Eu sei que nestas missivas que
vou enviando não deveria falar de mim, no entanto, por vezes, e esta é uma
delas, sinto o dever de o fazer para salvaguarda e defensa dos meus amigos. Sabereis
que todo eu sou uma enfermidade, tantas são as doenças que me acometem que um
confrade meu já exclamou assombrado: Puxa!, é preciso muita saúde para aguentar
tanta doença!
Ora uma dessas obriga-me, de há
uns anos a esta parte, a tomar umas cápsulas que não só me engordam como me
abrem grandemente o apetite. Devereis saber que todo eu sou uma farmácia
ambulante, e um verdadeiro índice terapêutico - não há droga legal que não
ingira ou que não conheça, com todos os seus efeitos, contra-indicações e
interacções medicamentosas: se a teologia fosse farmacêutica eu seria um eminente
catedrático. Sucedeu porém, como periodicamente me acontece, que entretanto
contraí uma nova maleita, pelo que um médico feroz ao verificar a minha
obesidade, as incomensuráveis toneladas de gordura que fui acumulando como um
imenso javardo, um enorme tonel de banha, um oceano de toucinho, peremptória e
implacavelmente vociferou crueldades ásperas, bárbaras e medonhas traduzidas
neste conciso mas pavoroso verbo: Irra, emagreça!!! Caramba!
Tolhido de paúra recolhi-me ou
arrastei-me cabisbaixo, com grande pesar, imaginando futuros negros e tremendos,
até ao convento. Cheio de receança, timidamente, comecei por abster-me de
alguns cozinhados que me asseguraram serem insalubres porque geradores enxúndia.
Depois, aos poucos, à medida que ia fraquejando fui ganhando forças para a
luta. Travaram-se então combates tremendos, batalhas épicas, escaramuças heróicas.
Cada prato, era um inimigo a derrubar; cada copo, um comando a abater; cada
sobremesa, um fuzileiro a eliminar; cada cedência, uma traição; cada gelado, um
submarino a afundar; cada bolo, um porta-aviões a destruir.
Preocupados por me verem a
definhar os meus confrades começaram por me avisar: olhe que tu qualquer dia
desapareces. No entanto, com o decorrer do tempo, quando me lobrigavam ao fundo
do corredor, e como são infindáveis os corredores nos conventos!, viam um
esqueleto, eu, a caminhar e cuidavam ser uma alma do outro mundo. Pelo que o
Guardião mandou que no coro se fizessem preces e cada irmão trouxesse consigo água
benta, e, ademais, alcançou do Bispo diocesano que a todos os sacerdotes fosse
concedida a devida autorização para fazerem exorcismos. Fui desde então sujeito
a consecutivos chuveiros de água benta e a incessantes exorcismos até que se
concluiu que este cadáver ambulante, este esqueleto barbudo era mesmo eu, irremediavelmente
enfermo, amumiado e escanzelado até que a próxima doença me obrigue de novo a
anafar.
Fique pois, isto que aqui deixo
escrito, como aviso para que quem se depare comigo não se assuste cuidando
espavorido que topa com um espírito ou com um esqueleto reanimado. Sou eu
mesmo. E assim serei até que nova ruindade me force, de novo, a tornar-me um
paquiderme banhudo.
23. 08. 2012