sábado, 21 de dezembro de 2013

O Mistério d’ Aquele Olhar - por Nuno Serras Pereira



20. 12. 2013

Casado há 35 anos tinha uma ranchada de filhos que eram o seu orgulho, o seu tesouro. Sentia-se profundamente reconhecido à sua mulher a quem amava mais do que a si mesmo, tal como Cristo que deu a vida pela Sua esposa, a Igreja. Ela era o seu fascínio, aquela que o fazia sair de si mesmo, que o centrifugava e o arrojava para as ignotas e aventurosas periferias, a que nunca se aventuraria por si mesmo e onde se prodigalizava derramando-se em generosidades que pensaria não só improváveis mas mesmo impossíveis. Era um milagre! Já há muitos anos, quando ainda era noivo, um Padre a quem tinha feito uma confissão geral, num santuário internacional, lhe dissera exactamente isso: “Tu, és um milagre!!”.  

Tempos houve na sua juventude em que tinha renegado a Fé na qual tinha sido baptizado, educado e crescido, tanto em família como na Paróquia e nos colégios que frequentara. Esta abjuração fora precedida, acompanhada e seguida de influências emburrecidas, abestalhadas, mesmo malignas, quer por companhias quer por leituras a que então não poucos prestavam uma veneração imbecil; e, pior ainda, pelos pecados multiplicados, não só correspondentes como excedentes das bestiagas que acenderam o rastilho daquela explosão bronca e demoníaca. “Desprogramou-se” então a si mesmo de modo a desmanchar sofregamente a sua identidade como pessoa, que tinha recebido do Criador ao ser gerado (a Moral Natural, segundo a razão), e a expulsar as Graças que lhe tinham sido comunicadas, ao longo dos anos, principalissimamente, pelos Sacramentos, mas também pelo ambiente familiar e colegial.

Esse frenesim vertiginoso a que se entregara era pois uma inversão inteira – a generosidade transformou-se em latrocínio; a castidade em promiscuidade, a luxúria mulheril em verriondez com machos quase tão lúbricos como ele; a sobriedade mutou-se em embriaguez quotidiana; o amor familiar em ódio entranhado; a Fé em esoterismos e ocultismos diabólicos; a modéstia numa soberba desmedida; a adoração a Deus em idolatria de si mesmo, ávida de sequazes fanáticos que lhe prestassem latria, não se coibindo de recorrer ao hipnotismo para subjugar as mentes e vontades alheias, subjugando-as aos seus propósitos luciferinos.

Um viripotente mulherico, por ele totalmente dominado, satisfazia-lhe, quando mais ninguém estava disponível, várias vezes ao dia, a sua volúpia libidinosa e desenfreada. Ora, os pais dessa vítima corrompida, tinham em casa, onde às suas ocultas sucediam estas orgias asquerosas, um quadro a cores do Sagrado Coração de Jesus. Era uma daquelas cópias de uma pintura ou desenho que se encontram às centenas senão mesmo aos milhares espalhados pelos lares cristãos das gentes pobres deste país. Enfim, uma possidoneira intolerável para quem tinha sido educado segundo os padrões estéticos próprios dos mais sofisticados museus e Catedrais. E, no entanto, tinha dificuldade em evitar aquela doçura mansa e humilde que se lhe apresentava à vista quando distraidamente calhava pousar o olhar naquela gravura. Incomodado com aquele esguardo, cravava então num desafio rebelde, insubmisso, os seus olhos naqueles olhos, provocatoriamente desfiando mentalmente afrontas, impropérios, mesmo blasfémias. Para seu enorme espanto e desconcerto aqueles olhos que pareciam verdadeiramente vivos conservavam, ou melhor, como que intensificavam o Seu amor por ele. E isto permaneceu ao longo de muitos meses, pelo menos de um par de anos. Supunha então que aquele quadro aparentemente reprodução de tantos outros manifestamente pirosos tinha sido dotado, por algum artista matreiro e gerigoto, de subtilezas magnéticas destinadas a endrominar as almas simples e incautas.

