A questão da regulação legal do chamado
“testamento vital” está entre nós na ordem do dia. Depois de na 11ª legislatura
terem sido apresentados quatro projectos de Lei e de a dissolução da Assembleia
da República ter interrompido o processo legislativo a tal relativo, voltaram a
ser apresentados projectos nesta legislatura e o processo teve o seu desfecho
com a aprovação e publicação da Lei .
Em Itália, a questão também tem sido
objecto de discussão, particularmente viva. A Câmara dos Deputados aprovou uma
lei contendo “disposições em matéria de aliança terapêutica, consentimento
informado e declarações antecipadas de vontade”, sendo que, porem, no momento
em que escrevo (Julho de 2012), o processo legislativo ainda não teve o seu
desfecho, pois se aguarda a discussão da mesma no Senado.
Parece-me do maior interesse a análise da
argumentação subjacente ao conteúdo desta lei italiana, confrontando-a com os
vários projectos discutidos e a lei que veio a ser aprovada entre nós.
A
discussão em Itália
Na verdade, a lei italiana, constitui, na
expressão da neurologista e deputada Paola Binetti, «uma das leis que mais
apaixonou a opinião pública nos últimos cinco anos»[1].
Em favor da sua aprovação empenharam-se afincadamente os principais movimentos
católicos e os representantes da hierarquia eclesiástica. O cardeal Bagnasco,
presidente da Conferência Episcopal Italiana, considerou-a “necessária e
urgente” numa sua comunicação à assembleia-geral dessa Conferência[2].
Nesse sentido também se pronunciaram o cardeal Elio Sgreccia, presidente
emérito da Academia Pontifícia pela Vida[3]
e Mons. Ignacio Carrasco de Paola, actual presidente dessa Academia[4].
Foram lançados um manifesto de 23 associações católicas[5]
e um apelo ao Parlamento subscrito por intelectuais, universitários e
responsáveis da comunicação social dessa área[6],
ambos em favor dos princípios que vieram a ser consagrados nessa lei. Também
nesse sentido se pronunciou a associação dos médicos católicos italianos[7].
A aprovação da lei foi aplaudida pelas associações Movimento per la Vita, Forum
delle Associazioni Famiglari e Scienza
e Vita[8].
Os princípios consagrados na lei, que
justificam este apoio, resultam da rejeição firme da eutanásia activa ou
passiva e do respeito pela indisponibilidade da vida humana, ao mesmo tempo que
se rejeita a exacerbação terapêutica
(obstinação, excesso ou encarniçamento terapêuticos). Como pano
de fundo da discussão, não pode ignorar-se o episódio da morte de Eluana
Englaro, uma jovem em estado vegetativo persistente, privada, por decisão
judicial na sequência de decisões contrárias anteriores, da alimentação e
hidratação que a mantinham em vida desde há vários anos. Evitar a repetição de
mortes como essa (então objecto de acesa discussão) com autorização judicial e
sem apoio legal, foi objectivo da lei, até então não considerada necessária por
vários dos seus actuais apoiantes. Uma decisão análoga do Tribunal Federal
alemão, recente e inovadora (que absolveu um advogado que aconselhou a filha de
uma doente em estado vegetativo persistente a fazer cessar a sua alimentação e
hidratação)[9],
também não deixou de servir de motivo para o conteúdo da lei aprovada.
O campo oposto, dos adversários da lei,
também se moveu com grande empenho. A razão principal da crítica diz respeito à
irrelevância da vontade não actual do subscritor de uma declaração antecipada
de tratamento no sentido da rejeição de tratamentos necessários à salvaguarda
da vida. Considera-se tal irrelevância contrária ao necessário respeito pela
autonomia individual. Um dos principais expoentes dessa oposição, o jurista
Stefano Rodotà, chegou a qualificar a lei como “quinta essência do despotismo
ético» e expressão de um “fundamentalismo católico incompreensível”[10].
Esta crítica encontrou grande eco na imprensa laica[11].
Anunciam-se recursos de inconstitucionalidade e propostas de referendo de
iniciativa popular tendente à revogação da lei.
A lei foi aprovada na Câmara dos
Deputados com uma maioria de 278 votos a favor, 205 contra e 7 abstenções.
Votaram a favor a grande maioria dos partidos que apoiavam o governo de
centro-direita (Pdl e Lega Nord), deputados da oposição de
centro (os democratas cristãos da Udc)
e cerca de cinquenta deputados do Pd,
principal partido da oposição de centro-esquerda (que assumiu, porém, uma posição
oficial de oposição clara à lei). A transversalidade da aprovação da lei foi,
assim, mais acentuada do que se previa inicialmente[12].
Como já referi, no momento em que escrevo (Julho de 2012) aguarda-se ainda a
votação no Senado, condição de aprovação definitiva.
Do conteúdo da lei, há que destacar a
rejeição da eutanásia e da exacerbação
terapêutica; o princípio do consentimento informado actual e consciente
como condição de um tratamento, a consagração do princípio da aliança terapêutica como linha
inspiradora da relação médico-doente (contrário a uma visão paternalista do
médico alheio à vontade do doente, mas também a uma visão daquele como simples
executor da vontade deste fora do quadro da sua deontologia); a consagração do
carácter não vinculativo das declarações antecipadas de tratamento (expressão
intencionalmente adoptada por oposição à de “testamento vital” ou “testamento
biológico”); e a relevância dessas declarações quanto à rejeição de tratamentos
desproporcionados ou experimentais, mas não quanto a tratamentos úteis e
proporcionais na perspectiva da salvaguarda da vida. Em particular, estatui-se
que não é relevante uma declaração antecipada de tratamento de rejeição da
alimentação e hidratação, ainda que por meios artificiais, salvo se estas se
tornarem ineficazes face à capacidade de absorção do corpo (situação que já
configurará um procedimento inútil ou desproporcionado). A lei pretende, deste
modo, garantir a assistência, e o não abandono, aos doentes em estado
vegetativo persistente, evitando a repetição de casos como o da morte de Eluana
Englaro.
Foi este aspecto (a irrelevância das
declarações antecipadas de tratamento no que se refere a tratamentos úteis e
proporcionais à salvaguarda da vida e à rejeição da alimentação e hidratação
artificiais) que motivou as maiores críticas à lei.
Em favor deste aspecto do regime legal
aprovado, foram esgrimidos argumentos fundados num princípio de favor vitae, que não se confundem com
razões confessionais especificamente católicas (apesar das aparências que
possam decorrer do contexto da discussão da lei acima descrito).
Esses argumentos partem da necessidade da
distinção entre um consentimento actual e consciente (que será sempre necessário)
e um consentimento presumido ou hipotético, ainda que baseado numa declaração
escrita anterior. Porque esta é elaborada num contexto muito diferente daquele
em que se decide sobre o tratamento em questão, nunca é de excluir a
possibilidade de mudança de perspectivas na iminência da morte. Nestes casos, a
dúvida impõe uma decisão a favor da vida, pois estamos perante a mais
irreversível das decisões. Já o afirmei em escritos anteriores:
« (…) Dir-se-á que há que respeitar o
princípio da autonomia, evitar tratamentos forçados, respeitar uma vontade do
doente previamente formulada quando este não a pode manifestar actualmente por
estar inconsciente (a sua incapacidade não o faz perder direitos –
argumenta-se). Mas é diferente o respeito por uma vontade actual e esclarecida (que não suscita dúvidas
sobre o seu sentido autêntico) e o respeito por uma vontade hipotética, com
base em declarações prestadas anteriormente num contexto muito diferente do
actual (de forma necessariamente pouco esclarecida, precisamente por esse
contexto ser diferente do actual). Não se trata apenas de considerar a dúvida
sobre a informação a que possa ter tido acesso a pessoa quando formulou essa
declaração, ou sobre se a situação em que se encontra agora era, para ela,
nessa altura, previsível. Nem também a possibilidade de o estado dos
conhecimentos médicos se ter alterado desde então. É que subsiste sempre a
dúvida (independentemente do tempo decorrido e da possibilidade de revogação da
declaração) a respeito de saber se a pessoa não poderia mudar de opinião.
É sabido como é frequente uma atitude de
grande apego à vida nos seus últimos momentos e diante da revelação de uma
doença, mesmo da parte de quem havia manifestado uma atitude contrária quando
se encontrava são. Tem sido evocado o exemplo da médica francesa Silvie Ménard,
que rasgou o seu testamento vital depois de lhe ter sido diagnosticado um
cancro, porque passou a querer “lutar” até ao fim. E um caso ocorrido num
hospital de Cambridge em Julho deste ano também é significativo: estavam os
médicos para desligar um aparelho que mantinha em vida Richard Ruud, um homem
paralítico e inconsciente devido a um acidente, baseados numa declaração de
vontade que este havia formulado verbalmente alguns anos antes a propósito de
um amigo também vítima de um acidente análogo; quando ele, através do abrir e
fechar de olhos, manifestou a sua oposição, que veio a ser atendida. Afirmou,
então, o pai, que tinha autorizado os médicos a desligar o aparelho: “Estou
feliz por lhe ter sido dada a oportunidade de sobreviver. Decidir se um filho
deve, ou não, viver é quase impossível”.
