sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A alegria do Evangelho - por João César das Neves

In Infovitae

         A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, «sobre o anúncio do Evangelho no mundo actual», destina-se oficialmente a tornar público o trabalho do XIII Sínodo Ordinário dos Bispos, de Outubro de 2012, tarefa que o Papa Francisco herdou do seu antecessor. Em vez disso, ou além disso, o Papa transformou-a num verdadeiro programa do pontificado.
 
Aquilo que, desde 1740, todos os seus antecessores fizeram através de uma encíclica inaugural (excepto João Paulo I, que morreu antes, e Gregório XVI, que usou uma bula) é agora realizado por uma exortação. De facto a encíclica de Junho, Lumen Fidei (LF), não cumpriu esse desiderato. Ela partia de um «primeiro esboço» (LF 7) da autoria de Bento XVI, e Francisco confessou que: «assumo o seu precioso trabalho, limitando-me a acrescentar ao texto qualquer nova contribuição» (7). Agora, mesmo através da labuta do Sínodo, surgem finalmente os traços marcantes do programa papal. Não perdemos pela demora, pois ele constitui um dos maiores documentos pontifícios de todos os tempos, só ligeiramente ultrapassado em dimensão pela exortação de João Paulo II Pastores Dabo Vobis de 1992, resultado do VIII Sínodo Ordinário, em 1990.


1. Conteúdo


O texto é uma maravilhosa reflexão sobre uma das tarefas mais centrais da Igreja de sempre, a evangelização. Com o seu estilo inimitável, certamente o documento ficará na história como uma das grandes proclamações sobre o tema, ao nível do melhor que se tem publicado acerca da evangelização.


A sua vastidão e profundidade impedem que se tente sequer uma descrição breve. De facto, a evangelização é aqui discutida em todas as suas dimensões, das grandes questões teológicas (e.g. nº 111-134) a pormenores pastorais (e.g. 145-175). Isso leva o texto a abordar inúmeros temas concretos, dos obstáculos sociais ao anúncio de Cristo (52-109) à preparação das homilias (135-159), das implicações sociais da proclamação doutrinal (177258) aos diálogos ecuménico (244-246) e com a ciência (242-243), do aborto (213-214) e crise da família (66-67), ordenação das mulheres (104) e problemas económico-financeiros (53-60; 202-204). Trata-se de um grande tratado. que funde a eclesiologia, missionação, liturgia e catequese numa única elaboração.


O elemento mais marcante é aquele estilo claro, singelo, cortante e sugestivo que estes poucos meses tornaram já tão conhecido. A exortação ressuma com as expressões favoritas do Papa, que ele fez famosas: «Os evangelizadores contraem assim o “cheiro de ovelha”, e estas escutam a sua voz» (24); «Se um pároco, durante um ano litúrgico, fala dez vezes sobre a temperança e apenas duas ou três vezes sobre a caridade ou sobre a justiça, gera-se uma desproporção, acabando obscurecidas precisamente aquelas virtudes que deveriam estar mais presentes na pregação e na catequese. E o mesmo acontece quando se fala mais da lei que da graça, mais da Igreja que de Jesus Cristo, mais do Papa que da Palavra de Deus» (38); «A Igreja “em saída” é uma Igreja com as portas abertas. Sair em direcção aos outros para chegar às periferias humanas não significa correr pelo mundo sem direcção nem sentido. Muitas vezes é melhor diminuir o ritmo, pôr de parte a ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou renunciar às urgências para acompanhar quem ficou caído à beira do caminho» (46); «Muitas vezes agimos como controladores da graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa» (47); «prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças» (49).


Os contributos da encíclica são muitos e muito valiosos, espantosos até, merecendo repetidas e atentas leituras, para retirar todo o proveito que escorre a cada passo. Só para referir um dos mais notáveis, no capítulo IV, o Papa Francisco apresenta «quatro princípios relacionados com tensões bipolares próprias de toda a realidade social», o que constitui uma genial e original síntese e contributo para a Doutrina Social da Igreja. Segundo o Papa, «para avançar nesta construção de um povo em paz, justiça e fraternidade» (221) é preciso não esquecer quatro elementos básicos: «o tempo é superior ao espaço» (222-225), «a unidade prevalece sobre o conflito» (226-230), «a realidade é mais importante que a ideia» (231-233), e «o todo é superior à parte» (234-237). Desta forma quase acidental, Francisco consegue trazer um resultado brilhante e inédito a um dos temas mais estudado, debatido e analisado de toda a actividade eclesial.


Muitos outros exemplos podiam ser aduzidos, intuições e análises igualmente preciosas. É importante que fiéis, e sobretudo os clérigos, se habituem a vir a este texto frequentemente, para retomar uma meditação sempre frutífera sobre uma das mais relevantes actividades eclesiais.


2. Polémica


Para terminar este texto vale a pena tratar ainda brevemente aquele ponto que é, certamente, um daqueles que se revelou mais polémicos. Nas habituais leituras apressadas dos media (que neste caso foram ainda mais ligeiras que o costume, devido à dimensão e abrangência do documento), houve um facto que se destacou: as críticas consideradas acérrimas ao sistema capitalista.


