terça-feira, 6 de setembro de 2011

Uma polícia do pensamento? - por José António Saraiva

In SOL

Abri o meu email e não queria acreditar: estava positivamente inundado de correspondência enviada por pessoas que eu não conhecia, insultando-me pela crónica Dois Maridos, publicada neste espaço há 15 dias.

A correspondência dividia-se em três categorias.

Os emails mais benévolos continham lições de moral, considerando o dito artigo homofóbico e contrário à igualdade entre os seres humanos. E uma leitora até dizia que o texto era «racista» e que incitava à «violência sobre as mulheres». Extraordinário!

Havia, depois, os emails simplesmente insultuosos, quase sempre com amplo recurso a palavrões, chegando a desejar-me a infelicidade e a morte – a mim e aos meus familiares!

Um terceiro grupo era composto por emails sem qualquer texto escrito – e que, no espaço destinado ao Assunto, tinham uma referência depreciativa: «Vergonhoso», «Atrasado mental», etc.

Havia finalmente um, endereçado por um jornalista estrangeiro, que me ameaçava com a Justiça internacional e uma eventual pena de prisão!

‘Só me faltava esta’, pensei eu, que já fui julgado umas 100 vezes por alegado abuso de liberdade de imprensa e passo a vida nos tribunais e nas secções de Justiça a prestar declarações.

Percebi, entretanto, que uma comunidade gay tinha feito circular o texto entre os seus membros, com o pedido expresso de enviarem ao autor um email ofensivo. E no Facebook circulava um abaixo-assinado incitando a um boicote activo ao SOL e ao seu director, que tinha cerca de 1.000 adesões.

Ora qual fora o meu crime, para suscitar tamanho repúdio e ataques tão violentos e grosseiros?

Basicamente, manifestar-me contra o casamento gay.

Numa crónica que eu pretendi que fosse ligeira e descontraída, ilustrada por uma imagem do filme Dona Flor e Seus Dois Maridos, comentava-se a suposta cena de violência conjugal entre o ex-deputado do PSD Jorge Nuno de Sá e Carlos Marcano, referiam-se as dificuldades semânticas que um casamento gay levanta (por exemplo, numa relação entre dois homens devemos chamar ‘maridos’ a ambos?) e reafirmava-se a ideia de que a palavra ‘casamento’ deveria ser reservada à união entre um homem e uma mulher, ou seja, ao acto fundador de uma família.

Não era um texto pesado nem doutrinário, e muito menos radical. O desacordo relativamente ao casamento gay não é uma posição original e, até mais ver, é legítima. Ou não será? Já não existe o direito de discordar da lei que admitiu a extensão da palavra ‘casamento’ à união entre dois homens ou duas mulheres?

Enchi-me de paciência e decidi responder personalizadamente a cada um dos emails. Entendi que era meu dever enviar uma palavra directa a todos que me tinham escrito, mesmo os mais grosseiros. Levei uma noite inteira a fazê-lo, e as minhas respostas agrupavam-se em três categorias.

Aos que não escreveram texto nenhum, e apenas preencheram o espaço do Assunto, agradeci o facto de se darem ao trabalho de me escrever mesmo sem terem nada para dizer.

Aos que me insultavam com palavrões ou me desejavam a morte expliquei que os insultos dizem muito sobre quem os profere – mas não dizem absolutamente nada sobre o destinatário. Ora os autores dessas mensagens tinham deixado uma péssima imagem de si próprios.

Aos que me davam lições de moral – acrescentando invariavelmente que aquele texto não devia ter sido publicado – procurei explicar-lhes o que significa a palavra ‘tolerância’. Informei-os que publico semanalmente no SOL diversos textos com opiniões contrárias às minhas, já tendo publicado artigos a defender o casamento gay. E interpelei-os directamente: «Se o leitor estivesse agora no meu lugar, publicaria o meu texto?». Esta pergunta é sempre, nestas polémicas, a pedra de toque. É ela que separa os tolerantes dos intolerantes, os democratas dos fundamentalistas.

Finalmente, expliquei ao jornalista estrangeiro que em Portugal houve censura durante 50 anos, que agora vivemos em democracia – e que o SOL é um jornal plural, que respeita a liberdade de opinião e a diversidade de pontos de vista.

Não percebo por que razão a homossexualidade tende a tornar-se um tema tabu, que não pode ser discutido e sobre o qual não é permitido opinar.

Não percebo – e não aceito. Nunca me verguei às conveniências e ao politicamente correcto – e não seria agora que o começaria a fazer. Sou totalmente contra o casamento gay, já expliquei detalhadamente porquê e reivindico o direito de ter opinião sobre este assunto e de a expressar. Será que alguns querem instituir uma nova Polícia do Pensamento? Querem reacender-se as fogueiras da Inquisição?

Hoje, em Portugal, escreve-se sobre tudo: sobre a liberalização de todas as drogas, sobre a eutanásia, sobre as vantagens das centrais nucleares, sobre a legitimidade do aborto, até sobre a reposição da pena de morte – e não se pode contestar o casamento gay? Porquê? Com base em quê?

Há muitos anos o meu pai, já em ruptura com o PCP, escreveu no Diário de Lisboa um longo artigo sobre África que incomodou os comunistas. Respondeu-lhe um jornalista chamado António Rego Chaves, militante ou simpatizante comunista, que acabava assim o seu texto: «Senhor doutor, deixe-nos em paz!».

Numa admirável resposta, o meu pai dizia-lhe o seguinte: «Faço-lhe a justiça de pensar que, ao tomar a iniciativa de comentar o meu artigo, a sua paz irreversivelmente acabou». Tinha razão. Uns tempos depois este jornalista afastar-se-ia do PCP.

A todos os que me atacaram, mesmo aos mais agressivos, aos mais grosseiros, aos mais insultuosos, eu digo o mesmo: «Faço-lhes a justiça de pensar que a minha resposta os leve a reflectir um pouco sobre a sua atitude. Ao verem que alguém lhes pode responder civilizadamente a um insulto, isso constitua para eles uma lição». Acredito nisso – e foi por isso que a todos respondi um a um.

Uma reflexão, para finalizar.

Na nossa Civilização, a palavra ‘casamento’ tinha um significado preciso. Por que se insistiu em estendê-la a outro tipo de relações? Eu digo: por razões ideológicas. Exactamente para significar que as uniões homossexuais são exactamente iguais às uniões heterossexuais. Só que eu acho que não são. Que são diferentes – e portanto não deveriam usar a mesma palavra.

Ora, se os gays tiveram o direito de defender o seu ponto de vista, eu não terei o direito de discordar? Ou a lei que legalizou os casamentos gay ilegalizou simultaneamente as opiniões contrárias?

jas@sol.pt