Texto escrito aquando da morte de João Paulo II
O concurso absolutamente extraordinário de gente peregrinando ao encontro dos restos mortais e do funeral de João Paulo II é um evidente sinal do Céu confirmando a sua santidade. Pessoas de todas as idades e condições sociais, dos mais diversos credos e desencontradas ideologias, ricos e pobres, poderosos e desamparados, doentes e sãos, amigos e inimigos se unem indo ao encontro deste santo portentoso. Veremos, por estes tempos, porventura, coisas ainda mais extraordinárias – será impossível que agora lá do Céu ele não cuide daqueles que tanto amou e, num certo sentido, não complete o trabalho de evangelização que aqui iniciou.
João Paulo II é em primeiro lugar um milagre de Deus criador. De facto, mesmo do ponto de vista meramente humano foi um fenómeno, como dizia dele o Cardeal O’Connor. Homem muito inteligente, mesmo genial, profundamente sábio, estudioso árduo, de um equilíbrio singular, bem-apessoado, atlético e desportista, com enorme determinação, com uma capacidade ímpar de ver o essencial, francamente decidido, um grande comunicador, excelente nas relações humanas, unificado, activo e contemplativo, poeta, com imensa capacidade de escuta, intensamente solidário, amigo excepcional, repleto de talentos.
Mas o mais extraordinário é que colocou tudo isto ao serviço do seu Senhor, Jesus Cristo, nosso Salvador e Redentor, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Por Ele se deixou purificar, integrar, aperfeiçoar, elevar e santificar. Cristo foi de tal maneira o centro de toda a sua vida que por Ele se deixou, configurar. Este Papa foi essencialmente Cristiforme. Todo ele foi transparência de Jesus Cristo, irradiando o Seu esplendor, o esplendor da Verdade, da Vida, da Misericórdia; este luzimento a que chamamos liberdade, encontro e comunhão.
Mas esta sua conformação com Cristo foi nele, singular e misteriosamente, plasmada por Maria no Espírito Santo: Totus Tuu – Todo Teu Jesus Cristo por Maria e em Maria por virtude do Espírito Santo, Seu Esposo Divino. Se Maria é o ícone do Espírito Santo, João Paulo II, seu filho, dela, predilecto, foi o espelho desse ícone, o portador do Espírito para os nossos dias.
Viveu o seu ministério petrino – de sucessor de Pedro – numa modalidade exemplarmente Mariana e também por isso foi ícone da Igreja. Mais especificamente ainda foi a “encarnação” do Concílio Vaticano II – nele “tomou carne” o espírito do Concílio, isto é, o Concílio personificou-se nele. Creio poder dizer que esse grande dom - o Concílio - que o Espírito Santo concedeu ao mundo e à Igreja não gerou somente documentos esplêndidos, mas também este Papa luminoso. O pontificado de João Paulo II é um verdadeiro desabrochar e, também, desenvolvimento do verdadeiro Vaticano II, cujos alicerces estão fundados na Sagrada Escritura e na Sagrada Tradição.
Tudo isto só foi possível porque a sua humildade era abissal. Subiu tanto porque sempre desceu, avançou imenso porque sempre serviu. O seu ir à frente, rasgando e desbravando caminhos foi sempre fruto do seguimento como nos mostrou bem em Fátima recusando-se a ir à frente do andor de Nossa Senhora, como todos os padres e bispos, e colocando-se atrás, deixando-se guiar. Porque Cristo foi enviado pelo Pai a percorrer o caminho do homem, deixou-se enviar por Cristo para fazer do homem o seu caminho. Foi assim com Cristo, foi assim com a Virgem Maria, com os santos, com a Igreja.
Não me admiraria que um dos primeiros gestos do pontificado do próximo Papa fosse a canonização de João Paulo II.
Nuno Serras Pereira
06. 04. 2005