Está em jogo o mais fundamental dos bens
e a mais claramente irreversível de todas as decisões. “Há solução para tudo
menos para a morte” - diz o povo. Depois da morte, não há nada a fazer. Depois
de salva a vida, quem disso beneficia sempre poderá pôr-lhe termo pelos seus
próprios meios (o que até será pouco provável). Mais vale, pois, salvar uma
vida do que tomar uma decisão irreversível que conduz à morte sem a certeza
absoluta de que seria essa a vontade do doente. Esta dúvida há-de subsistir
sempre. Rege aqui o princípio in dubio
pro vita.
Por isso, não deverá ser vinculativa, nem
deverá ser observada, uma declaração antecipada de vontade de recusa de tratamentos úteis e proporcionados na perspectiva da
salvaguarda da vida. Só assim o testamento vital não será uma porta aberta à
eutanásia.»[13]
Nesta linha também se pronunciaram os partidários
da aprovação da lei italiana.
Francesco d´Agostino salientou como as
declarações antecipadas de tratamento podem ter sido escritas muitos anos
antes, ter perdido actualidade ou ser fruto de condições de incrível
fragilidade psicológica, económica e mental, que tornam muito discutível a sua
atendibilidade, baseada em informações inadequadas, apressadas e insuficientes.
Não são, por princípio. “actuais” e ninguém pode ter a priori a certeza da capacidade de entender e querer do
subscritor, sobretudo no que se refere às possíveis patologias e às relativas
práticas médicas e bioéticas. Considerá-las vinculativas em qualquer caso seria
expressão de uma “imperdoável ingenuidade iluminista” e traduzir-se-ia numa
prática introdução da eutanásia (com outro nome) no ordenamento jurídico[14].
Rocco Buttiglione, filósofo e deputado,
realçou que a renúncia a tratamentos de apoio vital ou terapias “salva-vida” é
um acto pessoalíssimo que não pode ser delegado em ninguém, devido ao carácter
extraordinário e irreversível do acto. Cada acto de vontade ocorre numa
específica situação existencial e deve ser colocado nesse seu contexto. A
situação do coma é diferente da do momento em que se redige tal declaração e
não pode abstrair-se desta diferença. O caso das tentativas de suicídio, em que
a pessoas acaba por agradecer a quem impediu a consumação deste, é a
demonstração eloquente de como é frágil e precário o fenómeno da vontade em
circunstâncias excepcionais, como é certamente o do momento da iminência da
morte. Daí que se justifique uma presunção a favor da vida na ausência de uma
vontade actual em sentido contrário. Para além desta questão de princípio,
razões pragmáticas aconselham a evitar ao máximo o difundir de atitudes de
rejeição de tratamentos necessários quando há inequívocas possibilidades de
recuperação[15].
O filósofo Giacomo Somek Lodovici também
salientou como a vontade pode mudar de acordo com as situações, e de um modo
que nunca esperaríamos. Relembrou o caso de Sylvie Ménard, que, depois de se
bater pela legalização da eutanásia e de ter redigido um testamento vital,
mudou radicalmente de vontade quando lhe foi diagnosticado um cancro, afirmando
que escreveu esse “testamento” quando estava sã, mas agora quer rasgá-lo e
viver até ao fim, agora que «a morte não é um conceito virtual». E também o
caso de Jean-Dominique Bauby, retratado no filme O escafandro e a borboleta, que, perante a sua imobilidade e
incapacidade de comunicar sem ser através dos movimentos das pálpebras,
inicialmente queria morrer e veio a mudar de propósito devido ao afecto que
recebeu, vindo a relatar a sua experiência no livro que serviu de base a esse
filme. É frequente que doentes graves inicialmente desejem morrer e
posteriormente venha a prevalecer o seu apego à vida, sobretudo se assistidos,
confortados e beneficiários de cuidados paliativos. Por tudo isto, o princípio
da precaução justifica que a mínima dúvida sobre o sentido da vontade do doente
(e isso verifica-se sempre que ela não é actual) leve à prevalência da
protecção da vida[16].
A propósito do caso do inglês Richard
Ruud, já acima referido, afirmou Michele Aramini, professor de bioética: «Uma
coisa é a vontade que se exprime quando se está de plena saúde, ou sob a
influência dolorosa da difícil condição existencial de um amigo ou familiar;
outra completamente diferente é decidir sobre si mesmo no momento em que nos
tornamos fragilíssimos e ligados à vida por um fio. Descobre-se, então, que não
desejamos partir esse fio, por mais fino que ele seja.»[17]
[18]
Carlo Casini, jurista, deputado ao
Parlamento Europeu e presidente do Movimento
per la Vita apontou outra importante diferença entre uma expressão de
vontade actual e consciente e uma expressão de vontade escrita por uma pessoa
inconsciente no momento em que toma a decisão de renúncia a um tratamento. Em
resposta à tese de Stefano Rodotà e de outros adversários da lei, segundo os
quais o princípio da igualdade imporia a relevância, nos mesmos termos, de uma
e outra dessas expressões de vontade, salienta que essa diferença reside na
possibilidade, que existe no primeiro caso, mas não no segundo, de o doente ser
aconselhado pelo médico e familiares. Este diálogo desemboca normalmente na
aceitação de um tratamento que o doente inicialmente até poderia recusar. Neste
diálogo, o conselho no sentido do tratamento útil e proporcionado é sempre de
louvar, sendo o conselho ou a pressão em sentido contrário censuráveis, ou
mesmo criminosos. A cristalização da precedente declaração fixa definitivamente
a discriminação do doente inconsciente, que pode morrer sem a possibilidade de
um diálogo que até poderia fazê-lo desistir desse propósito. Só com o carácter
não vinculativo dessa declaração se garante a igualdade[19].
Salientando bem a diferença entre a
vontade actual e a vontade antecipada, afirmaram Carlo Casini, Marina Casini e
Maria Luisa di Pietro:
«As primeiras (as vontade actuais) são
expressão de uma autonomia aberta à relação que se confronta com a situação
real e concreta de doença ou deficiência; amadurecem no âmbito de uma aliança
terapêutica na qual o médico se empenha pessoalmente de um ponto de vista
humano e profissional. A comunicação, a informação completa e calibrada sobre o
paciente, a escuta das verdadeiras necessidades do doente, a avaliação de todos
os factores em jogo, a avaliação da doença ou do trauma de acordo com o que
verdadeiramente representam naquele momento para aquela pessoa, tudo isto são
elementos que concorrem para a formação de um consentimento, ou não
consentimento, consciente e responsável. As segundas (as vontades antecipadas),
pelo contrário, desligadas da situação objectiva de doença ou trauma, fora de
uma “aliança terapêutica” e da real dimensão psicológica inevitavelmente
determinada pela doença ou pela deficiência, afastam-se da actuação de um
verdadeiro consentimento informado, acabando por reduzi-lo – contrariamente aos
propósitos da doutrina e da jurisprudência – a uma prática documental,
burocrática e administrativa, que responde mais às exigências de uma medicina
defensiva do que às de um real participação do paciente no processo terapêutico
que lhe diz respeito»[20].
Também Mons. Roberto Colombo, membro da
Academia Pontifícia da Vida e do Comitato
Nazionale per la Bioética, salienta este aspecto: a escolha cristalizada
numa declaração escrita antecipada não é uma escolha em confronto com quem está
próximo do doente, o ama e o assiste, não é uma escolha partilhada com quem lhe
quer bem e dele cuida; sendo que a pessoa e o doente não vivem numa ilha
deserta, não são auto-suficientes e seguros de si, mas dependentes e em estado
de necessidade física e psicológica. Considerar essa hipotética escolha como
exercício de auto-determinação é abstrair das condições concretas, de tempo e
lugar, em que se manifesta a vontade[21].
Cesare Mirabelli, presidente emérito do
Tribunal Constitucional, também salientou estas ideias, de que o respeito pela
autonomia não pode descontextualizar as manifestações de vontade e ignorar a
falta de relação imediata com o médico. O consentimento informado supõe a sua
actualidade, não é abstracto e hipotético, mas exige a avaliação da situação
concreta da pessoa no contexto de uma relação de confiança como o médico. E
invocou uma decisão da Corte di Cassazione
que negou relevância a uma expressão de vontade de recusa de transfusão
sanguínea de uma pessoa aderente à testemunhas de Jeová por não se tratar de
uma expressão actual e não estarem, por isso, afastadas todas as dúvidas sobre
a eventualidade de a pessoa ter mudado de propósito[22].
Numa perspectiva mais ampla, os
partidários da lei acentuaram a centralidade do princípio da indisponibilidade
da vida humana, que se sobrepõe ao da autonomia e justifica a punição da
eutanásia voluntária. O relevo das declarações antecipadas de tratamento não
poderá servir de antecâmara da eutanásia, contra o que pretendem muitos dos
adversários da lei, alguns deles (não todos, certamente) também partidários da
legalização da eutanásia.
