A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, «sobre o anúncio do
Evangelho no mundo actual», destina-se
oficialmente a tornar público o trabalho do XIII Sínodo Ordinário dos Bispos,
de Outubro de 2012, tarefa que o Papa Francisco herdou do seu antecessor. Em
vez disso, ou além disso, o Papa transformou-a num verdadeiro programa do
pontificado.
Aquilo que, desde 1740, todos os seus
antecessores fizeram através de uma encíclica inaugural (excepto João Paulo I,
que morreu antes, e Gregório XVI, que usou uma bula) é agora realizado por uma
exortação. De facto a encíclica de Junho, Lumen
Fidei (LF), não cumpriu esse desiderato. Ela partia de um «primeiro esboço» (LF 7) da autoria de
Bento XVI, e Francisco confessou que: «assumo
o seu precioso trabalho, limitando-me a acrescentar ao texto qualquer nova
contribuição» (7). Agora, mesmo através da labuta do Sínodo, surgem
finalmente os traços marcantes do programa papal. Não perdemos pela demora,
pois ele constitui um dos maiores documentos pontifícios de todos os tempos, só
ligeiramente ultrapassado em dimensão pela exortação de João Paulo II Pastores Dabo Vobis de 1992, resultado
do VIII Sínodo Ordinário, em 1990.
1.
Conteúdo
O texto é uma maravilhosa reflexão
sobre uma das tarefas mais centrais da Igreja de sempre, a evangelização. Com o
seu estilo inimitável, certamente o documento ficará na história como uma das
grandes proclamações sobre o tema, ao nível do melhor que se tem publicado
acerca da evangelização.
A sua vastidão e profundidade impedem
que se tente sequer uma descrição breve. De facto, a evangelização é aqui
discutida em todas as suas dimensões, das grandes questões teológicas (e.g. nº
111-134) a pormenores pastorais (e.g. 145-175). Isso leva o texto a abordar
inúmeros temas concretos, dos obstáculos sociais ao anúncio de Cristo (52-109)
à preparação das homilias (135-159), das implicações sociais da proclamação
doutrinal (177258) aos diálogos ecuménico (244-246) e com a ciência (242-243),
do aborto (213-214) e crise da família (66-67), ordenação das mulheres (104) e
problemas económico-financeiros (53-60; 202-204). Trata-se de um grande
tratado. que funde a eclesiologia, missionação, liturgia e catequese numa única
elaboração.
O elemento mais marcante é aquele
estilo claro, singelo, cortante e sugestivo que estes poucos meses tornaram já
tão conhecido. A exortação ressuma com as expressões favoritas do Papa, que ele
fez famosas: «Os evangelizadores contraem
assim o “cheiro de ovelha”, e estas escutam a sua voz» (24); «Se um pároco, durante um ano litúrgico, fala
dez vezes sobre a temperança e apenas duas ou três vezes sobre a caridade ou
sobre a justiça, gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas precisamente
aquelas virtudes que deveriam estar mais presentes na pregação e na catequese.
E o mesmo acontece quando se fala mais da lei que da graça, mais da Igreja que
de Jesus Cristo, mais do Papa que da Palavra de Deus» (38); «A Igreja “em saída” é uma Igreja com as
portas abertas. Sair em direcção aos outros para chegar às periferias humanas
não significa correr pelo mundo sem direcção nem sentido. Muitas vezes é melhor
diminuir o ritmo, pôr de parte a ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou
renunciar às urgências para acompanhar quem ficou caído à beira do caminho»
(46); «Muitas vezes agimos como
controladores da graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma
alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa»
(47); «prefiro uma Igreja acidentada,
ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo
fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças» (49).