Sucedeu, entretanto, que uma cascata de acontecimentos galopantes totalmente imprevisíveis, como se se tratara de um Misterioso desígnio, ou “conspiração”, sobrenatural, o reconduzira a Deus, a Jesus Cristo, à Virgem Maria, à Igreja. Sentiu-se e soube-se completamente renovado e restaurado pelos Sacramentos da Confissão e da Eucaristia – matara o “homem velho” e renascera o “homem novo”. Quase sem se dar conta foi transformado num ardente apóstolo (enviado) arrebatando, para sua grande confusão, uma multidão de almas ao demónio e ganhando-as para Jesus Cristo. Foi transfigurado numa brasa, num engatatão fascinante, num sedutor, não como antes, que o fora primeiro de moças e depois de mancebos, mas de almas para Cristo.

Por engano, confundindo-a com a recente namorada, que mal conhecia, de um amigo, acolheu exuberantemente uma jovem vinda em camioneta de um retiro. Esse equívoco passageiro foi porém suficiente para se deixar encantar por aquela fádica imprevista que correspondeu efusivamente ao seu acolhimento festivo. Depois veio uma amizade que prestes se tornou namoro, mais tarde em noivado e veio a dar em casamento. Este foi abençoado com uma fecundidade abundante patente não só nos oito filhos gerados mas também na influência benigna exercida sobre os amigos deles, e na repartição generosa de bens espirituais e materiais por todos aqueles necessitados que podiam socorrer.

Tinham passado dez anos das bodas de prata, celebradas pelo Padre que tinha presidido ao seu matrimónio, quando alguns dias antes do Natal foi convidado com os seus para um jantar em casa daquela família que tinha numa das divisões o quadro, acima referido, representando o Sagrado Coração de Jesus. Os pais do seu antigo amigo e vítima, felizmente também ele recuperado em Cristo para a sua verdadeira humanidade, já tinham sido chamados à presença do Senhor. Os cinco irmãos com as famílias respectivas estavam todos. A anfitriã era a irmã mais nova, a única que quis ficar com a casa. Ficou contente ao ver um grande e maravilhoso presépio musgoso que dava o tom ao tempo que se celebrava. O Menino Jesus, desproporcionadamente grande em relação a todas as outras figuras, olhava-os de braços abertos, como que a pedir colo. Durante os aperitivos pretextando uma lavagem das mãos dirigiu-se em direcção à casa de banho que ficava perto do quarto onde estava dependurada a imagem. Acendeu a luz, olhou-a, nela atentou, remirou-a de ângulos e perspectivas diferentes, observou-a novamente. Não havia dúvida, não passava de uma reprodução igualzinha a milhares de outras disseminadas pelos casarios deste pequeno país. O olhar não tinha nada de especial, não havia doçura ou amor particular nem tinham a vida que neles topara tão repetidamente tantos anos antes - aquela Vida que, apesar da sua recusa obstinada em aceitá-la, teimou em derramar o Seu Amor sobre ele…

Regressado à sala, a mulher espantada do seu ar absorto e macambúzio dá-lhe uma ligeira cotovelada e dispara: que tens tu para estares assim tão demudado? Ainda agora estavas tão alegre e extrovertido… 

- Não é nada, filha, adiantou ele forçando um sorriso. Só que me dói um pouco a cabeça, deve ser deste ar pesado. Isto já passa.

No seu alheamento, chegada a hora da refeição, deixou-se ficar para trás contemplando o presépio. No peito do Menino surgiu num repente um coração abrasado em fogo vivo, palpitando de amor, e os Seus olhos faiscaram uma enorme benignidade. Estremecendo de alegria pensou é o Senhor! Foi também Ele então para me preparar para o Seu renascimento, o Seu Natal em mim.