Paola Binetti afirmou que a lei não
despreza a autonomia, apenas não a absolutiza: tudo é permitido ao doente,
excepto pedir a sua morte antecipada, quase tudo é permitido ao médico, excepto
antecipar a morte do doente. É falsa a dicotomia entre a vida e a liberdade,
pois esta não tem sentido sem aquela. O princípio da auto-determinação há-de
ser conjugado com os princípios da beneficência e da tutela da vida[23].
Na verdade, não é lógico contrapor o
valor da vida humana ao valor da liberdade e da autonomia. É que a autonomia
supõe a vida e a sua dignidade. A vida é um bem indisponível, o pressuposto de
todos os outros bens terrenos e de todos os direitos. Não pode invocar-se a
autonomia contra a vida, pois só é livre quem vive[24][25].
Não se alcança a liberdade da pessoa com a supressão da própria pessoa. A
eutanásia e o suicídio não representam um exercício de liberdade, mas a
supressão da própria raiz da liberdade. O “direito à morte” seria ainda mais
contraditório do que uma escravidão legitimada pelo consentimento da vítima. A
liberdade não pode servir para se anular a si própria. Este princípio já servia
de base a Kant para, antes de quaisquer outras razões, negar legitimidade ao
suicídio. E também tem alicerçado a noção de indisponibilidade dos direitos
humanos fundamentais, que as primeiras históricas declarações sempre afirmaram
como “inalienáveis”, isto é, dotados de um valor objectivo e intrínseco,
independente da vontade do seu titular.
O jurista Alberto Gambino também
salientou, a propósito desta Lei, que o princípio da prevalência da tutela da
vida humana e da sua dignidade sobre a autonomia também subjaz a muitos outras
regras do ordenamento jurídico, desde a ilicitude de muitas formas de
autolesionismo, do consumo e tráfico de drogas, da prostituição, do trabalho em
condições humanamente degradantes, até ao uso obrigatório de capacete ou cinto
de segurança[26].
Nessas e noutras situações (a punição do
homicídio a pedido e do incitamento e auxílio ao suicídio; do consumo e tráfico
de drogas; da escravidão mesmo que consentida; da exploração da prostituição,
da maternidade de substituição ou do tráfico de órgãos; o carácter
irrenunciável de direitos laborais ou de segurança social; a obrigatoriedade, mesmo
contra a vontade do beneficiário, de regras de segurança no trabalho, segurança
rodoviária e de segurança alimentar; a definição de um núcleo de risco ilícito
no âmbito do desporto e do lazer; até a proibição de tomar banho na praia com
bandeira vermelha) parte-se do pressuposto de que a vida humana e núcleos
essenciais da dignidade, da liberdade e da saúde humanas são bens
indisponíveis. É assim porque a vida é o pressuposto da própria liberdade. E
também porque condições concretas de deficiente informação ou de debilidade
existencial, social e económica fazem com que certas manifestações de vontade
deixem de ser autêntica expressão de autonomia (o consentimento para a
prostituição, a maternidade de substituição ou a venda de órgãos por parte de
quem só assim consegue garantir a subsistência, por exemplo).
A este respeito, o professor de Direito
Penal Luciano Eusebi, também a propósito das declarações antecipadas de
tratamento, acentuou os perigos para a situação dos mais débeis (existencial,
familiar, social e economicamente) e, por isso, mais propensos a exprimir a
rejeição de tratamentos eventualmente onerosos mas necessários e justificados.
Não podemos ignorar um contexto de cada vez mais forte pressão cultural no
sentido de a sociedade se libertar dos custos de terapias adequadas, mas
onerosas. Neste contexto podem surgir pedidos de renúncia a tratamentos até com
motivações pretensamente solidaristas de quem não quer ser um peso para a
família e a sociedade, pedidos que uma solidariedade autêntica não pode aceitar,
porque contrários à irrenunciável dignidade da pessoas em todas as fases da sua
vida e particularmente em condições da maior debilidade[27].
Um aspecto também salientado por Rocco Buttiglione: há que evitar ao máximo o
difundir de atitudes de rejeição de tratamentos necessários quando há
inequívocas possibilidades de recuperação. A difusão dessas atitudes (uma
potencial procura em massa da eutanásia) pode resultar da degradação das
condições de vida dos anciãos na sociedade hodierna e do enfraquecimento da
consciência da sua insubstituível riqueza, com a sua redução a um peso difícil
de suportar[28].
Como
vimos atrás, esta lei consagra o princípio da aliança terapêutica como linha inspiradora da relação
médico-doente, contrário a uma visão paternalista do médico alheio à vontade do
doente, mas também a uma visão daquele como simples executor da vontade deste
fora do quadro da sua deontologia. Paola Binetti salienta como a absolutização
da autonomia é incompatível com essa aliança
terapêutica entre o médico e o doente. O doente não está só, relaciona-se e
esta relação traduz-se nessa aliança,
que vai para além do contratualismo, supõe uma confiança recíproca, é feita de
perguntas e respostas, fraquezas e apoios, ânsias e seguranças, dúvidas e
receios. A autonomia do doente não justifica a indiferença do médico. A
liberdade e dignidade do doente há articular-se com a liberdade e dignidade do
médico no quadro deontológico da sua missão. Por isso, a aliança terapêutica só pode ser finalizada à salvaguarda da saúde e
da vida, não da morte[29].
Salientaram os partidários da lei que não
está em causa alguma violação da Convenção de Oviedo (Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina), pois esta, no
seu artigo 9º, não consagra o carácter vinculativo dos desejos previamente expressos por um doente que não esteja, no
momento da intervenção, em condições de exprimir a sua vontade (estatui, antes,
que estes devem ser “tidos em consideração”)[30].
Carlo Casini, que participou nos trabalhos preparatórios dessa convenção,
invocou o facto de esta expressão (“tidos em consideração”) ter substituído a
de uma proposta anterior que apontava num sentido vinculativo (“determinados
por”)[31]
À objecção de que a limitação da
relevância das declarações antecipadas de tratamento à rejeição de tratamentos
inúteis e desproporcionados as tornariam inúteis, pois essa rejeição já
decorreria da própria deontologia médica, respondeu Lucio Romano, médico e
co-presidente da associação Scienza e
Vita, afirmando que entre os extremos de proporcionalidade e
desproporcionalidade de um tratamento há uma margem de opções em que a vontade
do próprio doente não pode deixar de assumir relevância[32].
Como já vimos, esta lei estatui que não é
relevante uma declaração antecipada de tratamento de rejeição da alimentação e
hidratação, ainda que por meios artificiais, salvo se estas se tornarem
ineficazes face à capacidade de absorção do corpo (situação que já configurará
um procedimento inútil ou desproporcionado). A lei pretende, deste modo,
garantir a assistência, e o não abandono, aos doentes em estado vegetativo
persistente, evitando a repetição de casos como o da morte de Eluana Englaro.
É de notar que a aprovação da lei foi,
por este motivo, saudada por associações de familiares de doentes em estado
vegetativo persistente[33][34]
Justifica-se a irrelevância de um pedido
prévio de suspensão de alimentação e hidratação, pois esta suspensão conduz, em
regra, à morte por inanição e desidratação, é causa directa, imediata e segura
da morte, é a pessoa que assim procede a causar a morte; o que não se verifica
em caso de suspensão de um tratamento extraordinário, em que a pessoa morre da
doença que inevitavelmente a atinge[35].
Por outro lado, não pode dizer-se que a
alimentação e hidratação sejam terapias (e possam, por isso, deixar de ser
devidas quando extraordinárias), pois não vão de encontro a uma qualquer
patologia ou disfunção e são necessárias também para pessoas não doentes. Não
releva o facto de para tal se usarem meios artificiais, pois estes traduzem-se
numa simples ajuda a quem não consegue sozinho prover a essa alimentação e
hidratação (como sucede com o idoso com dificuldade de deglutição, ou o
recém-nascido que é alimentado com leite artificial). Só não será assim quando,
na iminência da morte, o organismo deixa de ter capacidade para assimilar as
substância fornecidas e a alimentação e hidratação já não atingem o seu fim
(situação excluída pela lei em apreço, como já vimos[36]).
Esta posição coincide com a do magistério
da Igreja Católica, expressa no discurso do Papa João Paulo II ao congresso
internacional "Life-Sustaining Treatments and Vegetative State: Scientific
Advances and Ethical Dilemmas", de 20/3/2004[37],
e na resposta da Congregação
para a Doutrina da Fé aos bispos norte-americanos, de 1/8/2007[38],
assim como na Carta dos Profissionais de Saúde do Conselho Pontifício para a
Pastoral da Saúde[39][40].
Mas também o rabino-chefe de Roma,
Riccardo Segni, médico e membro do Comitato
Nazionale per la Bioética, afirmou que o mesmo princípio é partilhado pelo
judaísmo[41].
