Caros irmãos e irmãs,
há muitos anos, na minha
juventude, estava também eu aqui no meio da grande multidão dos peregrinos numa
jornada luminosa como esta. Sinto-me também hoje próximo de cada um de vós, com
o olhar simples e espantado dos três pastorinhos Lúcia, Francisco e Jacinta,
dirigido para a Mãe do Senhor, na escuta da sua voz. Ela envia-nos para a
Palavra de Deus que ressoou agora nos nossos ouvidos e nos nossos corações,
nesta solene liturgia. Escolhemos para a nossa reflexão um único símbolo que
possa recolher na unidade a multiplicidade dos temas, dos pensamentos, das
imagens que as três passagens bíblicas nos ofereceram [Apocalipse 21, 3-4,
Romanos 12, 1-2, Mateus 12, 46-50].
É São Paulo que o propõe no
fragmento da sua obra-prima teológica, a carta aos Romanos, acabado de
proclamar. O Apóstolo diz literalmente, em grego: «Oferecei os vossos sómata,
[os vossos] corpos a Deus». Eis o grande símbolo que está em nós e ao
nosso lado, antes, que somos nós próprios e os nossos irmãos e irmãs. De facto,
o corpo não é só um aglomerado de células, um organismo biológico, mas é a sede
da nossa alma, da consciência, da mente; é a via para comunicar a alegria e o
amor mas também a dor e o ódio; é «o templo do Espírito Santo», como dirá aos
cristãos de Corinto o mesmo Paulo (1 Cor 6, 19), mas é também um santuário que
pode ser dessacralizado pelo pecado.
Infelizmente, na sociedade
contemporânea, são os corpos sem alma a dominar, tornando-se carne sem
espírito, ora adorada ora desprezada. Tinham razão os indígenas brasileiros que
disseram ao escritor alemão Michael Ende: «nestes últimos tempos, andamos para
a frente tão rapidamente como progresso que temos de parar um pouco para
permitir às nossas almas atingir-nos». Ora bem, o corpo é uma arquitetura
admirável que tem sobretudo no rosto a via para se abrir ao mundo e ao próximo.
Procuremos, então, contemplar o rosto em alguns dos seus traços essenciais.
O apóstolo Paulo, seguindo sempre
as suas palavras gregas originais, introduz logo a seguir o nous, isto é
a mente que tem na fronte e no cérebro a sua representação física. É o
pensamento, a razão, o conhecimento. Como dizia o grande crente, filósofo e
cientista Pascal, é esta a nossa dignidade mas também o nosso risco. Escrevia:
«Dois são os excessos: excluir a razão, admitir apenas a razão». E continuava:
«Empenhar-se em pensar bem é este o princípio da moral... Mas o último passo da
razão é reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam».
Na cultura contemporânea, que é
muitas vezes fluida, inconsistente, semelhante a uma neblina que não conhece
pontos firmes morais e luzes de verdade, o Apóstolo convida-nos a não nos
«conformarmos com este mundo», navegando na superfície, à deriva, sem refletir
e interrogar, sem procurar e julgar. Paulo, ao contrário, exorta-nos a
«transformar-nos», tende a mente fixa no que «é bom, agradável a Deus e
perfeito».
No rosto brilham os olhos:
eles aparecem no texto fulgurante do Apocalipse que escutamos. A cena é
emocionante e João retira-a do profeta Isaías: na cidade da esperança, a nova
Jerusalém, Deus passará diante de todos os homens e mulheres e, quando vir as
lágrimas descer dos seus olhos, irá ele mesmo enxugá-las. E das estradas
daquela cidade logo fugirão todas as tristes presenças que infelizmente neste
momento se alojam ainda em Fátima, em todas as cidades e vilas de Portugal, nas
nações das quais provêm os peregrinos, nas extremas terras desoladas da Ásia ou
da África, nas metrópoles caóticas.
Estes terríveis habitantes chamam-se
«Morte, Luto, Lamento, ânsia». Muitos de nós viemos aqui com olhos velados de
choro. Um antigo poeta grego, Ésquilo, exclamava: «Infinita é a respiração da
dor que sobe da terra ao céu. Existirá um deus que a recolha?». A sua pergunta
cética não tinha resposta: Nós, ao contrário, apresentamos a nossa secreta
bagagem de sofrimentos, de doenças, de mal, de pecado, de solidão, de
incompreensões a Maria para que a entregue ao seu Filho. E Ele descerá ainda ao
meio de nós para cancelar, certamente alguma lágrima, mas sobretudo para trazer
sobre si connosco este peso, caminhando ao nosso lado pelas estradas da nossa
vida quotidiana.
Muitas vezes cobrimos a cara com
as mãos para esconder o choro ou a vergonha ou para nos isolarmos na
meditação. Ora bem, depois de mente e dos olhos, as mãos são o terceiro sinal
corporal que encontramos na Palavra de Deus desta liturgia. É na cena
evangélica que mostra, quase escondida entre a multidão a escutar Jesus, também
a sua mãe Maria. Cristo estende a mão para os discípulos e define o vínculo
íntimo que o une à sua mãe e a todos nós. É o enlaçar das mãos. E logo a seguir
afirma: «Quem faz a vontade do meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão,
minha irmã e minha mãe».
«Fazer», operar é o verbo típico
das mãos. Não devemos ter medo de sujar as mãos, ajudando os miseráveis da
terra: para que servirá ter as mãos limpas, se as temos no bolso? Um autor
espiritual, Thomas Merton, afirmava: «A vida escapa-nos das mãos, pode escapar
como areia árida ou como semente fecunda de obras justas». O aperto de mãos que
nos daremos como sinal de paz seja a promessa de fraternidade operativa,
cumprindo «a vontade do Pai que está nos céus». Fazendo assim, daremos a nossa
mão ao próprio Deus e, como dizia o escritor francês Julien Green, «quando se
dá a mão a Deus, ele não larga facilmente a presa».
O corpo, a mente, os olhos, as
mãos: estes símbolos que estão em nós próprios falem sempre aos nossos corações
e orientem a nossa vida, sob o olhar de Maria e do seu Filho Jesus.
Lembremo-nos uns dos outros, unidos na mesma fé e na comunhão de afetos, para
além das distâncias e das dificuldades das línguas. Esta noite, regressado a
Roma, da minha janela que dá para a basílica e a cúpula de São Pedro e para a
residência do Papa Bento XVI, do qual sou colaborador, confiarei a Deus o nosso
encontro. Ele, que conhece cada rosto das suas criaturas, vos abençoe e ponha
ao vosso lado um «anjo da guarda à noite transparente», como cantava de Fátima
o vosso poeta Vitorino Nemésio. E, a cada um de vós, Maria refaça a promessa
dirigida à Lúcia: «Eu nunca te deixarei. O meu Imaculado Coração será o teu
refúgio e o caminho que te conduzirá a Deus».