quarta-feira, 4 de abril de 2012

O Parecer do CNECV sobre as Alterações à Lei da PMA - por Pedro Vaz Patto


O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) emitiu parecer sobre as propostas de alteração à lei da procriação medicamente assistida.  Nele se afirma que não há uma justificação eticamente válida para negar o acesso a essas técnicas a pessoas sós ou que vivam em união homossexual (sobretudo se o fazem com os seus próprios recursos). E nele se aceita a maternidade de substituição (aí designada por “gestação” de substituição”), sob um conjunto de condições tendentes a eliminar ou reduzir os seus possíveis malefícios.
           
Invoca-se o direito à parentalidade de quaisquer candidatos, sem discriminação, e alega-se que não se justifica privilegiar uma forma de família em relação a outras e que o risco de instrumentalização do filho não depende do facto de os progenitores serem, ou não, um casal heterossexual.
           
Contra esta tese, há, porém, que invocar a primazia do bem do filho sobre as pretensões dos candidatos. De outro modo, o filho seria instrumentalizado como objecto de um direito que se reivindica (não há um “direito ao filho”). E o bem do filho exige, por um lado, que ele seja fruto de uma relação de amor, não de uma afirmação individual. E exige que tenha um pai e uma mãe (cada um deles único e os dois complementares), não só um pai, só uma mãe, dois pais ou duas mães.
           
Quanto à “gestação de substituição”, o parecer reflecte o propósito (louvável) de acautelar uma série ampla de riscos que essa prática tem suscitado nos países onde foi legalizada. Um propósito que, pelo contrário, os proponentes das alterações em discussão parlamentar têm descurado. Mas as soluções indicadas (como outras que poderiam ser alvitradas) serão sempre insatisfatórias e não eliminam esses riscos, que só a efectiva proibição dessa prática elimina. Mesmo com todas essas (ou outras) cautelas, não deixamos de estar perante uma instrumentalização da criança que nasce e da mulher gestante. A esta continuará a ser sempre imposta por contrato a obrigação de abandonar o ser que acolheu dentro de si e com quem partilhou aquela que é talvez a experiência mais íntima, intensa e marcante da vida de uma mulher.
           
Indica o parecer que à mulher gestante deve ser reconhecida a faculdade de mudar de ideias e assumir a maternidade até ao início do parto. E porque não logo a seguir, ou enquanto amamenta (uma questão – a de saber quem amamenta - que o parecer também indica como necessário objecto do contrato)? E, se não o fizer, fica privada do direito de visitar a criança no futuro? E, nesse caso, em que a mulher gestante muda de ideias e assume a maternidade, ficam os pais genéticos privados de qualquer direito, sendo eles pais genéticos?. Quem será, nesse caso, o pai da criança (se é que o tem)? Mudando de ideias, a mulher fica obrigado a indemnizar os pais genéticos (qual o sentido da sua vinculação)?
           
Indica, por outro lado, o parecer que a mãe gestante deve ser saudável e o contrato deve conter disposições para o caso de malformação ou doença fetal. Mas em que sentido devem ser essas disposições (obrigação de abortar, possibilidade de o casal beneficiário se desvincular e abandonar a criança)? Se a mãe gestante não for, afinal, saudável, ou vier a revelar-se uma sua doença durante a gravidez, que responsabilidade tem perante o casal beneficiário? Este pode, por isso, desvincular-se e abandonar a criança?
           
Pretende o parecer que seja garantida a avaliação da motivação altruísta da mãe gestante e a impossibilidade de subordinação económica desta em relação ao casal beneficiário. Mas a realidade é o que é e o direito não pode ilusoriamente pretender modificá-la: só o desespero de graves carências económicas leva mulheres a sujeitar-se a tão traumatizante experiência (é assim na Índia e em muitos países). De forma oculta ou indirecta, as contrapartidas económicas hão-de verificar-se. E as pressões que tal situação de carência suscita tornam vãs quaisquer cautelas e garantias jurídicas. Com tais pressões, a mulher gestante pode acabar, na prática, por sujeitar-se àquilo que o parecer pretende afastar (como a imposição de regras de conduta durante a gravidez pelo casal beneficiário).
           
Talvez só a ligação familiar entre a mãe gestante e o casal beneficiário possa garantir a motivação altruísta daquela. Mas os problemas que essa ligação acarreta (porque muito mais difícil será que a mãe gestante se desligue da criança e mais fácil e mais complexa a possível “concorrência” entre as duas “mães”) tornam-na desaconselhável a vários títulos.
            
Todos estes riscos são inelimináveis se a prática não for proibida. Nenhuma das possíveis alternativas para as situações indicadas é isenta de malefícios e quase todas têm uma faceta chocante. É assim porque na “maternidade de substituição” (“barriga de aluguer”, “gestação de substituição” –chame-se o que se quiser), com todas as possíveis regulações jurídicas, a criança nunca deixa de ser tratada como um objecto de um contrato (uma mercadoria) e a gestação como uma qualquer prestação de serviços (como se a mulher gestante fosse uma máquina incubadora).