A respeito dos doentes em estado
vegetativo persistente, foi salientado, a propósito das polémicas em torno da
morte de Eluana Englaro e desta aspecto da lei em apreço, que não se trata de
doentes terminais, mas de doentes com profunda deficiência, que as hipóteses de
uma mais ou menos acentuada recuperação nunca estão fechadas, e que não é
seguro que não experimentem a dor (o que explica o facto de a sentença que
autorizou a morte de Eluana Englaro tenha determinado a sua sedação)[42].
Alguns especialistas no tratamento destes
doentes também se manifestaram contra a suspensão da alimentação e hidratação
de que possam beneficiar.
O neurólogo Giulano Dolce, especialista
nesta matéria, afirmou que essa suspensão provoca dores atrozes que se
prolongam por vários dias, provocando uma morte muito longe de ser “digna”,
sendo que ninguém quereria morrer assim se o soubesse[43].
E assim também Mário Zampolini, também especialista em estado vegetativo
persistente, que se afirma de “esquerda” e não crente[44].
Também o neurólogo israelita Leon Sezban, pioneiro em estudos sobre esta
doença, afirmou que se um juiz lhe mandasse suspender a alimentação e
hidratação de um destes doentes com base numa declaração escrita prévia,
dir-lhe-ia que o fizesse ele, juiz, porque ele, médico, nunca o faria, pois
sabe das consequências dessa acto e a alimentação e hidratação são parte da
dignidade devida a qualquer ser humano[45].
Para os partidários da lei em apreço a
não suspensão da alimentação e hidratação dos doentes em estado vegetativo persistente
é uma exigência da Convenção das Nações Unidas sobre direitos das pessoas com
deficiência[46].
A
discussão em Portugal
Cabe-nos, de seguida, analisar, à luz dos
valores e princípios que inspiraram a lei italiana acima mencionada, os
projectos de lei sobre esta matéria objecto de discussão parlamentar entre nós,
quer os apresentados em legislaturas anteriores, quer os apresentados na actual
legislatura, e, sobretudo, a lei que veio a ser aprovada (Lei nº 25/2012, de 16
de Julho), que resulta da confluência desses projectos, o que explica a sua
aprovação por unanimidade.
O Partido Socialista apresentou na 11ª
legislatura (a anterior) o projecto de lei nº 413/XI 2º, sobre o “direito dos
doentes à informação e ao consentimento informado”, que retomava, no essencial,
o conteúdo de outro projecto, apresentado na 10ª legislatura, com o nº 788/X. Na
legislatura actual apresentou o projecto de lei nº 62/XII 1ª, que “estabelece o
regime das directivas antecipadas de vontade em matéria de cuidados de saúde e
cria o Registo Nacional de Directivas Antecipadas de Vontade”
Na exposição de motivos destes diplomas
acentuava-se a centralidade dos direitos dos doentes à sua autonomia quanto aos
cuidados de saúde.
O artigo 4º do projecto de lei nº 62/XII
1ª, apresentado nesta legislatura (tal como o faziam o artigo 13º, nº 1, do
projecto de Lei nº 413/XI 2º e artigo 14º, nº 1, do projecto de lei nº 788/X,
apresentados nas legislaturas anteriores), estatuía, a respeito do conteúdo do testamento
vital: «através do testamento vital, o
declarante adulto e capaz, que se encontre em condições de plena informação e
liberdade, pode determinar quais os cuidados de saúde que deseja ou não receber
no futuro, incluindo os cuidados de alimentação e de hidratação, no caso de,
por qualquer causa, se encontrar incapaz de prestar o consentimento informado
de forma autónoma.»
Ao contrário da
lei italiana, não se excluía do conteúdo das declarações antecipadas de vontade
tratamentos úteis e proporcionais à salvaguarda da vida, nem a alimentação e
hidratação, que são expressamente mencionadas. Também não se distinguia entre
doenças terminais, ou não terminais.
A respeito do carácter vinculativo das
declarações, havia diferenças sensíveis entre estes projectos.
Os projectos apresentados nas legislaturas
anteriores continham preceitos que razoavelmente limitavam a eficácia
vinculativa das declarações antecipadas de vontade. O artigo 13º, nº 4, do
projecto de lei nº 413/XI 2ª (artigo 14º, nº 4, do projecto de lei nº 788/X)
estatuía que «a declaração antecipada de vontade é tida em consideração como
elemento fundamental para apurar a vontade do doente, salvo o disposto no
artigo 14º» (15º do projecto de lei nº 788/X)». O nº 5 do mesmo artigo 13º (14º
do projecto de lei nº 788/X) estatuía que «a eficácia vinculativa da declaração
antecipada de vontade depende, designadamente, do grau de conhecimento que o
outorgante tinha do seu estado de saúde, da natureza da sua doença e da sua
evolução; do grau de participação de um médico na aquisição dessa informação;
do rigor com que são descritos os métodos terapêuticos que se pretendem recusar
ou aceitar; da data da sua redacção; e das demais circunstâncias que permitam
avaliar o grau de convicção com que o declarante manifestou a sua vontade». «A
decisão do médico, em conformidade ou divergência com a declaração, deve ser
fundamentada e registada no processo clínico» (nº 6 dos mesmo artigos).
O artigo 14º, nº 1, do projecto de lei nº
413/XI 2ª (tal como o artigo 15º do projecto de lei nº 788/X) limitava a eficácia
das declarações antecipadas de vontade nestes termos: «O médico nunca respeita
a declaração antecipada quando esta seja contrária à lei ou à ordem pública,
quando determine uma intervenção contrária às normas técnicas da profissão, ou
quando, devido à sua evidente desactualização em face dos progressos dos meios
terapêuticos, seja manifestamente presumível que o doente não desejaria manter
a declaração».
O projecto de lei nº 62/XII 1ª, apresentado
nesta legislatura, reforçava significativamente o carácter vinculativo do
testamento vital. O seu artigo 6º, nº 1, estatuía que este será vinculativo desde
que: conste de documento escrito,
lavrado em condições de esclarecimento e liberdade, e a assinatura haja sido
reconhecida presencialmente perante um notário ou perante um funcionário do RENDAV (Registo
Nacional das Directivas Antecipadas de Vontade); o outorgante tenha
apresentado ao notário ou ao funcionário do RENDAV um documento assinado pelo
médico responsável pelo esclarecimento, onde se ateste que o outorgante foi
cabalmente esclarecido sobre as opções e implicações das directivas que a
pessoa deseja manifestar, salvo se o outorgante
expressamente declarar que rejeita o referido esclarecimento; haja sido lavrado ou modificado há menos de 5
anos; identifique com rigor e precisão o tratamento ou intervenção que se
deseja recusar.
Essa eficácia
vinculativa era limitada pelo artigo 7º desse projecto, que estatuía: «A equipa
médica não respeita a declaração de vontade constante de um testamento vital
quando esta seja contrária à lei ou à ordem pública, ou quando determine uma
intervenção contrária às normas técnicas da profissão. (n. 1). A directiva
antecipada de vontade não é ainda respeitada quando seja manifestamente
presumível que o cidadão não a desejaria manter, quando se demonstre
fundamentadamente que tal declaração contraria a “história de valores” da
pessoa em causa ou devido à evidente desactualização da vontade manifestada em
face do progresso dos meios terapêuticos. (nº 2).
O desrespeito
de um testamento vital vinculativo configurava, nos termos deste projecto
(artigo 13º, nº 2), a prática de um crime previsto e punível pelo artigo 156º,
nº 1, do Código Penal (intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários)
Nestes
projectos (mais claramente nos apresentados nas legislaturas anteriores), estavam,
pois, contempladas várias situações que, razoavelmente, podiam conduzir à
limitação da eficácia vinculativa das declarações antecipadas de vontade. Mas
da redacção destes preceitos resultava que a declaração só não será vinculativa
se o médico alegar a verificação de alguma circunstância específica que permita
suspeitar que a vontade actual do doente não seria conforme com essa
declaração. A dúvida genérica a que acima me referi a propósito da lei italiana,
e que não me parece possa ser superada em absoluto (razão pela qual deveriam
excluir-se do âmbito de relevância das declarações antecipadas de vontade as
intervenções e tratamentos necessários e proporcionais à salvaguarda da vida),
independentemente do tempo decorrido, da informação do doente e da evolução da
medicina, não seria suficiente para deixar de atribuir eficácia vinculativa a
essas declarações.
O disposto no nº 1 do artigo 7º do
projecto de lei nº 62/XII 1ª, apresentado nesta legislatura (e na primeira
parte do artigo 15º do projecto de lei nº 413/XI 2º, apresentado na legislatura
anterior) constituía, inegavelmente, uma barreira à eutanásia. Seria «contrária
à lei» (designadamente ao disposto nos artigos 134º e 135º do Código Penal, que
punem o homicídio a pedido da vítima e o auxílio ao suicídio) uma declaração
antecipada no sentido da prática da eutanásia activa, ou do auxílio ao
suicídio. Importa realçar este aspecto. Mas será que a omissão de tratamentos
necessários e proporcionais à salvaguarda da vida não constitui uma eutanásia
por omissão[47]?
