: «Todos iguais? Com certeza, no que respeita à comum natureza e dignidade do ser humano, bem como a todos os direitos e liberdades fundamentais».
7. Portanto, as alusões a eventuais sentimentos de ódio, de violência ou de premeditada humilhação de quem quer que seja, não tendo qualquer fundamento objectivo, devem ser entendidas no contexto de uma estratégia de ofensa pessoal que, como é óbvio, dispensa qualquer comentário.
8. Na ausência de dados objectivos que sustentem uma crítica consistente, fabula-se como teria sido grave se tivesse sido dito o que não foi dito, ou seja, se se «equiparasse as mulheres ou negros a uma subespécie». Mas esta injuriosa conclusão não consta, explícita ou implicitamente, no texto em apreço e, diga-se de passagem, parece relevar algum preconceito machista e racista.
9. Talvez, se se tivesse dito o que não se disse, a Igreja, a que o autor pertence com muito gosto, tivesse que pedir perdão através da sua hierarquia, mas não decerto pelo facto desse texto, embora discutível e da única responsabilidade do seu autor, reflectir, com substancial fidelidade, o magistério eclesial. Por muito que isso custe aos que desejariam silenciar uma voz livre e coerentemente cristã.
10. Questão mais interessante seria a de saber se os respectivos partidos subscrevem as teses destes seus ex-deputados. Se for este o caso, deveriam assumir publicamente a sua incompatibilidade com a doutrina social da Igreja e, por uma questão de elementar honestidade e de transparência política, esclarecer, sobre este particular, o eleitorado.
11. A ameaça de um eventual procedimento criminal, por sinal juridicamente improcedente, deve ser registada com alguma preocupação, não por temor à justiça – quem não deve, não teme – mas porque este tipo de intimidações são próprias dos regimes totalitários, em que todas as divergências são sistematicamente eliminadas.
12. Compreende-se o empenho dos dois ex-deputados na defesa da actual normativa, mas talvez não seja descabido perguntar-lhes se estão dispostos a respeitarem a vontade do povo português, se este entender que não se revê na «mais avançada» lei da identidade de género. A questão é tanto mais pertinente quanto a maioria que aprovou a actual lei sofreu uma significativa derrota nas últimas eleições legislativas.
13. A resposta dos dois ex-deputados foi expressa em termos aparentemente azedos e ressabiados, ao contrário do bem-humorado texto precedente. Embora a alegria seja mais própria do património cristão, importa alguma serenidade ao abordar questões desta natureza, sob pena de que os estados emocionais toldem um equilibrado uso da capacidade de argumentação.
14. A questão fundamental deste debate não é, contudo, a da identidade de género, que apenas afecta uma percentagem ínfima da população. O que realmente está em causa é o modelo de sociedade que se pretende para o nosso país. Contra a intolerância e o totalitarismo ideológico, há que defender a tolerância e a liberdade de pensamento e de expressão em Portugal.