A propósito de uma sentença do Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos
Há quem esteja tão empenhado na defesa
dos direitos fundamentais que até os queira impor … à força! Parece ser o caso
do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, na sua sentença de 31 de Janeiro
passado, contra a Roménia. Ao arrepio do mais elementar sentido comum e
desrespeitando mais de dois mil anos de tradição cristã, esse Tribunal entendeu
legítima, em virtude do artigo 11º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
a pretensão de alguns sacerdotes ortodoxos romenos e seus colaboradores
pastorais de se constituírem em sindicato.
É muito de saudar o empenho pela
aplicação universal dos direitos humanos, exigência em que a Doutrina Social da
Igreja foi precursora, mas em que a revolução francesa e outros movimentos
cívicos também colaboraram. Contudo, o reconhecimento formal e efectivo dessas
prerrogativas, decorrentes da irrenunciável dignidade humana, não pode
ultrapassar certos limites, em cujo caso a sua aplicação seria contrária ao
mais essencial dos direitos fundamentais: a liberdade responsável das pessoas e
instituições.
Reconheça-se, com empenho, o direito à
sindicalização dos trabalhadores, mas não se imponha autoritariamente a todos o
exercício desse direito, a que alguns devem, em virtude de uma razão maior, renunciar.
De igual modo, a todos compete o direito ao matrimónio, mas o seu exercício a
ninguém deve ser, como é óbvio, imposto. E quem opte, consciente e
voluntariamente, por uma entrega pessoal que exclua o matrimónio, não se lhe
permita que o invoque, para efeitos de uma improcedente reivindicação.
Poder-se-ia questionar se o ordenamento
jurídico pode aceitar, como válida e eficaz, uma renúncia a um direito
fundamental, como o prescrito no artigo 11º da Convenção Europeia dos Direitos
do Homem. Decerto, não seriam nunca aceitáveis, por absurdas hipóteses, contratos
de venda da própria pessoa, ou de aluguer do seu corpo, que seriam necessariamente
aberrantes e inválidos. Mas é tolerável e até meritório que alguns cidadãos
optem por dar à sua vida uma dimensão de serviço à comunidade, através da sua
consagração religiosa, que pressupõe a livre e legítima abdicação de algumas
prerrogativas pessoais.
A determinação, expressa pelos votos
religiosos, ou por um compromisso análogo, de não possuir bens materiais, de
obedecer ao seu superior, mais além do que seria exigível numa relação laboral,
ou de permanecer célibe, não só não ofende a condição humana como a dignifica:
não há maior amor do que dar a própria vida pelos outros. Portanto, aos que se
comprometem liberrimamente com a sua Igreja, mediante um vínculo de voluntária
e consciente obediência, a respectiva entidade religiosa, paternal mas não
paternalista, pode e deve exigir uma coerência responsável. O Estado, por sua
vez, deve respeitar a sacralidade desse vínculo, bem como a especificidade do
ministério eclesial, o que não se verificaria se reduzisse esse munus a uma simples relação laboral.
Também não seria pertinente que o jugo matrimonial fosse equiparado a uma mera
prestação de serviços domésticos, ou a um sui
generis arrendamento da habitação familiar.
Foi no dia 17 de Julho de 1794 que foram
guilhotinadas, em Paris, dezasseis carmelitas do convento de Compiègne. O seu
crime não era apenas a sua fé em Deus, mas também e principalmente a ousadia da
sua liberdade. Foram mártires não só porque eram religiosas num país
oficialmente ateu mas, sobretudo, porque eram livres sob um jugo totalitário,
que se dizia defensor da «liberdade,
igualdade e fraternidade».
Em nome de todos os Carmelos franceses, a
prioresa de Grenelle enviara um Memorial
à Assembleia Nacional revolucionária, nos seguintes termos: «As riquezas das Carmelitas nunca foram
objecto de cobiça. A nossa fortuna consiste nessa pobreza evangélica que, mesmo
depois de saldadas todas as dívidas para com a sociedade, ainda tem meios para
ajudar os necessitados e socorrer a pátria e, em todas as circunstâncias, nos torna
felizes com as privações que passamos. A liberdade mais completa preside aos
nossos votos; a igualdade mais perfeita reina nas nossas casas; entre nós, não
há ricas nem nobres […]. No mundo
comprazem-se em publicar que os mosteiros só encerram vítimas que se vão
consumindo lentamente pelos seus sofrimentos; mas nós declaramos diante de Deus
que, se há na terra autêntica felicidade, nós a temos […]. Depois de terdes proclamado com tanta
solenidade que o homem é livre, querereis obrigar-nos a pensar que já não o
somos?».
Conta a história que as mártires de
Compiègne morreram cantando o Te Deum
e a Salvé Rainha. Madame Roland,
fervorosa revolucionária que, não obstante, também foi guilhotinada, não teve a
dita de uma tão excelsa inspiração à hora da morte, mas não lhe faltou razão
quando, a caminho do cadafalso, afirmou: «Ó
liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome!».