quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Aborto, Heresia e Excomunhão [1]


1 - A lei 6/84 de 11 de Maio que exclui a ilicitude em alguns casos de interrupção voluntária da gravidez, não somente despenalizou, como observaram então os Bispos Portugueses, mas realmente legalizou o aborto provocado, isto é, declarou que o mesmo, em determinadas e muito latas circunstâncias, era um direito de que a mulher grávida podia usufruir com o auxílio e a cumplicidade do Estado. Esta monstruosa violência é, como escreveram na altura os nossos Bispos, gravemente injusta e iníqua. Ao tempo, muitos colocaram a questão de saber se os deputados (baptizados, entenda-se) que tinham votado tal lei estariam ou não excomungados. Que eu saiba, a essa pergunta só respondeu o Padre João Seabra, no DN. Referindo-se ao cânone 1322 do Código de Direito Canónico (CDD), disse qualquer coisa de semelhante a isto: Quem carece habitualmente do uso da razão não pode ser excomungado. Nem todos, porém, terão ficado satisfeitos com esta resposta, aparentemente jocosa. A interrogação nascia de se saber que a Igreja pune com pena de excomunhão quem pratica o aborto ou nele coopera. Porém, uma vez que a pena existe para este ou aquele aborto concreto, não parece que se dê, sem mais, a tal cooperação directa do legislador abortistas – certamente, no entanto, cometem um gravíssimo pecado e serão, por Deus, responsabilizados das matanças havidas. O mesmo se poderia dizer dos governantes que possibilitaram e admitem a venda e distribuição das substâncias ou artefactos abortivos precoces, tais como o DIU ou a pílula do dia seguinte. Importa muito reparar no que habitualmente se passa por alto: no nosso país existe o aborto a pedido, ou se quisermos, a liberalização total do aborto, até à nidação ou implantação. Quer dizer, em Portugal todos os governantes e partidos políticos, com representação parlamentar, aceitam o recurso ao aborto como um direito. Adiante-se, de passagem, que é um erro gravíssimo que a luta contra o aborto se centre no aborto cirúrgico, ignorando quase por completo o precoce.


2. Ora, o facto de se admitir, obstinadamente, o aborto como um direito, ainda que pessoalmente se seja contra, e mesmo que somente em algumas circunstâncias e em certas fases do estádio de desenvolvimento do ser humano constitui uma heresia.


a) Vamos por partes. Importa, em primeiro lugar referir os cânones 750 e 751 do CDD: “Deve-se crer com fé divina e católica tudo o que se contém na palavra de Deus escrita e transmitida por Tradição, ou seja no único depósito da fé confiado à Igreja, quando ao mesmo tempo é proposto como divinamente revelado, quer pelo magistério solene da Igreja, quer pelo seu magistério ordinário e universal ... por conseguinte, todos têm a obrigação de evitar quaisquer doutrinas contrárias. Diz-se heresia a negação pertinaz, depois de recebido o baptismo, de alguma verdade que se deve crer com fé divina e católica., ou ainda a dúvida pertinaz acerca da mesma ... . Ora, uma proposição apresentada para ser crida, pelo magistério universal e ordinário, é de fé divina e católica, é uma verdade dogmática, e a doutrina contrária é formalmente herética.[2] Acresce que o cânone 750, ao aludir às verdades dogmáticas refere-se também à Lei Divina ou lei a crer. [3] Uma verdade formalmente revelada é aquela que Deus tornou clara directamente em seu próprio conceito ou termos – de um modo explícito ou implícito: explicitamente em termos directos ou equivalentes, implicitamente quando a verdade está incluída no que foi explicitamente revelado – a parte está incluída no todo, o particular no universal. [4]


Tudo isto se tornará, porventura, mais claro se nos recordarmos que Deus revelou o decálogo, declarando no quinto mandamento: Não assassinarás, isto é, não matarás o inocente nem o justo (Ex. 23, 7). Por isso, o Cardeal Ratzinger esclareceu que a doutrina da Igreja sobre a grave imoralidade da morte voluntária e directa de um ser humano é um dogma de Fide Divina et Catholicae (verdade de Fé Divina e Católica). [5] Também o então secretário da Congregação para a Doutrina da Fé e hoje Cardeal Arcebispo de Génova escreveu: “Estas doutrinas [“a morte directa e voluntária de um ser humano inocente é sempre gravemente imoral” e “o aborto directo constitui sempre uma desordem moral grave”], que até hoje não foram declaradas por um juízo solene, pertencem, no entanto, à Fé da Igreja e têm sido ensinadas infalivelmente pelo magistério ordinário e universal.”. [6]