Não o será, inequivocamente, quando essa omissão se baseia na vontade actual do
doente, que é insuperável, em face da deontologia médica, a qual não pode
deixar de o encarar como sujeito, e não
simples objecto, de tratamento. Mas
poderá tal omissão, sem resvalarmos para a eutanásia, basear-se numa vontade
presumida e não actual, de algum modo duvidosa? A lei italiana acima referida
entende que não, em nome do princípio in
dubio pro vita, ao contrário deste projectos.
Os projectos em questão também se afastavam
deste princípio in dubio pro vita quando, na parte final dos citados
artigos 7º, n º 1, 14º, nº 1, ou 15º, fazem cessar a eficácia vinculativa da
declaração antecipada de vontade quando for manifestamente
presumível que o doente não desejaria manter a declaração. Em consonância
com tal princípio, bastaria que fosse presumível
(e não manifestamente presumível)
que o doente não desejaria manter a declaração para que esta deixasse de ter eficácia
vinculativa.
Em suma, parece-me que estes projectos de
lei continham normas que podem servir de obstáculo à eutanásia, mas não em
termos absolutos e inequívocos.
O reconhecimento (que é de aplaudir) do
direito à objecção de consciência dos profissionais de saúde a propósito da
eficácia das declarações antecipadas de vontade, decorrente do artigo 14º, nº
1, do projecto de lei nº 62/XII 1º, apresentado nesta legislatura (e dos
artigos 17º do projecto de lei nº 413/XI 2ª e do artigo 18º do projecto de lei
nº 788/X, apresentados nas legislaturas anteriores) é um sinal de que essa
eficácia pode colidir com os imperativos de consciência de alguns médicos, o
que não se compreenderia se estivesse em absoluto afastada a prática da
eutanásia por omissão.
O Bloco de Esquerda apresentou na 11ª
legislatura o projecto de lei nº 414/XI 2º, que «regula do direito dos cidadãos
a decidir sobre a prestação futura de cuidados de saúde em caso de incapacidade
de exprimir a sua vontade e cria o registo nacional do testamento vital
(RENTEV)». Logo no início da actual legislatura, a 12ª, apresentou o projecto
de Lei nº 21/XII/1ª, que retoma, no essencial, o conteúdo do anterior.
Na exposição de motivos de ambos os
diplomas também se acentuava a centralidade dos princípios da autonomia e da
auto-determinação quanto aos cuidados de saúde.
Quanto à definição do conteúdo das
declarações antecipadas de vontade e aos limites à sua eficácia, estes
projectos não se distinguiam, no essencial dos do PS e contra eles valem as
objecções acima indicadas
O artigo 3º de ambos os projectos também
não excluía das declarações antecipadas de vontade tratamentos úteis e
necessários e proporcionais à salvaguarda da vida, nem distinguia entre doenças
terminais ou não terminais. O artigo 6º de ambos os projectos estatuía que «é juridicamente inexistente, não produzindo qualquer efeito
jurídico, o Testamento Vital contrário à legislação portuguesa ou que não
corresponda às circunstâncias de facto que o outorgante previu no momento da
sua assinatura». O artigo 7º, nº 2, de ambos os projectos estatuía que «o
médico responsável e os restantes membros da equipa que prestam cuidados de
saúde ao outorgante do Testamento Vital respeitam integralmente as instruções
nele contidas, dentro dos limites estabelecidos na presente lei, exceptuando os
casos em que seja evidente a sua desactualização face ao estado da ciência no
momento em que o outorgante venha a encontrar-se incapaz de expressar a sua
vontade».
Também se consagrava o
direito à objecção de consciência no artigo 11º de ambos os projectos.
Há, porém, um aspecto que
torna mais grave, na perspectiva que venho defendendo, estes projectos, na
medida em que é mais nítido o perigo de resvalar no sentido da admissibilidade
da eutanásia.
Afirmava-se na exposição de
motivos de ambos os projectos que o “testamento vital” deve ir de encontro à
situação de muitas pessoas que
«recusam o prolongamento de uma vida sem mobilidade, sem autonomia, sem relação
ou comunicação com os outros, uma vida afastada dos padrões e critérios de
qualidade e dignidade pessoal pelos quais se conduziram toda a vida, uma vida
que recusariam prolongar se tivessem capacidade para fazer ouvir e respeitar a
sua vontade.» Pretendia-se, pois, dar cobertura legal explícita à mentalidade
subjacente à legalização da eutanásia quanto à desvalorização da vida quando
ela perde “qualidade”. A dignidade da vida humana deixa de ser uma qualidade
intrínseca e imperdível e passa a ser graduada de acordo com critérios de
“qualidade”. Reconhece-se que há vidas “indignas de ser vividas” e “sem valor”.
De modo especial, desvaloriza-se a vida dependente (a que pode representar um
“fardo” para os outros). Trata-se de veicular uma mensagem cultural de
desvalorização da vida limitada pela doença e pela deficiência que não deixa de
ter graves consequência sociais. Corre-se o risco de desistir de combater o
sofrimento das pessoas doentes e deficientes para as ajudar a morrer, com o que
também a sociedade se livra de um pretenso “peso”. Quem possa sentir-se esse
“peso” para os outros, a família e a sociedade, vê confirmada essa sua
sensação, quando ela devia, antes, ser contrariada, com a afirmação do valor da
vida em qualquer circunstância. Um risco que também foi salientado pelos
partidários da recente lei italiana, como vimos.
Ao primeiro desses projectos, apresentado
na legislatura anterior, eram juntos modelos legais de “testamento vital” que
concretizam essa mentalidade e especificam as situações em que vida pode perder
“dignidade”. Contemplava-se a hipótese de «doenças graves e irreversíveis que
afectem a autonomia, a capacidade de comunicação e a qualidade de vida», sem as
restringir a doenças terminais e sem limitar o grau em que essas capacidades
são afectadas. Contemplavam-se situações de ausência de «expectativas de tratamento
e recuperação sem sequelas que impeçam uma vida autónoma e a capacidade de relação
e comunicação com os outros». Contemplavam-se situações de recusa de amputação
de membros (excepto dedos), ainda que necessária à sobrevivência. Pode dar-se,
assim, cobertura a intenções que até se situarão fora do âmbito da mentalidade
subjacente à eutanásia, situando-se no âmbito da pura e simples vontade
suicida.
O projecto de lei apresentado na actual
legislatura (nº 21/XII 1ª) já não continha em anexo algum modelo de “testamento
vital”, estatuindo que tal modelo seria definido pelo Ministério da Saúde
(artigo 5º, nº 5). Nos termos do artigo 18º deste projecto, os estabelecimentos de saúde, públicos e privados, seriam
obrigados a disponibilizar, em locais de fácil acesso e consulta pelos utentes,
informação sobre o “testamento vital” e sobre o procedimento para a sua
formalização, assim como tal modelo em suporte de papel pré-impresso.
Atendendo aos princípios
subjacentes à exposição de motivos deste projecto, não deixa de ser justificado
o receio de definição do modelo de “testamento vital” em termos semelhantes aos
que constavam do modelo anexo ao projecto apresentado na legislatura anterior.
E de que a difusão em termos amplos desse modelo, como pretendia o projecto ora
apresentado, pudesse ser interpretada como um convite e um estímulo à
elaboração de “testamentos vitais” que contemplem, precisamente, a recusa de
tratamentos necessários e proporcionais à salvaguarda da vida de pessoas com
alguma deficiência, vida que possa acarretar particulares encargos para a
família e a sociedade. O “testamento vital” seria um fácil pretexto para evitar
tais encargos.
O PSD apresentou na legislatura
anterior o projecto de lei nº 428/XI,
sobre “directivas antecipadas de vontade”. Na actual legislatura apresentou o
projecto de lei nº 63/XI, que “regula o regime das directivas antecipadas de
vontade”.
Na exposição de motivos destes projectos de
lei também se acentuava o princípio da autonomia do doente. Mas aí se afirmava
que tais declarações de dirigem «fundamentalmente, a situações de doença
terminal».
Na exposição de motivos do projecto de
lei nº 428/XI, apresentado na legislatura anterior, afirmava-se que o projecto
pretendia «no essencial, fixar o seu objecto naquilo que é hoje designado como
“excesso terapêutico”», o qual de traduz «em tratamentos médicos onerosos,
perigosos, extraordinários ou desproporcionados aos resultados esperados», e
que recusar o “excesso terapêutico não significa que «se pretenda dar a morte»,
mas «aceitar o facto de não a poder impedir». Este tipo de afirmações já não
constava, porém, da exposição de motivos do projecto de lei nº 63/XII,
apresentado nesta legislatura.
Estatuia o artigo 5º de ambos os projectos,
quanto ao conteúdo das “directivas antecipadas de vontade”:
«1. Podem constar do documento de
directivas antecipadas de vontade disposições que expressem a vontade do
outorgante, de, caso se encontre em estado permanente de inconsciência,
designadamente:
a) Não ser submetido a tratamentos que se
encontrem em fase experimental;
b) Não ser submetido a tratamento de suporte
das funções vitais se este ofender a sua liberdade de consciência, de religião
ou de culto;
c) Não ser submetido a tratamento fútil,
inútil ou desproporcionado, que apenas vise retardar o processo natural de
morte;
d) Receber todos os cuidados de saúde que
segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina se mostrem
indicados para minorar a doença de que sofre ou de que pode vir a sofrer;
e) Receber os cuidados paliativos adequados
ao respeito pelo seu direito a uma terapêutica analgésica adequada.
