quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

A Pedrada



Os quatro irmãos mais velhos, sendo eu o mais novo, quando éramos jovens, passámos grandes temporadas juntos na cidade de Abrantes, em casa da nossa avó paterna, viúva de há muito, desde os 17 anos de meu pai, que vivia em com a tia Mená (único jornalista português presente no Concílio Vaticano II), casada com tio Fernando, que veio a morrer num acidente de automóvel. Os avós maternos eram do Porto onde íamos em alternância a férias. A casa de S. Miguel dos avós do Porto, agora propriedade do Ministério da Cultura, tinha sido concebida e desenhada pelo avô, que tinha cursado engenharia na Bélgica, em estilo clássico com uns longes de Versalhes. Esta mansão tinha um grande jardim com um grande lago onde nadavam patos, um corte de ténis onde o tio Chico, que foi campeão nacional dessa modalidade, ensinava os filhos e sobrinhos a jogar, uns vastos relvados onde o mesmo tio treinava golfe e enormes arvoredos sombrosos. Por haver muito espaço, em três cantos do jardim foram construídas três moradias, com os respectivos jardins, para os filhos, exceptuada minha mãe porque os meus pais preferiram viver em Lisboa. Mesmo assim os três filhos mais velhos nasceram no Porto enquanto os quatro mais novos em Lisboa. Fica, pois, esclarecido que, como disse no início, sou o mais novo dos mais velhos e o mais velho dos mais novos. Na perspectiva optimista essa situação concedeu-me, pelo lado dos mais velhos, a possibilidade de aprender a seguir e obedecer e, pelo dos mais novos, a de liderar e arrastar; na pessimista, criou em mim uma indefinição ou mesmo um problema de identidade que marcando-me indelevelmente me obrigará a vagabundear até à hora da morte à procura do meu eu. Se, porventura, alguém o encontrar tenha a bondade de o capturar e entregar-mo; pode ser que o consiga encaixar em mim. Mas dizia eu (este eu é uma maneira de dizer, uma vez que ele anda por aí) que os meus tios e primos (de facto, a maioria eram primas) viviam naquele oásis em que nos acolhiam e pouco saíamos a não ser para ir ao cinema ou à discoteca (naquele tempo “boite” - buáte) e pouco mais.

A casa de Abrantes, pelo contrário, tinha, comparativamente, um pequeno quintal com jardim. Embora ampla não se comparava em extensão à do Porto e talvez por isso passávamos a maioria do tempo na rua e nos campos à volta da pequena cidade, que naquele tempo ainda era florida.

Acompanhante de sempre era o Armando, filho mais velho do Sr. Vieira (nosso jardineiro) e da Maria Florinda, um casal com uma ranchada de filhos, que nos estimavam muito e nós a eles. O Armando, hoje bombeiro, como o foi o pai, tinha uma capacidade inventiva notável e um bom humor maroto. Ainda me lembra da tia Mená que me preparava juntamente com ele (embora ele fosse mais velho) para a primeira Comunhão, lhe ter perguntado: Armando como é que se lava a alma?; ao que ele respondeu com o ar mais cândido do mundo: com água e sabão minha senhora. O seu forte podia não ser a catequese mas para coisas práticas não havia melhor. Entre outras era ele que nos fazia as fisgas com as quais íamos à caça de pássaros, e mais algumas coisas que será melhor não recordar.

Das muitas tropelias a que nos dávamos lembro uma em que nos dividimos em dois batalhões que declararam guerra um ao outro. Um deles era comandado pelo meu irmão mais velho, o general Miguel, que nomeou Brigadeiro o Toy, um fox terrier de manchas pretas e brancas e muito aguerrido, mais abaixo, incluindo o Gonçalo, estavam mais alguma rapaziada que alinhava connosco. O outro pelotão, liderado pelo Armando tinha-me a mim, ao Luís, e o resto do bando. As armas eram calhaus. O terreno de combate, o olival e os barrancos que iam das traseiras da Igreja de S. Vicente até às traseiras do Colégio das Irmãs Doroteias, onde às vezes íamos espreitar as moças durante os recreios, acenado sempre à Nelita, filha adoptiva do tio-avô Júlio, oficial que tinha combatido com bravura na 1ª Grande Guerra, e da tia Matilde.

A batalha decorreu com normalidade – correrias, escondimentos, armadilhas lançamentos, esquivezas, apedrejamentos.

Como se aproximasse a hora da merenda, nome que a avó dava com toda a propriedade ao que nós chamamos lanche, o Miguel, como primogénito, deu voz de acabar e ordem de marcharmos em paz. Um dos irmãos que combatia do meu lado, distraído como era, apanha um pedregulho, faz pontaria ao Miguel, atinge-o na cabeça, e pula de contente gritando orgulhosamente: acertei-lhe!, acertei-lhe! E todos nós, incluindo o mais velho, à uma: grande estúpido não vês que o jogo já tinha acabado!!! E lá fomos, indignados com aquela falta de respeito pelas regras, levá-lo, escorrendo sangue, ao hospital.

Talvez o hábito de partirmos tanto a cabeça nos levasse a desvalorizar o facto. Mas, não sei porquê, isto faz-me lembrar de algum modo a política em Portugal. O que interessa, como é patente no caso do aborto, não é a pessoa humana, se matamos ou deixamos de matar. O que importa é se cumprimos as regras que fizemos.

Mesmo agora a propósito do Freeport anda a turbamulta da comunicação social, dos políticos, das polícias e do ministério público numa enorme agitação e frenesim, numa convulsão vertiginosa, numa curiosidade angustiada em saber se o primeiro-ministro aceitou ou não subornos, a que chamam “luvas”, quando era ministro do ambiente do governo de António Guterres.

Longe de mim negar a importância do assunto, mas convenhamos que comparativamente à liberalização do homicídio/aborto em que toda a gente sabe e conhece as responsabilidades que ele teve, já como primeiro-ministro já como líder do partido socialista, a questão torna-se quase irrelevante. Por isso toda essa gente me faz lembrar garotos traquinas e irresponsáveis que precisam de amadurecer. E não me parece de todo indicado que o país esteja a ser conduzido por cachopos estroinas e doidivanas.

Nuno Serras Pereira
02. 02. 2009