Os contributos da encíclica são muitos
e muito valiosos, espantosos até, merecendo repetidas e atentas leituras, para
retirar todo o proveito que escorre a cada passo. Só para referir um dos mais
notáveis, no capítulo IV, o Papa Francisco apresenta «quatro princípios relacionados com tensões bipolares próprias de toda a
realidade social», o que constitui uma genial e original síntese e
contributo para a Doutrina Social da Igreja. Segundo o Papa, «para avançar nesta construção de um povo em
paz, justiça e fraternidade» (221) é preciso não esquecer quatro elementos
básicos: «o tempo é superior ao espaço»
(222-225), «a unidade prevalece sobre o
conflito» (226-230), «a realidade é
mais importante que a ideia» (231-233), e «o todo é superior à parte» (234-237). Desta forma quase acidental,
Francisco consegue trazer um resultado brilhante e inédito a um dos temas mais
estudado, debatido e analisado de toda a actividade eclesial.
Muitos outros exemplos podiam ser
aduzidos, intuições e análises igualmente preciosas. É importante que fiéis, e
sobretudo os clérigos, se habituem a vir a este texto frequentemente, para
retomar uma meditação sempre frutífera sobre uma das mais relevantes
actividades eclesiais.
2. Polémica
Para terminar este texto vale a pena
tratar ainda brevemente aquele ponto que é, certamente, um daqueles que se
revelou mais polémicos. Nas habituais leituras apressadas dos media (que neste
caso foram ainda mais ligeiras que o costume, devido à dimensão e abrangência
do documento), houve um facto que se destacou: as críticas consideradas
acérrimas ao sistema capitalista.
Inclusivamente o habitualmente sóbrio Wall Street Jornal, através do seu
comentador Liam Moloney deu, logo a 26 de Novembro,
dia da divulgação pública da exortação, datada de 24, nota do documento
referindo que o Papa, «usando linguagem
invulgarmente brusca (unusually blunt),
criticou a economia de mercado» (http://online.wsj.com/news/articles/SB10001424052702303281504579221933931268354)
Vale a pena referir que o texto nunca
usa a palavra «capitalismo» ou «capital», emprega apenas uma vez a palavra
«lucro» (56), e nove vezes a palavra «mercado» (54-57, 70, 202, 204). Mas é
verdade que emprega frases bastante contundentes. Por exemplo: «Assim como o mandamento “não matar” põe um
limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos
dizer “não a uma economia da exclusão e da desigualdade social”. Esta economia
mata» (53); «O desequilíbrio provém
de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação
financeira» (55); «Instaura-se uma
nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e
implacável, as suas leis e as suas regras» (56) «O dinheiro deve servir, e não
governar!» (58), «O sistema social e
económico é injusto na sua raiz (...) É o mal cristalizado nas estruturas
sociais injustas, a partir do qual não podemos esperar um futuro melhor»
(59) «Não podemos mais confiar nas forças
cegas e na mão invisível do mercado» (204)
Será isto uma novidade doutrinal?
Talvez na forma, mas não de todo no conteúdo. Uma breve inspecção à última encíclica social, a Caritas in Veritate (CiV) de Bento XVI (2009), encontra ideias equivalentes,
expressas de forma também clara: «Situações
de subdesenvolvimento, que não são fruto do acaso nem de uma necessidade
histórica, mas dependem da responsabilidade humana. É por isso que os povos da
fome se dirigem hoje, de modo dramático, aos povos da opulência». (CiV 17);
«os efeitos deletérios sobre a economia
real duma actividade financeira mal utilizada e maioritariamente especulativa»
(CiV 21) «Cresce a riqueza mundial em termos absolutos, mas aumentam as
desigualdades. Nos países ricos,
novas categorias sociais empobrecem e nascem novas pobrezas. Em áreas mais
pobres, alguns grupos gozam duma espécie de superdesenvolvimento dissipador e
consumista que contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações de
miséria desumanizadora. Continua o escândalo de desproporções revoltantes».
(CiV 22).
