sábado, 31 de dezembro de 2011

O Natal, as Orelhas e a Cruz

O que é que ouvimos quando vemos o Presépio? Parecerá estranha a pergunta, uma vez que os órgãos da visão são os olhos e não os ouvidos. Mas quando Aquele que nasce no tempo é a Palavra eterna de Deus, o que era no princípio com o Pai, estava junto a Ele e com Ele era Deus, então só enxerga bem quem O sabe escutar. Esta poderá ser aliás uma das razões pelas quais Nosso Senhor Jesus Cristo quis nascer diante de um jumento, cujas longas orelhas lá estão como um sinal para nos advertir. De facto, os órgãos da contemplação, nesta vida, não são os olhos senão os ouvidos. Do escutar depende o nosso viver e o nosso destino bem como o de todo o género humano humanidade. Eva, a mãe de todos os viventes, escutou a mentira que o Maligno, representado na serpente, lhe silvou e gerou a perdição, a condenação. Pelo contrário, a sempre Virgem Maria escutou a verdade, que lhe foi transmitida pelo Arcanjo São Gabriel, e gerou o Redentor que nos salvou. Eva é a mãe da morte, Maria a Mãe da Vida. Vejam lá a importância do ouvir, a relevância e a influência da pessoa ou pessoas a quem escutamos.

Tudo naquela gruta nos fala. A sempre Virgem Maria, que Se manteve íntegra, também fisicamente, antes do parto, no parto e depois dele, ajoelhada, de mãos postas, acompanhada do castíssimo S. José, diz-nos que Aquele bebé recém-nascido é o Criador do Céu e da Terra, o Deus Omnipotente, Infinito, Imenso, que os universos (se é que existe mais do que um) não podem conter, a Quem somente devemos adorar com vivos sentimentos de espanto, de gratidão, de louvor. A Virgem Mãe de Deus ilustra, concretiza, encarna deste modo o mandato prévio, que é a condição da possibilidade do cumprimento do primeiro Mandamento e, por isso, de todos os outros: “Escuta, Israel (isto é, cada um de nós e a Igreja que é o novo Israel)! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor.” (Deut 6, 4)[1]

Este Senhor Menino diz-nos na Sua inocência vulnerável, na Sua pobreza, na Sua miudeza, que é um escravo, que veio para nos servir e não para ser servido. Revelando deste modo que a essência de Deus é o Amor, Amor até à loucura de Se aniquilar, como que Se esvaziar de Si próprio, para dar a vida por nós entregando-Se à morte, mais ignominiosa de entre todas, fazendo-Se maldito para nos resgatar do pecado. Enquanto outros como, por exemplo, Buda, Sócrates, Platão, Confúcio, Lao-Tsé, Maomé, vieram ensinar uma prática, uma doutrina, um comportamento, o Menino veio para morrer, para doar a vida por nós numa Cruz (Cf. Cardeal Fulton J. Sheen). Por isso, aqueles eminentes teólogos que sucederam aos apóstolos, bebendo deles o testemunho de Jesus Cristo, a quem chamamos os Padres (Pais) da Igreja, contemplando o presépio viam nele a Cruz. As tábuas da manjedoura falavam-lhes do madeiro onde viria a ser crucificado, os paninhos que envolveram o Menino Jesus remetia-os para o Sudário que O envolveu na sepultura, a Circuncisão ao oitavo dia (amanhã) indicava-lhes o derramamento do Sangue na Paixão, que depois da Ressurreição, agora Glorioso, Se tornaria poção de imortalidade na Eucaristia, na celebração do Sacrifício Santíssimo da Missa. Enquanto a embriaguez do vinho faz de um homem uma besta irracional, o inebriamento deste vinho transubstanciado em Sangue transforma um homem num Anjo. Os pastores que voltaram aos seus pastos “glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto” prenunciam os enviados a anunciar o Evangelho[2]: “ … porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Porém, como invocarão Aquele em quem não têm Fé? E como acreditarão n’ Aquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão falar, se não houver quem pregue? … Logo a Fé provém da pregação (de escutar a pregação) … ” (Rom 10, 13-14. 17).

No entanto, nem todos prestam ouvido ao Evangelho (Cf. Rom 10, 16). Por isso, a conversão não depende somente do que se anuncia senão que importa muito a disposição daquele que escuta. Esse poderá ser o motivo pelo qual no Presépio não encontramos um canguru, também de orelhas compridas, mas sim um asno. Este, como o mostrou o Professor César das Neves, é humilde, enquanto aquele se distingue pela sua garbosa soberba. Se Jesus tinha entrado em Jerusalém montado num canguru pulando orgulhosamente este bruto cuidaria que os hossanas jubilosos entoados pela multidão se dirigiam a si e não ao Deus feito homem – rebentado de inchação acabaria na geena do fogo onde há choro e ranger de dentes, isto é, no Inferno destinado ao demónio e aos seus anjos (Mt 25 41). O jerico, pelo contrário, sabendo que de si não é nada, regozijava-se por ser ignorado, por todo o louvor ser dirigido Àquele que é o único a merecê-lo e por lhe ser concedida a Graça de ser cooperador da salvação; por isso, quando faleceu escutou: vem, bendito de Meu Pai, toma posse do Reino que te está preparado desde a Criação do mundo (Mt 25, 34). À honra de Cristo. Àmen.

Nuno Serras Pereira

31. 11. 2011



[1] Segue o resto: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o coração, com toda a alma e com todas as tuas forças.” Etc.

[2] Como hoje se sabe, as ovelhas que aqueles pastores guardavam eram negras prenunciando assim os pecadores que Cristo vinha resgatar.