2. Podem ainda constar do documento de
directivas antecipadas de vontade disposições que expressem a vontade do
outorgante de não receber informação sobre o seu estado de saúde em caso de
prognóstico fatal.»
Estatuía, por seu turno, o artigo 6º de
ambos os projectos, quanto aos limites das “directivas antecipadas de vontade”:
«1. São juridicamente inexistentes, não
produzindo qualquer efeito jurídico, as directivas antecipadas de vontade:
a) Que sejam contrárias à lei ou às leges
artis;
b) Cujo cumprimento possa implicar a morte
no caso de a pessoa não sofrer de doença terminal;
c) Que não correspondam às circunstâncias de
facto que o outorgante previu no momento da sua assinatura.»
Estes projectos já se aproximavam mais da
lei italiana que começámos por analisar e contra ele não procederão as
objecções acima apontadas aos projectos anteriormente analisados.
A exclusão da eficácia das “declarações
antecipadas de vontade” quando destas possa resultar a morte de uma pessoa que
não sofra de doença terminal (artigo 6º, nº 1, b)) afasta claramente do seu
âmbito, ao contrário do que se verifica com os projectos anteriormente
analisados, intenções puramente suicidárias ou de recusa da vida com deficiência.
Embora não decorresse inequivocamente
(pois o uso da expressão “designadamente” significa que não estamos perante um
elenco de situações taxativo) do citado artigo 5º que o conteúdo dessas
declarações não pode abranger a recusa de tratamentos úteis, necessários e
proporcionados à salvaguarda da vida, podia entender-se que tal seria a mais
razoável interpretação deste preceito. E é assim porque se fosse outra a
intenção do legislador certamente tal situação (pelo particular relevo que tem)
constaria do elenco das situações expressamente previstas; porque as situações
não expressamente previstas devem ter alguma equiparação (e não é esse o caso)
às que são expressamente previstas (estamos perante a técnica legislativa
chamada dos exemplos padrão); e porque
é o que resulta a contrario sensu da
previsão da recusa de tratamentos fúteis, inúteis ou desproporcionados (a contrario sensu, estará excluída a
recusa de tratamentos úteis, necessários e proporcionados). Essa interpretação também
se coadunaria mais com a exposição de motivos do projecto de lei nº 428/XI,
apresentado na legislatura anterior, onde se afirmava, como vimos, que o
projecto se centra na recusa do “excesso terapêutico”, sendo que, porém, esta
referência já não constava da exposição de motivos do projecto de lei nº
63/XII, apresentado nesta legislatura.
O
CDS/PP apresentou na legislatura anterior o projecto de lei nº 429/XI/2ª, que «regula
as Directivas Antecipadas de Vontade em matéria do Testamento Vital e nomeação
de Procurador de Cuidados de Saúde e procede à criação do Registo Nacional do
Testamento Vital». Com a mesma designação, apresentou na actual legislatura o
projecto de lei nº 64/XII.
Na exposição de motivos destes projectos
também se sublinhava o relevo da autonomia da pessoa doente, mas não deixava de
se sublinhar que este valor tem de ser articulado com o da inviolabilidade da
vida humana. Aí se afirmava:
«(…) Nesta linha, o respeito pela
inviolabilidade da vida humana da pessoa doente, pela sua dignidade e autonomia,
são princípios e valores que enquadram a matéria que este diploma aborda, não
na lógica de que existe uma hierarquia de direitos das pessoas mas antes uma
harmonização no exercício dos mesmos, de modo a que a defesa do exercício da
autonomia individual não colida com a responsabilidade por si e pelos outros.
Do mesmo modo, importa aqui clarificar que entendemos a dignidade como um
importante valor inerente e intrínseco à condição humana, do qual decorre
depois o dever de respeitar essas mesmas pessoas, nomeadamente no que concerne
ao seu direito à autonomia. Apesar da vastidão do conceito, realçamos que a
dignidade contempla mas não se esgota no direito à autonomia.»
Quanto ao conteúdo e limites do
“testamento vital”, estatuía o artigo 4º de ambos os projectos:
«1. Podem constar no testamento vital e
da procuração de cuidados de saúde disposições que expressem a vontade clara e
inequívoca do outorgante em:
a) receber todos os cuidados de saúde
que, segundo o estado actualizado dos conhecimentos e da experiência da
medicina, se mostrem indicados para minorar a doença de que sofre ou de que
pode vir a sofrer;
b) receber os cuidados paliativos
adequados ao respeito pelo seu direito a uma intervenção global no sofrimento
determinado por doença grave ou irreversível, em fase avançada;
2.Podem constar do testamento vital e da
procuração de cuidados de saúde disposições que expressem a vontade clara e
inequívoca do outorgante em:
a) não ser submetido a tratamento
considerado fútil e desproporcionado no seu contexto clínico e de acordo com as
boas práticas médicas, nomeadamente no que concerne às medidas de suporte
básico de vida e às medidas de
alimentação e hidratação artificiais;
b) não receber informação sobre o seu
estado de saúde em caso de prognóstico fatal;
3.São juridicamente inexistentes e não
produzem qualquer efeito jurídico as disposições do testamento vital e
procuração contrárias à lei, às leges
artis, ou que não correspondam às circunstâncias de facto que o outorgante
previu no momento da sua assinatura.»
Também este projecto se aproximava mais
da lei italiana acima comentada. O conteúdo do “testamento vital” estava
definido no citado artigo 4º, que integrava um elenco (aparentemente taxativo)
de situações onde se incluía a recusa de um «tratamento considerado fútil e
desproporcionado no seu contexto clínico e de acordo com as boas práticas
médicas», mas não a recusa de tratamentos que, pelo contrário, sejam
necessários, úteis e proporcionados à salvaguarda da vida.
Deve, porém, reconhecer-se que a referência
à alimentação e hidratação artificiais podia dar origem a algum equívoco. A
mais correcta interpretação levaria a considerar que a recusa de alimentação e
hidratação artificiais que podem constar do “testamento vital” seriam as que
não são (ou deixam de ser) úteis, por não atingirem o seu objectivo, na linha
do que também estipula a lei italiana acima analisada. Outra interpretação
seria contraditória com o teor integral do preceito em causa (que fala em
«tratamento considerado fútil e desproporcionado (…), nomeadamente no que
concerne (…) às medidas de alimentação e hidratação artificiais». O equívoco
podia, porém, surgir, porque não é esse a regra quanto à alimentação e
hidratação, mesmo artificiais, que, como vimos, nem sequer poderão ser consideradas
um “tratamento” ou uma “terapia”.
Apesar
das diferenças significativas entre estes projectos, a lei que veio
posteriormente a ser aprovada em resultado da discussão parlamentar (a Lei nº
25/2012, de 16 de Julho, que «regula as
diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento
vital, e a nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional
do Testamento Vital (RENTEV)», foi-o por unanimidade.
De mais relevante, na perspectiva das questões acima
analisadas, há que destacar, do conteúdo da lei, o seguinte.
Estatui o artigo 2º, sobre a definição e conteúdo do
documento:
«1
— As diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento
vital, são o documento unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo
próprio, no qual uma pessoa maior de idade e capaz, que não se encontre
interdita ou inabilitada por anomalia psíquica, manifesta antecipadamente a sua
vontade consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde
que deseja receber, ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se
encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente.
2 — Podem
constar do documento de diretivas antecipadas de vontade as disposições que
expressem a vontade clara e inequívoca do outorgante, nomeadamente:
a) Não ser submetido a tratamento de
suporte artificial das funções vitais;
b) Não ser submetido a tratamento fútil,
inútil ou desproporcionado no seu quadro clínico e de acordo com as boas
práticas profissionais, nomeadamente no que concerne às medidas de suporte
básico de vida e às medidas de alimentação e hidratação artificiais que apenas
visem retardar o processo natural de morte;
c) Receber os cuidados paliativos
adequados ao respeito pelo seu direito a uma intervenção global no sofrimento determinado
por doença grave ou irreversível, em fase
avançada,
incluindo uma terapêutica sintomática apropriada;
d) Não ser submetido a tratamentos que se
encontrem em fase experimental;
e) Autorizar ou recusar a participação em programas
de investigação científica ou ensaios clínicos.»
A alusão à recusa de “tratamento de suporte
artificial de funções vitais” não constava dos projectos apresentados pelo PSD
e pelo CDS-PP. Tal tipo de tratamento pode configurar excesso terapêutico, ou não; também pode ser necessário e
justificado na perspectiva da salvaguarda da vida, apesar do seu carácter
“artificial”. Pode, pois, suscitar-se, a este respeito, uma objecção à luz da
necessidade da salvaguarda da vida em face de uma declaração de vontade não
actual e, por isso, não absolutamente inequívoca.