É verdade que o estilo é agora
diferente, com o atrás referido tom cortante, directo, envolvente a que o Papa
Francisco nos habituou. É verdade também que esse modo já criou enganos em
muitos, que quiseram ver nele uma alteração do rumo da doutrina da Igreja. Mas
isso é evidentemente falso. Francisco não pretende mudar a doutrina nem os
princípios. Aliás não lhe compete fazer tal, porque ele não é dono da Igreja,
mas seu servo. A sua atitude simples, directa e brilhante tem de ser bem
entendida: as suas frases devem de ser lidas no quadro de uma ortodoxia serena,
que ele sempre afirmou e que é a aquela em que Jorge Bergoglio sempre viveu. Se
nos primeiros episódios do pontificado houve compreensível surpresa, agora já
não é razoável insistir no que apenas pode ser um abuso e distorção das suas
declarações.
Por exemplo, na entrevista que deu à La Civiltà Cattolica, publicada a 19 de
Setembro de 2013, ele foi interpretado como menorizando a defesa da vida pela
Igreja, quando disse coisas como «Não
podemos insistir somente sobre questões ligadas ao aborto, ao casamento
homossexual e uso dos métodos contraceptivos. Isto não é possível. Eu não falei
muito destas coisas e censuraram-me por isso». É evidente que a dedução de
uma nova tolerância aos ataques contra a vida e família é totalmente
injustificada. Na mesma entrevista ele parecia recusar a «hermenêutica de
continuidade» que Bento XVI proclamara na interpretação do Concílio Vaticano II
ao dizer: «O Vaticano II foi uma
releitura do Evangelho à luz da cultura contemporânea (...) a dinâmica de
leitura do Evangelho no hoje, que é própria do Concílio, é absolutamente
irreversível». Também aqui a inferência revolucionária é patentemente
vazia. Talvez ainda mais polémica foi a entrevista a Eugenio Scalfari, no
"la Repubblica" a 1 de Outubro. Aí o Papa foi acusado de defender o
relativismo ao afirmar: «Cada um de nós
tem a sua própria visão de bem e de mal, e deve escolher seguir o bem e
combater o mal como ele mesmo o conceba». Ora esta, como as outras interpretações,
são erros evidentes dos que quiseram impor as suas ideias ao Papa.
No caso das expressões da Evangelli Gaudium sobre economia, é
preciso acrescentar que o Papa Francisco se precaveu explicitamente de abusos
na interpretação da sua linguagem. De facto ele fez questão de afirmar: «Aqui não é o momento para explanar todas as
graves questões sociais que afectam o mundo actual, algumas das quais já
comentei no terceiro capítulo. Este não é um documento social e, para nos
ajudar a reflectir sobre estes vários temas, temos um instrumento muito
apropriado no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, cujo uso e estudo
vivamente recomendo.» (184). Desta forma clara, o Pontífice reafirma toda a
tradicional doutrina sobre o tema.
Então porque disse ele o que disse? As
finalidades das referidas expressões bruscas são evidentes. Elas surgem em dois
tópicos concretos: o primeiro para esclarecer o enquadramento prévio dos
obstáculos à evangelização (53-60); o segundo lidando com a dimensão social da mesma
(186-208). Ou seja, o Papa não está a tratar do valor da economia ou a fazer um
juízo axiológico acerca da actividade produtiva e mercados. Essa vem no
Compêndio e foi claramente mantida. O que aqui se trata é de evangelização e
dos impedimentos que o sistema lhe coloca ou das necessidades que ele impõe à
intervenção cristã. Naturalmente que isso exige que a atenção se dirija aos
aspectos mais graves, porque só esses causam dificuldades. Só com uma flagrante
má-fé se podem retirar as conclusões genéricas que tantos alinham.
A grande exortação Evangelii Gaudium constitui um documento ímpar, que merece atenta e
repetida atenção. Este programa de pontificado figurará durante muito tempo
entre as referências eclesiais mais marcantes. Tal como a encíclica inaugural
de Paulo VI, Ecclesiam suam que,
versando sobre o mesmo tema, ainda hoje, 50 anos depois de escrita, é citada
com grande proveito, por exemplo precisamente neste novo documento.