In Brotéria
São várias as notícias, umas mais antigas e outras mais
recentes, que fazem temer que a pretexto do respeito pela dignidade e não
discriminação das pessoas de orientação homossexual, se pretenda limitar, de
uma forma generalizada, a liberdade de expressão quanto ao juízo moral sobre a
prática homossexual (não sobre a pessoa em si mesma, com a orientação sexual
que não escolheu, mas sobre uma conduta e uma prática voluntárias).
Vejamos algumas dessas notícias.
O caso que em primeiro lugar suscitou mais clamor foi o
da condenação do pastor pentecostal sueco Ake Green. Por ter declarado
publicamente, evocando as referências à prática homossexual no Antigo
Testamento e nas cartas de São Paulo, que essa prática representa “uma
perversão” e um “tumor na sociedade”, e que a tendência homossexual não era
inata e era suscetível de mudança, sem ter deixado de afirmar que não condenava
as pessoas, pois Jesus nunca inferiorizou ninguém, Ake Green foi judicialmente
condenado pelo crime previsto no artigo 16.6, 8 do Código Penal sueco (ameaça
ou injúria para com um grupo de pessoas com referência à sua raça, cor, origem
nacional ou étnica, confissão, fé ou orientação sexual). Em recurso, veio a ser
absolvido, já em 2005 [1].
Em 2006 o deputado francês Christian Vanneste foi
condenado, pela Cour Corretionelle de
Lille, por “injúrias públicas contra grupo de pessoas em razão da orientação
sexual”, por ter afirmado que o comportamento homossexual é moralmente inferior
ao comportamento heterossexual, uma vez que, segundo a máxima kantiana, não
pode tornar-se regra universal sem dano para a Humanidade. Em recurso, veio a
ser absolvido pela Cour de Cassation,
por acórdão de 12 de Novembro de 2008[2].
Mais recentemente, foi noticiado que o deputado britânico
Edward Leight apresentou um projeto de lei (Bill
for the protection of freedom of speech and conscience) que pretende a proteção
da liberdade de expressão no âmbito das relações de trabalho, de modo a evitar
casos como o do Adrian Smith, punido pelo seu empregador por ter manifestado no
facebook a sua oposição à legalização
do casamento entre pessoas do mesmo sexo[3].
Em Março deste ano, o Ministro da Educação do Estado
canadiano de Yukon, invocando a legislação que proíbe a discriminação em função
da orientação sexual, proibiu o ensino do catecismo da Igreja Católica no que à
homossexualidade diz respeito nas escolas católicas que recebem fundos públicos[4].
Consta desse catecismo o seguinte:
«Apoiada na Sagrada
Escritura, que os apresenta como depravações graves (Gn 19, 1-29; Rm 1, 24-27;
1 Co 6,10; 1 Tim 1,10), a Tradição
sempre declarou que os atos de homossexualidade são intrinsecamente
desordenados (CDF decl. Persona humana 8). São contrários à lei natural, fecham
o ato sexual ao dom da vida, não procedem duma verdadeira complementaridade afetiva
e sexual, não podem, em caso algum, receber aprovação» (n. 2358)
Mas faz-se a
distinção entre o pecado e o pecador, entre o erro e a pessoa que erra, pois há
que condenar o erro e amar a pessoa que erra:
«Um número não
desprezível de homens e mulheres apresenta tendências homossexuais profundas.
Eles não escolhem a sua condição de homossexuais; essa condição constitui, para
a maior parte deles, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão
e delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer discriminação injusta»
(n. 2359)
Pois bem, foi este o ensinamento proibido nas escolas
católicas que recebem fundos públicos do Estado canadiano de Yukon. Proibição
que se noticia ter sido acatada[5].
A questão da distinção entre a condenação do erro e o
respeito pela pessoa que erra (“hate the
sin, love the sinner”) foi suscitada num outro caso judicial recente,
também relativo ao Canadá.
O Supremo Tribunal canadiano confirmou, em recurso, a
condenação, por parte da Comissão de Direitos Humanos da Província de
Saskatchewann, de uma pessoa que distribuiu panfletos que condenavam a prática
homossexual, apelando aos ensinamentos bíblicos que a apresentam como uma “abominação”,
condenando a propaganda da homossexualidade nas escolas, afirmando que esta não
é inata e a sua prática representa um comportamento aditivo e envolve uma maior
probabilidade de contaminação da SIDA e de abusos sexuais de crianças. Estava
em causa a aplicação do artigo 14º, 1, b), do Código de Direitos Humanos dessa
Província, que pune o chamado “discurso de ódio” (“hate speech”). Uma punição análoga à do artigo 240º, nº 2, b), do
Código Penal português, que, sob a epígrafe “discriminação racial, religiosa ou
sexual”, pune a conduta de quem «difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas
por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo ou
orientação sexual…».
