segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Os Senhores das heresias

1. Tempos houve em que, por uma infeliz confusão entre poder temporal e poder espiritual, os que professavam heresias eram perseguidos, torturados e mortos por se considerar que os erros ou as falsidades não tinham direitos - esquecendo-se de que quem erra ou mente os tem -, e que a sua propagação constituía um perigo não só para a Igreja como para a concórdia social, para as nações e para os reinos. No anúncio do Evangelho, segundo uma interpretação possível, e na justa preocupação pela sua inculturação um grande número de cristãos deixaram, no entanto, submergir parte da identidade e originalidade do seguimento de Cristo pelos usos, costumes e mentalidades de então; no desassossego por minorarem[1] alguns graves males e na solicitude por fins louváveis[2] não consideraram devidamente a normatividade moral da Pessoa de Cristo e do Seu agir, nem algumas exigências da dignidade da pessoa humana, em relação a determinados métodos e meios inaceitáveis a que recorreram, acabando por se deixar contaminar e manipular[3] por uma porção do mal que repugnavam. Felizmente esses tempos vão longe e actualmente recuperou-se, em grande medida, a mansidão evangélica. A verdade não se impõe às consciências pela violência da coacção, mas propõe-se pela suavidade da persuasão.

2. Porém, nos dias de hoje, parece cair-se numa nova confusão, agora de sentido contrário. Antes confundia-se os que professavam os erros com o próprio erro, e, por isso, ao combater este aniquilavam aqueles; hoje não se distingue a falsidade daqueles que a advogam, e, por isso, ao tolerar e amar estes, tolera-se, acolhe-se e promove-se aquela. Este equívoco parece estar instalado, em parte, na Igreja em Portugal.

De facto, não poucos dos seus membros negam, muitas vezes pública e notoriamente, pontos essenciais da doutrina da Igreja, mesmo verdades de fé - contestam que o encargo de interpretar autenticamente a Palavra de Deus tenha sido confiado somente ao Magistério vivo da Igreja, repudiam que a sua autoridade para ensinar, nas questões relativas à fé e aos costumes, seja exercida em nome do próprio Cristo, não concedem que ela se estenda aos preceitos específicos da lei moral natural, negam que possa definir ou discernir o que é doutrina imutável, irreformável ou infalível, rejeitam os absolutos morais, não aceitam alguns dogmas de fé... Concretizando: os anjos não existem, não há pecado original, muito menos o purgatório ou o inferno, as missas pelos defuntos não têm sentido nenhum, mas podem continuar a celebrar-se para não escandalizar o povo ignorante, a alma não existe, Deus não pode operar milagres, Nossa Senhora não foi sempre Virgem nem foi elevada ao Céu em corpo e alma, Jesus não tinha, antes da Sua ressurreição, se é que ressuscitou, a consciência da Sua divindade; que o sacerdócio ministerial seja reservado aos homens não é doutrina infalível e, portanto, quando este Papa morrer a Igreja irá mudar (aliás o pontificado deste Papa é esquizofrénico, pois em doutrinal moral é muito conservador e muito progressista em doutrina social); que em nenhuma circunstância seja lícito provocar directamente o aborto ou a eutanásia também não é doutrina imutável e infalível, porque nalgumas circunstâncias, ponderados os bens e as consequências, não só se pode como se deve fazê-lo; as relações sexuais antes do casamento não são sempre, objectivamente, uma desordem moral grave, mas podem ser lícitas e até recomendáveis, o adultério igualmente, a contracepção idem, as relações entre pessoas do mesmo sexo podem ser justificáveis e, por isso, a Igreja deve aceitar o casamento entre homossexuais, etc.

Mas isto, exclamar-se-á, é o que pensará o povo ignaro, simples, influenciado pelo laicismo, agnosticismo e relativismo de grandes meios de comunicação social!

Quem assim reponta, ou rosna, é porque, de alguns anos a esta parte, não vai à Missa, ou, então, esteve dormitando e bocejando durante a homilia, não participou em escolas de leigos, não frequentou aulas na UCP nem assistiu a semanas de teologia ou eventos afins, não conhece directores de faculdades da UCP, não escutou altos dignitários na comunicação social, nem compartilhou da erudição dos seus convidados para orientar retiros, palestras, conferências, não tomou atenção a órgãos de comunicação social da Igreja, não esteve em amena cavaqueira, saboreando uma bica fraternal, com esses senhores...

É verdade, estes nossos amáveis irmãos - tenho entre eles bons amigos -, que afirmam categoricamente estas enormidades, dirigem departamentos na UCP, dão aulas aos futuros padres e aos futuros professores de religião e moral, orientam ou têm larga voz em órgãos de comunicação social da Igreja, são os conferencistas e pregadores predilectos, e quase únicos, são designados para assistentes espirituais de grandes movimentos, presidem ou participam em conselhos de ética, detêm cargos de relevância em Ordens e Congregações Religiosas - provinciais, superiores, definidores, conselheiros, formadores de postulantes, noviços e professos simples -, orientam recoleções ao clero e são chamados a dar-lhe formação...

As suas vastas erudições[4] sonoras, os seus canudos solenes, obtidos em Universidades, de preferência estrangeiras, as suas classificações retumbantes, os seus majestosos títulos académicos, valem mais do que a sã e recta doutrina; o seu “charme” conta mais do que a fidelidade à verdade. Troca-se a fé pelo gnosticismo, permuta-se a Revelação e a sabedoria pela erudição, a beleza casta da verdade pela sensualidade do agrado, a comunhão pela sedução da retórica e a humildade pelo fascínio que a presunção desmedida exerce.