Quanto à recusa de tratamento “fútil, inútil ou
desproporcionado”, nada haverá a objectar. A alusão às medidas de “alimentação
e hidratação artificiais que apenas visem retardar o processo natural de
morte”, que constava do projecto do CDS-PP, impõe um esclarecimento na linha do
que já acima referi.
Em regra, a alimentação e hidratação artificiais não
configuram um “tratamento fútil, inútil e desproporcionado”. Não visam
“retardar o processo natural da morte” quando com elas se pretende evitar a
morte não devida à doença em causa, mas por inanição e desidratação. A morte
por inanição e desidratação nunca configura “um processo natural de morte”[48]. Quando
a uma pessoa em estado vegetativo persistente se ministra alimentação e
hidratação artificiais (como no caso de Eluana Englaro) não se está a “retardar
o processo natural da morte” (não se trata de um doente terminal, mas de um
doente que padece de grave e extrema deficiência).
As situações contempladas nas alíneas c), d)
e e) também não suscitam objecções.
Da enumeração de todas essas situações pode
concluir-se, a contrario sensu, que
não deverão ser atendíveis directivas antecipadas de vontade de recusa de
tratamentos não artificiais de suporte vital que sejam úteis, justificados e
proporcionados, ou a recusa de alimentação e hidratação artificiais que não
visem retardar o processo natural da morte. É certo que essa enumeração não é
taxativa (usa-se a expressão “nomeadamente”). Mas as situações nela não
contempladas hão-de ter alguma analogia com as que nela estão expressamente
contempladas (segundo a técnica dos exemplos
padrão, a que já me referi) e isso não se verificará nessas situações, que
representam o exacto contrário do que é expressamente indicado na enumeração.
Quanto aos limites das directivas antecipadas de
vontade, estatui o artigo 5º:
«São
juridicamente inexistentes, não produzindo qualquer efeito, as diretivas
antecipadas de vontade:
a) Que sejam contrárias à lei, à ordem
pública ou determinem uma atuação contrária às boas práticas;
b) Cujo cumprimento possa provocar
deliberadamente a morte não natural e evitável, tal como prevista nos artigos 134.º
e 135.º do Código Penal;
c) Em que o outorgante não tenha
expressado, clara e inequivocamente, a sua vontade.»
Seria
contrária à “lei” uma directiva antecipada de vontade cujo cumprimento
configure a prática de eutanásia activa voluntária, a qual se traduz penalmente
num crime de homicídio a pedido da vítima (previsto no artigo 134º do Código
Penal), ou o auxílio activo ao suicídio (previsto como crime no artigo 135º do
mesmo Código). Mais explicitamente, a alínea b) deste artigo (cujo conteúdo não constava dos projectos) afirma
isso mesmo, aludindo à provocação da “morte não natural e evitável” e a esses
artigos do Código Penal. Esta alusão merece alguma atenção e aprofundamento.
Desta referência,
também em conjugação com a redacção da citada alínea b) do artigo 2º, pode concluir-se que, de acordo com o espírito da
lei, às directivas antecipadas de vontade deve ser dado relevo na perspectiva
da aceitação do processo natural da morte, e não na perspectiva da provocação
de uma morte não natural e evitável (uma coisa é aceitar a morte, outra provocar
a morte)[49].
Pode
questionar-se se desta alínea b) do
artigo 5º também resulta que o conteúdo das directivas antecipadas de vontade
não abrange a eutanásia por omissão, isto é, a provocação de uma morte não
natural e evitável por omissão de tratamentos úteis e justificados na
perspectiva da salvaguarda da vida. Isso dependerá da questão de saber se o
crime de homicídio a pedido da vítima pode ser praticado por omissão. O artigo
10º, nº 1, do Código Penal equipara a acção à omissão («Quando um tipo legal de
crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a
produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se for outra a
intenção da lei»). Mas a punição da omissão supõe, nos termos do nº 2 do mesmo
artigo, que sobre o omitente recaia um dever jurídico que pessoalmente o
obrigue a evitar esse resultado (a chamada posição
de garante). O médico tem, em geral, esse dever, salvo se a pessoa carecida
da sua intervenção manifestar uma vontade contrária a essa intervenção. A
vontade actual não suscita dúvidas. Já o suscitará uma vontade não actual,
designadamente a que se exprime num “testamento vital”. A alínea em questão
servirá para não dar relevo a essa vontade quando esteja em causa uma “morte
não natural e evitável”?
Poder-se-á
dizer que a exclusão da eutanásia activa já decorreria da própria definição de
“directiva antecipada de vontade” que consta do citado nº 1 do artigo 2º (que é
relativa à decisão sobre “cuidados de saúde” a receber ou não receber, e não à
prática de actos que possam provocar activamente a morte). A citada disposição
da alínea b) do artigo 5º poderá não
ter sentido útil (ou ter esse sentido muito reduzido) se não se traduzir na
recusa da eutanásia por omissão (a qual pode resultar da omissão de cuidados de
saúde necessários na perspectiva da salvaguarda da vida e poderia, por isso,
resultar do cumprimento de uma directiva antecipada de vontade).
Da
redacção da lei aprovada não consta, como constava do projecto apresentado pelo
PSD, a exclusão de doenças não terminais do âmbito de relevância das directivas
antecipadas de vontade. Tal permitiria excluir desse âmbito a vontade
(suicidária) de rejeição da vida em condições de mais ou menos grave limitação
ou deficiência (ou de suposta menor “qualidade de vida”). É de lamentar, à luz
dos princípios a que venho defendendo, que esta exclusão não conste da lei
aprovada. Mas impõe-se reconhecer que, atendendo ao que resulta das referidas
alíneas b) do artigo 2º e b) do artigo 5º, não estamos, nesses
casos, perante uma aceitação de uma “morte natural”, mas da provocação de uma
“morte não natural e evitável”. Poderá, por isso, e por força destes dois
preceitos, considerar-se que estas situações estarão excluídas do âmbito das
declarações antecipadas de vontade.
Quanto à eficácia destas declarações, estatui
o nº 2 do artigo 6º:
«2 — As diretivas antecipadas de
vontade não devem ser respeitadas quando:
a) Se comprove que o outorgante não desejaria mantê-las;
b)
Se verifique evidente desatualização da vontade do outorgante face ao progresso
dos meios terapêuticos, entretanto verificado;
c) Não correspondam às circunstâncias de facto que o outorgante
previu no momento da sua assinatura.»
Não se exige, pois, como o fazia o
projecto apresentado pelo PS, que a possibilidade de divergência entre o
conteúdo da directiva antecipada de vontade e a hipotética vontade actual do
outorgante seja “manifestamente presumível” (o que poderia ser considerado
demasiado exigente à luz do princípio in
dubio pro vitae), mas apenas que se comprove essa possibilidade.
Manifestação desse princípio in dubio pro vitae é o que dispõe o nº 4
desse artigo 2º:
«4 — Em caso de urgência ou de
perigo imediato para a vida do paciente, a equipa responsável pela prestação de
cuidados de saúde não tem o dever de ter em consideração as diretivas
antecipadas de vontade, no caso de o acesso às mesmas poder implicar uma demora
que agrave, previsivelmente, os riscos para a vida ou a saúde do outorgante.»
O artigo 9º da consagra o direito à
objecção de consciência, na linha do que faziam todos os projectos apresentados.
Do confronto entre a forma como a
discussão desta questão ocorreu em Itália e em Portugal não pode deixar de se
notar o grande contraste entre a forma tão viva e polémica da discussão em
Itália e a discussão aparentemente consensual que deu origem à aprovação por
unanimidade da lei portuguesa. Esse contraste poderá causar alguma
perplexidade: será que o que dividiu os deputados italianos (que tem a ver,
sobretudo, com a questão do relevo de declarações antecipadas de vontade de recusa
de tratamentos úteis e proporcionados à salvaguarda da vida) não divide os
deputados portugueses, ou será que as razões dessa divisão foram ocultadas ou
minimizadas? Penso que a divisão em causa há-de reflectir-se na interpretação
da lei aprovada. Algumas das interpretações que acima proponho não serão
certamente consensuais. Mas, em meu entender, delas dependerá saber se a
regulação do “testamento vital” se traduzirá num primeiro passo em direcção à
legalização da eutanásia (como pretenderão alguns dos deputados que aprovaram a
lei), ou, pelo contrário, num obstáculo nessa direcção (como certamente também
pretenderão outros dos deputados que aprovaram essa lei).
[1] Liberal, 14/7/2011.
[2] Avvenire, 23/3/2011.
[3] Avvenire, 11/3/2011.
[4] Il Messagero, 7/3/2011.
[5] Avvenire, 26/3/2011.
[6] Avvenire, 12/3/2011.
[7] Avvenire, suplemento È Vita,
7/7/2011.
[8] Zenit, ed. em italiano, 13/7/2011
[9] Avvenire, 1/7/2011.
[10] L a Republica, 7/7/2011.