b) Já em 1995, na encíclica Evangelium Vitae, João Paulo II tinha escrito: “... com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos da Igreja Católica, confirmo que a morte directa e voluntária de um ser humano inocente é sempre gravemente imoral. Esta doutrina, fundada naquela lei não-escrita que todo o homem, pela luz da razão, encontra no próprio coração (cf. Rm 2, 14-15), é confirmada pela Sagrada Escritura, transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal. A decisão deliberada de privar um ser humano inocente da sua vida é sempre má do ponto de vista moral, e nunca pode ser lícita nem como fim, nem como meio para um fim bom. É, de facto, uma grave desobediência à lei moral, antes ao próprio Deus, autor e garante desta; contradiz as virtudes fundamentais da justiça e da caridade. «Nada e ninguém pode autorizar que se dê a morte a um ser humano inocente seja ele feto ou embrião, criança ou adulto, velho, doente incurável ou agonizante.» ...”. (EV. 57); e ainda: “com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos — que de várias e repetidas formas condenaram o aborto e que, na consulta referida anteriormente, apesar de dispersos pelo mundo, afirmaram unânime consenso sobre esta doutrina — declaro que o aborto directo, isto é, querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto morte deliberada de um ser humano inocente. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal.” (EV. 62).


c) Vinte anos antes, a 18 de Novembro de 1974, com a Declaração sobre o Aborto Provocado, Paulo VI, através da Congregação para a Doutrina da Fé, quis dar ao mundo uma interpretação autêntica e declaratória da condenação doutrinal do aborto provocado e da nova legislação do “direito de optar” pelo aborto que tinha surgido nos USA e noutros países. Nessa declaração é dito sem ambiguidade alguma que: “A lei divina e a razão natural excluem, portanto, qualquer direito à morte directa de um ser humano inocente ... no caso de uma lei intrinsecamente injusta como a que admite o aborto, nunca é lícito conformar-se com ela, nem participar numa campanha de opinião a favor de uma lei de tal natureza, nem dar-lhe a aprovação com o seu voto.”.[7]


Portanto, a admissão do “direito a escolher abortar” ou do “direito de optar pelo aborto”, mesmo por alguém que não queira exercer esse suposto direito, mas o admita para os outros, é directa, formal e, pelo menos, implicitamente contrário e contraditório com uma verdade de Fé Divina e Católica ensinada infalivelmente pelo Magistério ordinário e universal. A doutrina da grave imoralidade do “direito de optar” pelo assassínio na forma de aborto directo e voluntário não é uma conclusão teológica ou sintética que introduza um novo conceito heterogéneo. De facto, uma vez que a morte voluntária e directa de um ser humano inocente é sempre gravemente imoral e que o aborto directamente provocado consiste na morte voluntária e directa de um ser humano, só se pode concluir que o aborto directamente provocado é sempre gravemente imoral.


Uma vez que a declaração da verdade de Fé Divina e Católica que o Papa faz no número 62 da encíclica Evangelium Vitae, é a que está expressa em itálico: “o aborto directo, isto é, querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave”, o acrescento “enquanto morte deliberada de um ser humano inocente” é explicativo e não constitutivo. Podemos, pois, afirmar com toda a certeza, se dúvidas houvesse, que a proposição “ninguém tem qualquer direito ao aborto directamente provocado, querido como fim ou como meio” é uma verdade de Fé Divina e Católica, que obriga todos os fiéis ao assentimento de Fé Teologal, segundo o cânone 750.


d) Como escrevemos acima, citando o cânone 751: “Diz-se heresia a negação pertinaz, depois de recebido o baptismo, de alguma verdade que se deve crer com fé divina e católica., ou ainda a dúvida pertinaz acerca da mesma ...”. Para que esta pertinácia se verifique externamente não é necessário que o sujeito conheça o grau de certeza teológica ou o valor da nota teológica da verdade em questão, mas basta que saiba que a Igreja guarda ou ensina a doutrina oposta à heresia por ele perfilhada.[8]


O facto de alguém negar que dissente da doutrina da Igreja não o desculpa do crime de heresia, se adere a uma doutrina que ele sabe que é contra a Fé - não há desculpa para quem faz algo que é oposto aquilo que afirma.[9] Portanto, qualquer católico que pertinazmente declare que “pessoalmente é contra o aborto”, mas que todavia por factos, sinais, palavras ou silêncio exterioriza uma única negação ou dúvida que seja, que a Lei Divina exclui qualquer direito ao aborto provocado, admitindo implicitamente o “direito ao aborto” incorre, segundo o cânone 1364 §1 do CDD, na pena de excomunhão latae setentiae, isto é, automática.[10]