A razão, o juízo, o critério deixam de ser iluminados pela verdade e passam a ter como referência a plausibilidade, segundo os cânones do “politicamente correcto”, e o aplauso do mundo. Não se diz o que as pessoas precisam de escutar, mas sim o que lhes apetece ouvir, não se chama à conversão a Deus, propõe-se a conformação com a mentalidade dominante.

3. Mas não haverá quem aceite sem reservas a doutrina verdadeira? Que é dessa gente? Consta que sim, que há um resto... Quanto a esses, a notícia que deles temos diz-nos o seguinte: alguns vivem clandestinamente a sua ortodoxia, não contraditam verdades, mas silenciam-nas, pelo menos nalguns ambientes, e, temerosos ou prudentes, não impugnam a adulteração, não refutam o erro, calam o caos, não denunciam a hecatombe; outros, mais afoitos, atrevem-se, mesmo que timidamente, à proclamação integral da verdade e à confutação da falsidade. Quanto a estes, ainda não são excomungados, é certo, mas são banidos para a profundidade das catacumbas, sepultados em vida, isto é, marginalizados, postos de lado, afastados. Quase tudo lhes é vedado. São considerados perigosos e por consequência são ignorados para que não se dê por eles, atirados para a geena da indiferença; se a estratégia falha são lapidados com injúrias, soterrados com impropérios, apodados de integristas, retrógrados, extremistas, fundamentalistas... Os seus escritos são cuidadosamente seleccionados pelo novos inquisidores, zelosos do novo “evangelho”, dos dogmas do “politicamente correcto”; as suas iniciativas são pidescamente controladas e sabotadas; se, porventura, algum escapa à vigilância, logo é sovado, torturado no pelourinho da página impressa, flagelado na praça pública das ondas hertzianas, desacreditado na Ágora do fluir catódico. E tudo isto é uma grande graça.

4. Que o serviço da verdade seja a forma mais eminente de caridade (isto é, de amor) foi a contrario provado à saciedade, neste século, pelos mais cruéis totalitarismos, a saber, comunismo, nazismo e fascismo, cuja essência comum consistia na negação, ocultação e perseguição da mesma. Sendo a verdade o fundamento da liberdade - “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” -, ela é não só necessária para a salvação eterna, mas também para o reconhecimento, respeito e promoção da dignidade de toda a pessoa humana e, portanto, para a edificação de uma sociedade justa. Daí que todos tenham o direito primordial a conhecê-la e que, portanto, esta lhes seja anunciada integralmente. A este direito corresponde o dever de a procurar, de a ela aderir, uma vez encontrada, de a praticar e de a proclamar.

5. À Igreja, o corpo de Cristo, isto é, Cristo no Seu corpo (ou seja, a verdade no Seu corpo - “Eu sou a verdade”), Cristo presente na história, foi confiada a verdade necessária para salvação de todos, a plenitude da verdade. Esta verdade que nos foi dada gratuitamente, sem merecimento algum da nossa parte, pode e deve ser sempre mais investigada e aprofundada, mas nunca contrariada, atraiçoada ou negada. De feito, a verdade já dada, mas ainda não totalmente apreendida é inesgotável, prenhe de riquezas surpreendentes a descobrir, de novas compreensões a meditar. Por isso, e ainda porque, em nós pecadores, se encontra “misturada” com as nossas incapacidades, limitações e misérias, a sua demanda exige, também, um diálogo permanente com todos - sempre que alguém, seja quem for, diz a verdade é o Espírito Santo que nele fala.

Neste peregrinar importa respeitar absolutamente a consciência de cada um. Mas uma coisa é o respeito pela consciência no seu caminho para a verdade, como fundamento dos direitos da pessoa, outra, bem diferente, é o pactuar cúmplice com o anúncio ou a promoção da falsídia, em nome da própria verdade. Servir-se da Igreja - Mestra da verdade (DH 14)[5], que lhe foi confiada na sua plenitude (UR 3)[6], sua coluna e fundamento (LG 8)[7], instrumento de Cristo para a comunicar (LG 8)[8] - como púlpito para a falsidade e que isso seja não só permitido como incentivado é causa de muita estranheza, de grande perplexidade, de justa inquietação.

De facto, se a gente tão douta e eminente, posta como exemplo e como mestra, é lícito negar a verdade, ou verdades, que lhe apraz, porque não será lícito a qualquer um, negar qualquer outra? - a Imaculada Conceição, a Graça, a Eucaristia, a Divindade de Cristo, o Mistério da Trindade, a existência de Deus, a dignidade da pessoa humana, a Justiça, a solidariedade...

Se a verdade não é objectiva - e se é impossível conhecê-la com certeza -, senão que depende da fantasia subjectiva e arbitrária de cada um, nesse caso não existe. Mas se assim é, então o Magistério é uma tirania, o cânon uma opressão, a Igreja uma inutilidade sem sentido, a Evangelização um absurdo, a Redenção uma miragem, o amor uma quimera e nós uns miseráveis desgraçados.

Nuno Serras Pereira - 1999



[1] Por ex., garantir a possibilidade de defesa, abrandar o braço secular, etc..

[2] Por ex., que as almas dos acusados e/ou condenados não se perdessem, mas pudessem alcançar a vida eterna - daí a morte expiatória -, etc..

[3] Por ex., a manipulação da religião pelos abusos do poder político.

[4] Uso este termo no sentido que lhe dá Ortega y Gasset.

[5] Cf Concílio Ecuménico Vaticano II, Dignitatis humanae, 14

[6] Cf Idem, Unitatis redintegratio, 3

[7] Cf Ibidem, Lumen gentium, 8

[8] Cf Ibidem, idem