Inclusivamente o habitualmente sóbrio Wall Street Jornal, através do seu comentador Liam Moloney deu, logo a 26 de Novembro, dia da divulgação pública da exortação, datada de 24, nota do documento referindo que o Papa, «usando linguagem invulgarmente brusca (unusually blunt), criticou a economia de mercado» (http://online.wsj.com/news/articles/SB10001424052702303281504579221933931268354)


Vale a pena referir que o texto nunca usa a palavra «capitalismo» ou «capital», emprega apenas uma vez a palavra «lucro» (56), e nove vezes a palavra «mercado» (54-57, 70, 202, 204). Mas é verdade que emprega frases bastante contundentes. Por exemplo: «Assim como o mandamento “não matar” põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer “não a uma economia da exclusão e da desigualdade social”. Esta economia mata» (53); «O desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira» (55); «Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras» (56) «O dinheiro deve servir, e não governar!» (58), «O sistema social e económico é injusto na sua raiz (...) É o mal cristalizado nas estruturas sociais injustas, a partir do qual não podemos esperar um futuro melhor» (59) «Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado» (204)


Será isto uma novidade doutrinal? Talvez na forma, mas não de todo no conteúdo. Uma breve inspecção à última encíclica social, a Caritas in Veritate (CiV) de Bento XVI (2009), encontra ideias equivalentes, expressas de forma também clara: «Situações de subdesenvolvimento, que não são fruto do acaso nem de uma necessidade histórica, mas dependem da responsabilidade humana. É por isso que os povos da fome se dirigem hoje, de modo dramático, aos povos da opulência». (CiV 17); «os efeitos deletérios sobre a economia real duma actividade financeira mal utilizada e maioritariamente especulativa» (CiV 21) «Cresce a riqueza mundial em termos absolutos, mas aumentam as desigualdades. Nos países ricos, novas categorias sociais empobrecem e nascem novas pobrezas. Em áreas mais pobres, alguns grupos gozam duma espécie de superdesenvolvimento dissipador e consumista que contrasta, de modo inadmissível, com perduráveis situações de miséria desumanizadora. Continua o escândalo de desproporções revoltantes». (CiV 22).


É verdade que o estilo é agora diferente, com o atrás referido tom cortante, directo, envolvente a que o Papa Francisco nos habituou. É verdade também que esse modo já criou enganos em muitos, que quiseram ver nele uma alteração do rumo da doutrina da Igreja. Mas isso é evidentemente falso. Francisco não pretende mudar a doutrina nem os princípios. Aliás não lhe compete fazer tal, porque ele não é dono da Igreja, mas seu servo. A sua atitude simples, directa e brilhante tem de ser bem entendida: as suas frases devem de ser lidas no quadro de uma ortodoxia serena, que ele sempre afirmou e que é a aquela em que Jorge Bergoglio sempre viveu. Se nos primeiros episódios do pontificado houve compreensível surpresa, agora já não é razoável insistir no que apenas pode ser um abuso e distorção das suas declarações.


Por exemplo, na entrevista que deu à La Civiltà Cattolica, publicada a 19 de Setembro de 2013, ele foi interpretado como menorizando a defesa da vida pela Igreja, quando disse coisas como «Não podemos insistir somente sobre questões ligadas ao aborto, ao casamento homossexual e uso dos métodos contraceptivos. Isto não é possível. Eu não falei muito destas coisas e censuraram-me por isso». É evidente que a dedução de uma nova tolerância aos ataques contra a vida e família é totalmente injustificada. Na mesma entrevista ele parecia recusar a «hermenêutica de continuidade» que Bento XVI proclamara na interpretação do Concílio Vaticano II ao dizer: «O Vaticano II foi uma releitura do Evangelho à luz da cultura contemporânea (...) a dinâmica de leitura do Evangelho no hoje, que é própria do Concílio, é absolutamente irreversível». Também aqui a inferência revolucionária é patentemente vazia. Talvez ainda mais polémica foi a entrevista a Eugenio Scalfari, no "la Repubblica" a 1 de Outubro. Aí o Papa foi acusado de defender o relativismo ao afirmar: «Cada um de nós tem a sua própria visão de bem e de mal, e deve escolher seguir o bem e combater o mal como ele mesmo o conceba». Ora esta, como as outras interpretações, são erros evidentes dos que quiseram impor as suas ideias ao Papa.


No caso das expressões da Evangelli Gaudium sobre economia, é preciso acrescentar que o Papa Francisco se precaveu explicitamente de abusos na interpretação da sua linguagem. De facto ele fez questão de afirmar: «Aqui não é o momento para explanar todas as graves questões sociais que afectam o mundo actual, algumas das quais já comentei no terceiro capítulo. Este não é um documento social e, para nos ajudar a reflectir sobre estes vários temas, temos um instrumento muito apropriado no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, cujo uso e estudo vivamente recomendo.» (184). Desta forma clara, o Pontífice reafirma toda a tradicional doutrina sobre o tema.


Então porque disse ele o que disse? As finalidades das referidas expressões bruscas são evidentes. Elas surgem em dois tópicos concretos: o primeiro para esclarecer o enquadramento prévio dos obstáculos à evangelização (53-60); o segundo lidando com a dimensão social da mesma (186-208). Ou seja, o Papa não está a tratar do valor da economia ou a fazer um juízo axiológico acerca da actividade produtiva e mercados. Essa vem no Compêndio e foi claramente mantida. O que aqui se trata é de evangelização e dos impedimentos que o sistema lhe coloca ou das necessidades que ele impõe à intervenção cristã. Naturalmente que isso exige que a atenção se dirija aos aspectos mais graves, porque só esses causam dificuldades. Só com uma flagrante má-fé se podem retirar as conclusões genéricas que tantos alinham.


A grande exortação Evangelii Gaudium constitui um documento ímpar, que merece atenta e repetida atenção. Este programa de pontificado figurará durante muito tempo entre as referências eclesiais mais marcantes. Tal como a encíclica inaugural de Paulo VI, Ecclesiam suam que, versando sobre o mesmo tema, ainda hoje, 50 anos depois de escrita, é citada com grande proveito, por exemplo precisamente neste novo documento.