A defesa argumentou que os textos em questão conciliavam
a condenação do erro com o respeito para com a pessoa que erra (“hate the sin, love the sinner”). Mas o
Tribunal não aceitou a relevância desta distinção, considerando que existe uma
forte conexão entre a orientação sexual e a conduta sexual, e que quando a
conduta visada pelo discurso é um aspeto crucial da identidade de um grupo
vulnerável, os ataques a esta conduta são equiparáveis aos ataques ao próprio
grupo. Será assim se o ataque a essa conduta provocar objetivamente o ódio e o
desprezo pelo grupo[6].
Situações
semelhantes a estas são apresentadas no Relatório de 2012 do Observatório sobre
a Intolerância e a Discriminação contra os Cristãos na Europa[7].
Todos estes episódios estiveram presentes na mente de
quem, em Itália, manifestou o receio de que o projeto de lei, recentemente
aprovado, sobre a “homofobia” e a “transfobia” (que pune a discriminação e agrava
as penas dos crimes cometidos em função da orientação sexual e da “identidade
de género”), possa representar um perigo para a liberdade de expressão. Afirmou
a propósito o Observatório Internacional Cardeal Van Thuan (dedicado ao estudo
e difusão da doutrina social católica)[8]:
«As notícias que
nos chegam de outros países da Europa, onde leis semelhantes já estão em vigor,
são alarmantes. Dizer que a família é somente aquela que é constituída por um
homem e uma mulher pode ser qualificado como homofobia e perseguição. A leitura
pública do livro do Génesis, sobra a criação do homem e da mulher, ou das
passagens de São Paulo sobre a imoralidade do ato homossexual, pode ser
considerada crime. Ensinar numa
escola qua a família é apenas uma pode ser considerado ato de discriminação por
ódio homofóbico».
Também alertou para este perigo, por exemplo, o Forum das Associações Familiares,
organismo que agrupa um grande número de associações católicas de apoio à
família[9].
Em atenção a estes alertas, foi proposto por um grupo de
deputados católicos um aditamento ao projeto inicial, que por várias pessoas
veio a ser denominado “cláusula de salvaguarda”, com o seguinte teor: «Não constituem discriminação as opiniões
assumidas no interior de organizações que desempenhem atividades de natureza
política, sindical, cultural e sanitária, de instrução, de religião ou de
culto, relativas à atuação dos princípios e dos valores de relevo
constitucional que caraterizam tais organizações». Este aditamento foi
aprovado, mas se há quem considere que com ele fica garantida a liberdade de
expressão, esta opinião não é, porém, unânime[10].
O que a respeito desta questão e de cada um dos casos
assinalados me parece de salientar é a importância de traçar uma fronteira que
salvaguarde a liberdade de expressão consagrada no artigo 19º da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, no artigo 37º da Constituição da República Portuguesa e
no artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. A punição do chamado
“discurso de ódio” (“hate speech”)
não pode servir de pretexto para impor um “pensamento único” e para punir
“delitos de opinião”. Não é aceitável que o comportamento homossexual seja
imune à crítica ou a um juízo ético, quando a tal crítica ou juízo não são
imunes quaisquer outros comportamentos ou atitudes. Num contexto social e
cultural tão cioso do valor da liberdade de expressão (por vezes, até em
excesso), não é aceitável que se usem “dois pesos e duas medidas”.
E essa fonteira há
de passar, precisamente, pela distinção entre o erro e a pessoa que erra.
É lícito criticar o erro (pode até
ser um dever moral fazê-lo), sem que isso permita desrespeitar a dignidade da pessoa que erra (numa perspetiva cristã,
não é só o respeito que a essa pessoa é devido, é também o amor). Não nos cabe
agora analisar cada um dos casos referidos e verificar se em cada um deles as
expressões usadas são as mais adequadas ou oportunas, e se em cada um deles foi
respeitada esta distinção. Ela foi, indubitavelmente, respeitada nos excertos
do catecismo da Igreja Católica acima mencionados, os quais, como vimos, já foram,
mesmo assim, considerados contrários ao respeito devido às pessoas de tendência
homossexual.
A distinção referida (entre a crítica de uma conduta e o
respeito pela pessoa em causa) deve servir também noutros âmbitos em que se
suscita a necessidade de concordância prática entre a liberdade de expressão e
o respeito pela dignidade da pessoa.
