Um conhecimento mais profundo do
judaísmo antecedente e contemporâneo de Jesus tem contribuído, nas últimas décadas,
para iluminar alguns aspectos, que antes passavam despercebidos ou, pelo menos,
não se viam tão claramente, do Novo Testamento. No entanto, alguns eruditos
poderão, sem se dar conta, estar tão prenhes desses conhecimentos que façam
deles uma grelha de leitura demasiado rígida para a interpretação adequada da
Revelação, diminuindo a transcendência sobrenatural única, singular, original,
que tudo permeia.
Já em tempos anteriores procurando
reagir a uma acentuação excessivamente espiritualista, desencarnada, por parte
de um devocionismo falsificado, da parte de bastantes, se tem vindo a cair numa
banalização-meramente-humana quer de Jesus Cristo, quer de Sua Mãe Santíssima.
Todos saberão que a excepcionalidade
de Maria: os Seus privilégios, a Sua proeminência entre todos os Santos, os
Seus méritos eminentes, as Suas glórias, tudo, mas mesmo tudo, são Graças e
dons concedidos gratuitamente por Seu Filho Jesus Cristo, que na Sua imensa
Misericórdia e desmedida benignidade quis associar a Si e à Sua Redenção Aquela
que Ele resgatou, por antecipação, não permitindo que fosse tocada, nem ao de
leve, pelo pecado, tornando-A Imaculada, desde a Concepção; enchendo-A da Sua
Graça, do Seu Espírito, de tal modo a que nunca nele caísse nem tivesse o mais
pequeno defeito ou imperfeição.
Este deslumbrante Mistério do
Amor Infinito de Deus pode e deve ser considerado, meditado e contemplado, com
espanto, com estupor, com assombro e maravilha mas, embora concorde com a razão,
só muito parcialmente compreendido. É, por isso, que aqueles filmes televisivos
que nos apresentam pelo Natal sobre José e Maria, e o presépio não são
convincentes. Ela é apresentada como uma Maria mais ou menos como as outras; e
José como alguém que chega seriamente a questionar o comportamento sexual da
sua noiva! Que tristeza ver isto irrompendo desabridamente pelos lares em Noite
tão Santa apresentado, com aparências de verossimilhança às multidões crédulas,
ou incrédulas…
Tudo aquilo que aconteceu na
Anunciação e no Natal tem a marca do prodígio miraculoso não cabendo, por isso,
na estreiteza do nosso sentir e raciocinar. Não é possível fazer da nossa
natureza decaída, das nossas limitações e pecados o critério de avaliação dos
personagens destas acções Divinas. Aquilo que o Anjo diz à sempre Virgem Maria,
“… A Deus nada é impossível”, não se aplica somente à Concepção Virginal mas irrompe
e permeia tudo o mais. Por isso, não se pode despedir que Maria tivesse um voto,
isto é, um desejo, um propósito, de virgindade com base no argumento de que isso
era alheio à mentalidade do Seu tempo. De facto, toda a novidade do Evangelho está
cheia de acontecimentos e Revelações estranhas às crenças e hábitos de então: a
Trindade, a Divindade de Jesus, as Suas curas, os Seus milagres, a Sua atitude para
com as mulheres e crianças, a Eucaristia, o poder de perdoar pecados, a
Ressurreição, etc., etc., etc. Por todo o lado encontramos uma “subversão” do
natural, do comum e dos costumes.
É Deus Omnipotente prorrompendo na história, o Eterno no tempo, o Imenso no limitado, o Infinito no finito, o Todo-Poderoso na debilidade. Acresce que se a sempre Virgem Maria não tivesse tal propósito de entrega total, na inteireza de corpo e alma, a Deus a Sua pergunta ao Arcanjo – “Como será isso, se não conheço homem? (isto é, se não tenho nem penso vir a ter actos conjugais) ” -, não faria, rigorosamente, qualquer sentido. Ora não se pode pensar nem mesmo imaginar que a Mãe de Deus faça perguntas desajuizadas. Mas então por que aceitou ser noiva de José? Uma hipótese muito provável é a de que José nos diálogos que teve com Maria tenha sido informado da Sua entrega e, não obstante o desuso e inesperado da circunstância, tenha aceitado o noivado, e concordado, com natural sobrenaturalidade, num futuro casamento. Haverá aí alguém que alcance considerar convenientemente qual seria o casto fascínio, a virginal atractividade, o continente encanto, o puro deslumbramento que Aquela jovem transbordante de Graça, embebida do Espírito de Deus, exercia naquele homem Justo? Não é verdade que toda a verdadeira beleza criada, toda a sedução do amor autêntico remetem, são uma promessa, do Único capaz de saciar o coração da pessoa humana? Pois se esse Único, se Deus, habita Aquela Mulher como não se sentira um homem Justo gozosamente sossegado e saciado na Sua companhia, na Sua presença, no trato com Ela? Quem tendo encontrado todos os contentamentos, todas as consolações, todas as alegrias espirituais quererá, ou ousará!, abandonar a Sagrada Bica que tudo isto lhe escorre directamente da Fonte?
Mas coloquemos outra hipótese, não
menos provável que a anterior. Pode ser que Maria não tenha dito nada a S. José,
antes do noivado, desse Seu desejo. Mas que simplesmente, à semelhança de Abraão
(que quando caminhava com o seu filho Isaac para o imolar em holocausto, quando
este lhe perguntou onde estava do cordeiro para o sacrifício aquele lhe
respondeu que Deus providenciaria, como de facto veio a suceder), avançou na escureza
luminosa de uma Fé imensa, muito maior que a do Seu antepassado, na certeza de
que Deus providenciaria, como verdadeiramente se veio a verificar.
A verdade, porém, assim a tenho como
tal, na companhia de alguns Padres da Igreja antiga bem como de alguns exegetas
contemporâneos, é que José, quando soube da gravidez da Virgem Santa Maria,
sentiu-se indigno da Sua presença, pois intuiu sobrenaturalmente o Mistério de
Deus, sem embora entender o como, e procura repudia-la em segredo, uma vez que
a Lei, a qual ele seguia escrupulosamente por amor ao Altíssimo, assim o
mandava. Foi então que o Anjo do Senhor em um sonho lhe confirmou as Santas suspeitas
que tinha (não aborreço o leitor com a tradução grega do Evangelho que
justifica esta leitura; quem estiver interessado poderá ler, por exemplo, Ignacio de La Potterie, Maria nel mistero
dell'alleanza, Marietti, 280 pp.) e lhe adiantou que era vontade de Deus
que recebesse a Mãe de Deus humanado como Esposa em sua casa. Esta união Mística
e Espiritual de José com a Sua Esposa, Nova Arca da Aliança, Templo de Deus,
Sacrário vivo, só pode ter dilatado largamente a sua Santidade. Quem saberá
ponderar devidamente este viver quotidiano mergulhado na contemplação e serviço
de Maria Santíssima e Seu Filho nosso Redentor?
Estando, desde a Sua concepção,
isenta de qualquer pecado, em virtude dos méritos futuros da Paixão do Seu
Filho, Maria não padeceu ruptura na Sua integridade, mesmo corporal, nem as
dores de parto (que entraram no mundo como consequência do pecado original), porque
o Seu Filho nela entrou e de Ela saiu como, depois da Ressurreição, ingressava e
deixava a sala do cenáculo estando embora as portas e as janelas fechadas. Aquelas
aflições e angústias representadas nos tais filmes televisivos não passam de
uma reles falsificação daquele jubilosíssimo parto.
20. 12. 2012