sábado, 15 de dezembro de 2012

O Antinatal - por Nuno Serras Pereira


Estavam aglutinados ao redor de um rude tronco seco e carcomido que se alargava numas ásperas hastes espinhosas das quais pendiam abundantes carvões, mais escuros que o sombrio negrume do breu. No sopé, uma gruta escabrosa, despojada, sinistra, patenteava arrogante a sua vacuidade abjecta. Numa caótica cacofonia guinchavam multiplicados alaridos raivosos contra os sequazes reunidos em jubilosas celebrações festejando o feliz Nascimento, aquela Luz intolerável que irrompera, sem a molestar, na concavidade cerrada da Mulher, construindo-Se da sua carne, nutrindo-Se do seu sangue, dela brotando sem ofender a sua integridade, e, que num abraço de união, Se cravara na árvore, e, nela padecendo e morrendo, a reverdecera para sempre, e Se oferecera, dela pendendo, como Fruto de imortalidade, suco de amorosos inebriamentos gozosos, sabor de suavidades pacíficas, nutrimento de inteireza eterna.


As fúrias urravam com o propósito de esvaziar a gruta, grunhiam reivindicações esterilizadoras, bramiam matanças de inocentes. O Maligno não suspeitara e, por isso, Herodes não se antecipara, falhando ignominiosamente a sua missão. O Inocente passara despercebido, como se fora filho da conjugalidade de José e de Maria, e não O Filho, sem pai na terra, sem mãe no Céu. 


Os ensanguentados olhos revirados, os medonhos esgares coléricos, as orgiásticos agitações convulsas acompanharam um rugido tremendo, um uivo pavoroso: Não há Deus! Nós temos como deusa a Sofia! A grande fornicadora, a que tem comércio com a Besta prazenteira, potente e opulenta. Só ela, devorando os tumores canalhas que invadiram os nossos ventres, nos exsuda a liberdade! Resgata-nos da opressão! A virgindade é uma patologia! A castidade é asquerosa! A maternidade é uma monstruosidade! A gravidez, uma pulhice infame! Cancros nefastos da odiosa nupcialidade patriarcal! Uma deformidade soez de uma evolução pervertida, que urge corrigir! E ouvia-se um gargalhar lúgubre, horripilante.


E num frenesim voluptuoso grunhiam diabolicamente paródias sacras - Desonra a deus nos céus e extermínio total das pessoas do seu agrado. Nós te desprezamos, nós te amaldiçoamos, nós te execramos, etc. -, enquanto giravam numa exaltação delirante ao redor de uma prenhe, entretanto trazida, quase em ponto de parir. De repente, uma voz soturna bradou: chegou a hora, é quase meia-noite! Então, num instante, com uma tranquilidade fria, compuseram um ar profissional, envergaram batas, calçaram luvas de látex, colocaram a grávida na disposição adequada, manobraram nas suas vísceras de modo a que o nascituro invertesse a posição. Começaram então os esforços cuidadosos para que iniciasse o saimento da sua morada pelos pés. Gradualmente conseguiram extrair a quase totalidade do corpo até que somente a cabeça ainda permanecesse, na sua maior parte, no corredor de saída. Em seguida recorreram aos utensílios indicados para as incisões necessárias colheita, primeiro dos rins, depois dos pulmões e logo do coração. Após estas subtracções, e o devido acondicionamento dos órgãos, o principal fez uma incisão na nuca do nascituro, enfiou um tubo conectado a um aspirador, ligou-o, e após o esvaziamento cerebral retirou a cabeça da porta. Irrompeu, então, um aplauso geral com grandes hurras. Abriram-se garrafas de champanhe, congratularam-se, abraçaram-se efusivamente, atolaram-se no lodo da sua promiscuidade, fuçaram com volúpia nas suas lubricidades até à exaustão. 


Depois, disseram-se: Já que não o pudemos aniquilar há dois mil anos, eliminamo-lo na criatura feita à sua imagem e semelhança, destruímo-lo na natureza que ele assumiu, estraçalhamo-lo naqueles por quem deu a vida, assolamo-lo nos que quis fazer participantes da sua natureza! Não há ódio maior do que tirar a vida aos seus amigos! A besta, o toiro, o boi, o grande cobridor da Sofia é o grande deus a quem adoramos! É dele que nos vem a vontade de potência, que nos dá o poder; a cobiça, que nos enriquece; a sofreguidão dos prazeres ilimitados, que tudo nos autoriza.

15. 12. 2012