A crítica a determinada ideologia não pode, obviamente,
ser vedada em nome do respeito pelas pessoas que aderem a essa ideologia. O
respeito pelas pessoas que aderem ao comunismo, ao fascismo ou ao liberalismo não
impede a crítica a qualquer destas ideologias.
No âmbito da atividade política, a crítica de atos e
opções concretas (mesmo que em termos duros, agressivos ou injustos) é livre e
deve compatibilizar-se com o respeito pela dignidade das pessoas que aí atuam.
Esta distinção (entre a livre crítica dos atos e o respeito pela dignidade das
pessoas) não pode ser esquecida, para que se evitem dois extremos: um, o de
considerar que na vida política “vale tudo”, a dignidade das pessoas não conta
e a injúria e difamação de crimes passam a direitos; outro, o de limitar o
direito de crítica (base da vida democrática) em nome da tutela da dignidade e
honra das pessoas que atuam na política.
A distinção vale noutros âmbitos. O respeito pelas
pessoas que professam determinada religião (cristã, muçulmana ou outra), pela
sua dignidade e pelos seus sentimentos religiosos (o que supõe o respeito por
figuras e símbolos tidos por sagrados) não pode impedir a crítica à religião, à
religião em geral, ou a uma religião em particular. E é possível alcançar a
conciliação entre estas duas exigências se a crítica se situar no plano da
discussão racional e argumentada e do debate de ideias (a que se pode responder
no mesmo plano), não se confundindo com o escárnio e a ofensa gratuita (a que
não pode responder-se no plano da discussão racional e do debate de ideias).
E assim também no âmbito da crítica literária, artística
ou desportiva. Pode criticar-se o valor de uma obra ou de uma prestação (até de
modo fortemente depreciativo, eventualmente injusto), salvaguardando o respeito
devido à pessoa autora dessa obra ou prestação.
A punição do chamado “discurso de ódio” também há de ter
em conta esta distinção. Deve salientar-se que entre os fatores que, de acordo
com a generalidade das legislações que punem o “discurso de ódio”, identificam a
vulnerabilidade de um grupo carente de especial proteção, estão alguns (como o
sexo, a raça, a origem étnica, ou a deficiência, este habitualmente esquecido
pelas legislações) em relação aos quais não se suscita a questão da distinção
que vimos referindo. Mas não assim em relação a outros: o respeito devido às
minorias religiosas não impede a crítica à religião por elas professada. Do
mesmo modo, o respeito devido às pessoas de tendência homossexual,
particularmente importante por se tratar de uma minoria tradicionalmente marginalizada,
não pode impedir a crítica à prática homossexual, ou um juízo ético negativo a
respeito dessa prática.
Nesta linha, não me parece aceitável a argumentação do
Supremo Tribunal canadiano a que acima aludi, segundo a qual ao criticar uma
conduta que é constitutiva da identidade de um grupo estaremos a criticar (e
ofender) o próprio grupo. Em coerência com este raciocínio, aplicando-o a
outros âmbitos, chegaremos a consequências inaceitáveis para quem preze o valor
da liberdade de expressão: não seria possível a crítica a determinada religião
ou ideologia porque elas fazem parte da identidade de um determinado grupo
(como o faria a conduta homossexual) e esse grupo sentir-se-ia ofendido com a
crítica a essa religião ou ideologia.
É sempre possível, em qualquer destes casos, responder à
crítica no plano da discussão racional e argumentada, sem recurso a proibições
e condenações judiciais. Há quem pretenda aceitar o recurso a essas proibições
e condenações no âmbito da crítica à conduta homossexual, quando ele não é
aceite em qualquer outro âmbito.
Deve, pois, manter-se a distinção entre a livre crítica
de um comportamento e o respeito pela pessoa que adote esse comportamento, para
que sejam simultaneamente salvaguardados, em quaisquer âmbitos (sem “dois pesos
e duas medidas”), a liberdade de expressão e o respeito pela dignidade das
pessoas.
[1]
Pode ver-se informação sobre o caso em www.akegreen.org.
[3]
Ver www.mercatornet.com /conjugality/ 29/1/2013).
[4] Ver www.lifesitenews.com,21/3/2013,
e www.lastampa.it,
28/3/2013
[5] Ver www.lifesitenews.com,
18/10/2013
[6]
O acórdão pode ser consultado em http://scc.lexum.org/decisia-scc-csc/scc-csc/scc-csc/en/item
/12876/index.do.
[8] Ver www.zenit.org,
18/7/2013.
[9] Ver Avvenire, 25/7/2013
[10] Ver
Avvenire, 24/7/2013, e Adriana
Cosseddu, Riscrivere l´ Umanità
dell´Uomo?, in Città Nuova, nº
20, 25/10/2013, pgs. 20 e 21.