Francesco d´Agostino,
presidente da União dos Juristas Católicos Italianos, e presidente honorário do
Comitato Nazionale per la Bioetica respondeu a estas violentas
críticas no jornal Avvenire de
8/7/2011.
[11] Pode
ver-se a análise desta questão em Avvenire,
suplemento È Vita, 14/7/2011.
[12] Avvenire, 13/7/2011.
[13] «Testamentos de vida e de
morte», in Publico, 25/10/2010.
[14] «L´invettiva e la ragione», in Avvenire, 8/7/2011, e «La vittoria di Ippocrate», in Avvenire, 15/7/2011..
[15] «Contro il far-west», in Liberal, 9/3/2011.
[16] «Sono del tutto laici i motivi per dire sì
alla legge sulle “Dat”», in Avvenire,
9/3/2011.
[17] «Storia di Ruud, che
voleva morire e fatto fragile chiese di restare vivo», in Avvenire, 13/7/2010.
[18]
Significativo, ainda, o caso da inglesa Nikki Kenward, que, depois de ter
estado cinco meses completamente paralisada (à excepção do olho) por efeito do
sindroma de Guillain-Barre, afirma que, apesar de todo o sofrimento e contra
tudo o que muitas pessoas poderão imaginar se colocadas perante esse drama,
nessa situação pretendia viver. Essa experiência fá-la militar hoje contra a
eutanásia e a suspensão da alimentação e hidratação artificiais de doentes em
estado vegetativo persistente (in Mail on
line, 15/7/2010).
[19] «Quanta distanza tra
“bio-testamemnto” e “dchiarazioni antecipate”, in Avvenire, 25/2/2011, e «Basta equivoci: “sí” alla legge», in Avvenire, 3/3/2011.
[20] Eluana è tutti noi – perché una una legge e
perché no al “testamento biológico”, Società Editrice Fiorentina, Florença,
2008, pg. 12.
[21] «Concretezza della
liberta – Ideologia della autodeterminazione», in Avvenire, 10/7/2011.
[22] Avvenire, suplemento È Vita, 31/3/2011.
[23] Il valore della vita», in Liberal, 27/4/2011, e «Ai confini
della vita, dalla parte dell´uomo», in Liberal,
14/7/2011.
Sobre toda a questão do caso Eluana Englaro e da lei em apreço, pode ver-se, Paola Binetti, La vita
è uguale per tutti – La legge italiana e la dignità della persona,
Mondadori, Milão, 2009.
[24]
Afirma, nesta linha, a declaração da Conferência Episcopal norte-americana
sobre suicido assistido, de 16/6/2011(http://www.usccb.org/toliveeachday/bishops-statement-physician-assisted-suicide.pdf)
que não é por acaso que os founding
fathers fizeram anteceder, na Constituição norte-americana, os direitos à
liberdade e à busca da felicidade do direito à vida.
[25]
Afirmam, também nesta linha, Carlo Casini, Marina Casini e Maria Luisa di
Pietro (op.cit., pg. 145):
«Não pode dizer-se que a
última expressão da liberdade é a escolha da morte, porque uma vez actuada esta
decisão não pode voltar-se atrás. Elemento essencial da liberdade –
salvaguardada a responsabilidade para com terceiros – é a revogabilidade. Uma
escolha de perda irrevogável da liberdade não é expressão da liberdade.
Há um nexo misterioso entre
vida e liberdade.
Na ordem da vida física a
morte é exactamente o oposto da liberdade, é o seu fim.
Quem salva uma pessoa de
uma tentativa de suicídio, não lhe salva apenas a vida, restitui-lhe a
liberdade.»
[26] «Dat, perché queste
regole – dici dubbi e dieci risposte», Avvenire,
suplemento È Vita, 3/3/2011.
[27] «Diritto di morire:
pericolo per chi è più debole», in
Avvenire, suplemento È Vita,
24/2/2011.
[28] Op. e loc. cit..
[29] Op. e loc. cit.. Também salientam esta aspecto Rocco Buttiglione e
Cesare Mirabelli, op. e loc. cit.,
assom como Carlo Casini, Marina Casini e Maria Luisa di Pietro, op.cit., pg. 129..
[30] Assim, Rocco Buttiglione, op. cit..
[31] Op, e loc. cit..
[32] «Dal
caso Englaro alle dechiarazioni antecipate di tratamento» (II), Zenit, ed. em italiano, 31/5/2009.
Afirmam, também neste
sentido, Carlo Casini, Marina Casini e Maria Luisa di Pietro (op.cit., pg. 199):
«…o conceito de
encarniçamento terapêutico é complexo. A proporcionalidade dos tratamentos não
depende apenas da avaliação abstracta dos benefícios ou da futilidade das
hipotéticas terapias. Depende também da situação concreta do paciente, a qual é
condicionada também por circunstâncias não sanitárias. Por isso, nessa
avaliação entram seguramente também as propensões do doente. As incomodidades a
enfrentar em caso de uma possibilidade de tratamento, em relação a outra,
dependem também do modo subjectivo como são sentidas pelo doentes e das
possibilidades materiais de as superar.»
[33] Avvenire, 19/3/2011 e 15/7/2011.
[34]
Significativo o que afirma, a este respeito, Carlo Casini, Marina Casini e
Maria Luisa di Pietro (op.cit., pg.
62):
«Vêm à mente os milhares de
mães, irmãos e familiares que, desde há anos, continuam a assistir uma pessoa
querida que se encontra nas mesmas condições de Eluana. Muitas famílias mudaram
a sua vida por isto, mudaram de trabalho, de férias, de casa. Muitas tornaram-se pobres para prestar
assistência ao filho, à mulher, ao marido que não fala, não caminha, que apenas
parece, de vez em quando, estranhamente, sorrir. Agradece? Conhecemos alguns
destes casos. O que pensarão estes milhares de mães ao ouvir na televisão que
Eluana deve morrer? Que é isso que está certo? São eles que estão errados? O
seu sacrifício è inútil? Fizeram mal a si mesmos, aos filhos, à sua família? Se
a história de Eluana terminar com a morte decidida pela sociedade, mudarão
também eles de ideias, reconhecerão entre lágrimas o seu erro? Queriam fazer
bem ao seu filho e acabaram por fazer com que sofresse mais? Dedicaram tempo,
sono, dinheiro a um cadáver?
E no entanto… Não há
ninguém que não admire, que não louve estas mães, estes pais, este cônjuge, que
não se comova ao escutar o seu testemunho.»
[35] Assim, entre outros,
Paola Binetti e Rocco Buttiglione, op.
e loc. cit..
[36] Assim, entre outros,
Lúcio Romano, «Dal caso Englaro alle dechiarazioni antecipate di tratamento»
(I), zenit, ed. em italiano,
24/5/2009.
[37]http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/2004/march/documents/hf_jp-ii_spe_20040320_congress-fiamc_po.html
[38]http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20070801_risposte-usa_po.html
[39]
Tradução portuguesa, ed. Paulinas, Lisboa, 1995, n. 120, pg. 100.
[40] Pode
ver-se, ainda neste sentido, o parecer do grupo de reflexão bioética da
Comissão dos Episcopados da Comunidade Europeia, Science & Éthique, vol. 2, Récueil
des avis élaborés par le groupe de réflexion bioéthique,pgs. 33 a 50, acessível, em Julho
de 2012, em www.comece.org
[41] Avvenire, 27/7/2011.
[42]
Assim, por exemplo; Lúcio Romano, «Dal caso …» (I), cit..; Paola Binetti, «Caro Umberto, la vera libertà è scegliere», in Liberal, 6/5/2011; Massimo
Gandolfini, «Buona Scienza e Scienza Buona», in Biofiles (publicação da associação Scienza e Vita) , nº 2, 26/4/2011..
[43] Avvenire, 16/3/2011.
[44] Avvenire, 29/3/2001..
[45] Avvenire, 8/7/2010.
[46] Assim, por exemplo, Lúcio
Romano in Avvenire, suplemento È Vita, 26/4/2011.
[47] Na
definição da carta encíclica de João Paulo II Evangelium Vitae, por «eutanásia,
em sentido verdadeiro e próprio, deve-se entender uma acção ou uma omissão
que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte como o objectivo de
eliminar o sofrimento» (n. 65).
[48] Vem
a propósito referir uma notícia recente que dá conta da oposição de vários
médicos britânicos a um programa (Liverpool
Care Pathway) que prevê a suspensão de alimentação e hidratação de doentes
terminais. Criticam esses médicos o facto de essa suspensão, alegadamente
motivada pela necessidade de redução de despesas públicas e de libertação de
camas ocupadas, provocar uma lenta agonia particularmente dolorosa, por
privação de substâncias nutrientes e hidratantes, muito longe de uma morte
“natural” ou “digna” (ver Avvenire,
12/7/2012).
[49] É certamente por isso que
partidários da legalização da eutanásia criticaram esta alusão da lei à “morte
natural” (ver Laura Ferreira dos Santos e João Carlos Macedo, «Desvitalidades
do Testamento aprovado», in Público,
2/7/2012 )