3. Parece-me pois evidente que os políticos portugueses, baptizados - caso não tenha havido arrependimento -, que votaram a lei 6/84, e/ou concordam com ela, ou com o seu alargamento (caso da aprovação da proposta de Strecht Monteiro), ou que por votação a 3 de Março do corrente ano aprovaram uma recomendação ao Governo para que a levasse a cabo; e os governantes que abriram as portas à introdução dos abortivos precoces ou a não fecharam, podendo fazê-lo, mantendo assim o “direito” ao aborto a pedido, incorrem no crime de heresia e na pena de excomunhão. Nenhum deles pode ignorar as frequentíssimas intervenções do Papa João Paulo II sobre o assunto, nem os variados documentos da Conferência Episcopal e outras intervenções dos Bispos, individualmente considerados, desde, pelo menos, 1977. Deste modo, políticos como estes podem ser acusados não só de heresia, mas também de escândalo diabólico que conduz à heresia, cooperação imediata e formal com a heresia, escândalo diabólico que leva ao assassínio, grave mal infligido à moral pública e desprezo da Fé e da autoridade eclesiástica, e, alguns deles, de profanação das Sagradas Espécies.


Não parece haver dúvidas de que políticos como Cavaco Silva, António Guterres, Maria de Belém, Freitas do Amaral, Paulo Portas, Durão Barroso, Marcelo Rebelo de Sousa, por exemplo, têm, de um ou de outro modo, por factos, sinais, palavras ou silêncio exteriorizado negações ou dúvidas de que a Lei Divina exclui qualquer direito ao aborto provocado, admitindo implicitamente o “direito ao aborto”.


4. Uma vez que as posições tomadas por políticos como estes ocasionam gravíssimo escândalo nos fiéis, conduzindo-os a doutrinas e comportamentos erróneos, seria, assim parece, de toda a conveniência que os senhores Bispos tomassem as disposições disciplinares apropriadas, previstas no CDD: Can. 751; 1364 §1, 2; 915; 1367; 1369; 1399. De facto, “Há uma necessidade urgente de criar uma opinião pública na Igreja coerente com a identidade Católica, livre da subjugação da opinião mundana tal como é referida nos mass media ... Na perspectiva da disciplina da Igreja parece mais oportuno do que nunca lembrar que os Bispos têm a obrigação de aplicar a legislação disciplinar da Igreja de um modo efectivo, especialmente quando se trata de defender o ensino da Verdade Divina”.[11]

Nuno Serras Pereira

04. 10. 2004


[1] Com a graciosa colaboração de Marc A. Balestrieri.

[2] Cf. R. P. I. Salaverri, S.J., Sacrae Theologia Summa, I., De Ecclesia Christi III, Ed. 2, B.A.C., Matriti, N. 897, p. 786

[3] Cf. R. P.S. Cartechini, S.J., De valore notarum theologicarum et de criteriis adea dinoscendas (Romae 1951) 11

[4] cf. Ad. Tanquerey, S. S., Manual of Dogmatic Theology, I, Desclée Co., Tournai, 1959, N. 323 A, 202-203

[5] J. Card. Ratzinger, Professio Fidei et Iusiurandum fidelitatis in suscipiendo officio nomine Ecclesiae exercendo una cum nota doctrinali adnexa, AAS 90 (1998) 542-551; Communicationes 30 (1998) 42-49

[6] AA. VV., Tarcisio Bertone in Proclaiming the Truth of Jesus Christ: Papers from the Vallombrosa Meeting, 9-12 Feb. 1999, USCCB, p. 39

[7] Congregação da Doutrina da Fé, Declaração sobre o Aborto Provocado (18. 11. 1974), n. 22: AAS 66 (1974), 744

[8] H. Busenbaum, S. J., Medulla Theologiae Moralis, I, 3. Quid sit Haeresis, Typis S. Cong. De Propaganda Fide, Romae, p. 61

[9] A. Sancatarelli, S. J., Tractatus de Haeresi, Zannetti, Romae, MDCXXV, Nn. 26-27, pp. 18-19

[10] Cf. St. Afonso Maria Ligório, Theologiae Moralis, VII, 300 seqq., RR. PP. Cl. Marc et Fr. X Gestermann, Institutiones Morales Alphonsianae seu S. Alphonsi Mariae de Ligorio Doctrina Moralis ad usum Scholarum Accomodata, Editio Decima Nona, I, E. Vitte, Lugduni, N. 437, 1º, 1933 e H. Noldin, S. J., Summa Theologiae Moralis, II. De Praeceptis Dei et Ecclesiae, Ed. 15, F. Rauch, Oeniponte, 1922, Nn. 18-20, pp. 24-25

[11] AA. VV., Cardeal Tarcisio Bertone, SDB, Vallombrosa Meeting, supra, p. 42