terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Uma casa portuguesa, com Certeza

Pedro Gil

A Dúvida levantou-se tarde. Arranjou-se à pressa revendo os êxitos da véspera. Não tinha um segundo a perder. Exigia de si mesma ser muito metódica.

Bateu à porta do lado, na casa da Certeza, que compadecida, como sempre, lhe aviou uma buchazinha para mordiscar no caminho.

A Dúvida desceu as escadas a correr, e a Certeza ficou remoendo os seus mixed feelings sobre aquela irrequieta. Tanto talento desperdiçado...

A Dúvida andava naquilo há algum tempo, aí uns 200 anos. Tinha popularizado as perguntas "mas, qual é o mal?" sobre coisas que os milénios consideravam erros, e "mas, será mesmo assim?" sobre coisas que os séculos achavam certas.

Era mestra do questionar, embora com a irritante mania de não se interessar pelas respostas. Cresceu a sua fama de intelectual e dialogante. Especializou-se em comunicação, e era forte em estética. E nunca descuidou o seu jeito subtilmente sedutor.

Depois pensou que era perigoso eliminar a noção do certo e do errado. Então lembrou-se da saúde, do anti-tabagismo, das bandas gástricas e das trocas de seringas. E convenceu todos de que, mesmo que discordássemos sobre o extermínio dos mendigos, concordaríamos em que deveria ser feito em boas condições de higiene.

A Certeza era benevolente com a Dúvida e a sua paciência irritava mesmo alguns amigos. A casa da Certeza era uma algazarra: pobres, famílias, gente da rua, e crianças, muitas crianças. Porque em casa da Certeza havia poucas exigências, as fundamentais, as que tornam possível o riso, a brincadeira, as canções, os jogos, a fantasia, e a festa.

A Dúvida sabia que no dia em que a Certeza morresse, ela seria a primeira a ser chacinada. Mas semeou a ideia de que a Certeza era teimosa, avessa à mudança, triste, tirânica, cega e sem ideias. E que era feia, enrugada, voz áspera e com verruga no nariz. Que passava os dias sentados a pensar nos séculos antigos.

A Certeza sabia disso, mas conversava de bom grado com a Dúvida sempre que esta se dispunha. Como nessa tarde. Saíram ao parque. Disputaram sobre temas importantes. A Certeza conseguiu não se irritar quando a Dúvida - como fazia sempre - rematou: "bem, portanto estamos de acordo" - quando era óbvio que em nada estavam de acordo.

A Dúvida caminhava um pouco à frente, já treinada em tentar chegar antes do que a Certeza, o que lhe dava vantagem. Depois do recinto reservado aos adolescentes bêbados - uma das conquistas da Dúvida através do "mas, qual é o mal?" - apareceram as crianças, que sempre rodeavam a Certeza e fugiam da Dúvida.

Distraída com a algazarra, a passada da Dúvida tropeçou nalguma coisa sólida, impávida, uma autêntica pedra de tropeço, e estatelou-se no chão. Irritou-se muito, e muito especialmente porque há já 10 anos que a cena se repete. A pedra de tropeço é limpa, consistente, firme, e inabalável. E há 10 anos que exibe o seu nome esculpido em caracteres clássicos: INFOVITAE.