Portugal passa
por um momento terrível, mas isso não o deve impedir de admirar
esteticamente uma obra de arte excepcional. Ora o regresso de José
Sócrates é um espantoso feito de técnica política, do mais alto nível
mundial.
A personagem é notável. Verve, atitude, táctica são
excelentes. Para lá das qualidades como tribuno e estratega, aquilo que o
distingue dos demais e o coloca acima da sua geração é a total ausência
de escrúpulos. Não existe a menor contemplação pela realidade dos
factos, interesse nacional, simples decoro pessoal. Existe apenas um
projecto de poder, e tudo lhe é sacrificado. Há muitas décadas que não
tínhamos um político assim, e já nos esquecemos do estilo. Por isso
tanto nos admira a quase inacreditável capacidade de imaginação e
manipulação com que consegue sair de uma posição que seria desesperada
para qualquer outro. Além disso é terrivelmente eficaz e convence mesmo.
Digno de antologia!
Apresenta-se como totalmente inocente dos
males que afligem o País. Foi primeiro-ministro durante mais de seis
anos mas é inimputável pelo desastre que deflagrou nos últimos meses do
seu mandato. A culpa vem de uma "crise das dívidas soberanas", que lhe é
naturalmente alheia. E claro também de um terrível bando de
malfeitores, onde se inclui o actual Governo, bancos, União Europeia e
FMI, que pretendem, por razões não esclarecidas, destruir Portugal. Ele,
pelo contrário, sempre esteve do lado do progresso e alegria, que
infelizmente não se concretizaram.
Não é claro se mente
descaradamente ou acredita mesmo na fábula, sofrendo de delírio. Em
qualquer caso, todos os dados apontam para o facto de José Sócrates ser,
não imoral, mas completamente amoral. Não se lhe parecem colocar
quaisquer remorsos de consciência. Por isso é tão convincente. A nossa
actual democracia nunca teve, em posições cimeiras, pessoas deste
calibre. Assim Sócrates destaca-se flagrantemente.
É preciso dizer
que ele ainda não atingiu os níveis do contemporâneo mestre absoluto da
técnica, Silvio Berlusconi. Nem sequer é evidente que o português
alguma vez consiga os feitos do italiano. No entanto, cabe-lhe um
honroso segundo lugar. Esta atribuição não é forçada porque a relação
entre ambos é evidente. Tirando eles, todos os líderes que estavam no
poder quando bateu a crise, alguns deles de reconhecidas qualidades,
caíram fragorosamente: Geir Haarde na Islândia, Kostas Karamanlis e
George Papandreou na Grécia, José Luis Zapatero em Espanha, Brian Cowen
na Irlanda, Yves Leterme na Bélgica, Nicolas Sarkozy em França, Gordon
Brown no Reino Unido, George Bush nos EUA, etc. Todos forçados a sair de
cena sem remissão. Deles, apenas Berlusconi e Sócrates mantêm
esperanças de regresso, estando bastante avançados no processo. O estilo
de ambos, apesar das diferenças, tem paralelos evidentes. Mas temos de
admitir que o magnata transalpino, que saiu depois e regressou mais cedo
do que o nosso engenheiro, tem evidente primazia.
Admirando o
engenho e a arte, não podemos esquecer o muito que eles devem aos tempos
que vivemos. É preciso recuar às primeiras décadas do século passado
para encontrar casos semelhantes, porque nessa altura o mundo enfrentava
dilemas e conflitos próximos dos actuais. O rancor das acusações, o
ressurgimento da retórica antidemocrática, os contínuos apelos à Grande
Depressão aproximam as duas épocas. Talvez tenhamos aprendido a evitar o
pior dessa evolução, mas não admira o ressurjimento do mesmo tipo de
animais políticos.
A única coisa que pode fazer a diferença é a
capacidade dos eleitorados em resistir ao engano. O caso italiano
assusta muito, porque repete traços da antiga trajectória, embora com
diferenças significativas e ainda sem Mussolinis no horizonte. Portugal
começou agora o seu processo. Veremos até que ponto a raiva pelos
sacrifícios, junto com o ilusionismo, conseguirão fazer que o grande
beneficiário da crise venha a ser aquele que indiscutivelmente foi o seu
principal responsável. Isso seria uma obra de arte incomparável.