In DN
Não sei bem o
que aconteceu. Foi uma espécie de ataque, que me atirou paralisado para
esta cama de hospital. Ouvi há pouco o médico dizer à minha mulher que
há hipóteses de eu sobreviver.
Ainda de manhã me levantei cheio de
vigor e dinamismo, pleno de ocupações e projectos. Agora estou aqui,
prostrado, inútil, vegetativo. Não sei o que foi, mas sei que não
consigo falar nem mexer o lado direito. Tenho dores não sei bem onde. A
minha tentativa de sorrir deu um esgar que assustou a enfermeira. Acabou
tudo, mesmo que haja hipóteses de sobreviver. A minha vida, se ainda
lhe posso chamar assim, mudou para sempre. Ou melhor, a vida que eu
tinha acabou.
Foi então que me lembrei da pergunta que decidira
fazer sempre: "Senhor, o que é que Tu queres disto?" Foi há anos que,
perante novidades e acasos que me sucedem, quis ver tudo a partir de
Deus. Qual a atitude que Ele quer que eu tome agora? Esta pergunta
salvou-me de muitas situações difíceis, onde a minha mesquinhez me ia
meter em sarilhos. As coisas vistas de cima ficam muito diferentes.
S.Paulo disse que "tudo concorre para o bem dos que amam a Deus" (Rm 8,
28). Do ponto de vista de Deus as coisas são sempre boas, belas,
grandes. O Senhor do universo tem sempre uma saída, uma solução, um
projecto grandioso ligado a tudo o que faz. O que é que o Senhor quer
disto?
Aqui, mais até que nos problemas do emprego ou
perplexidades de família, a pergunta parece fazer todo o sentido. Esta
cama de hospital é tão inesperada e surpreendente que tem de ter uma
razão. O Senhor podia ter-me levado, mas não levou. Não me quis levar. A
minha vida acabou mas eu continuo aqui. Porquê? Devo ser preciso para
algo. Ou isto tem lógica, ou então nada tem.
Mas que pode o Senhor
querer de um paralítico? Qual a tarefa que me compete? O que pretende o
Senhor disto? Ser testemunha d'Ele aqui, claro. O Senhor precisa agora
de alguém neste sítio e mandou-me a mim. A resposta é a mesma que eu
tinha ouvido tantas vezes: "Nada temas, continua a falar e não te cales,
porque Eu estou contigo e ninguém porá as mãos em ti para te fazer mal,
pois tenho um povo numeroso nesta cidade" (Act 18, 9-10). Ser sua
testemunha aqui, paralítico na cama. É isso mesmo. Ainda me falta mais
isso, antes de o Senhor me levar.
O meu sofrimento, paciência,
alegria na adversidade testemunharão uma presença diferente. "Se alguém
quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, dia após dia, e
siga-me. Pois, quem quiser salvar a sua vida há-de perdê-la; mas, quem
perder a sua vida por minha causa há-de salvá-la" (Lc 9, 23-24). A minha
cruz agora é a paralisia, as dores. Já foi o desemprego, a falência, o
insulto, agora é a cama de hospital. Ligada à Mangedoura e Calvário é
testemunha e presença salvadora, de mim e outros, neste sítio.
Mas
como? Não consigo falar e mal me posso mexer. As visitas, doentes e
pessoal do hospital não entendem o que penso, não ouvem o que digo, não
percebem o que sinto. Não pode ser isso. Uma testemunha precisa de meios
para testemunhar. Mesmo cheio de boas intenções e propósitos elevados,
ninguém dará por eles. Quando ninguém ouve, como se pode ser apóstolo?
Então
percebi. Um consegue ouvir-me. Para Ele falo. S. Inácio disse: "O homem
é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor, e
mediante isto salvar a sua alma" (Exercícios Espirituais, 23). Nesta
cama não tenho préstimo como servidor, nada posso dizer ou testemunhar,
mas posso louvar e reverenciar o Senhor. Neste Natal devia haver falta
de quem glorificasse a Deus neste canto do mundo, e por isso Ele me
mandou vir. Para a harmonia do universo é preciso que alguém louve a
divindade aqui, agora. É isso que o Senhor quer. Essa é a minha tarefa. A
última tarefa da minha vida.
Louvar a Deus, paralítico mudo numa
cama de hospital no tempo de Natal. Aquilo que os Anjos e os Santos
fazem no Céu, que os coros fazem nas igrejas, que em todo o mundo se
ouve nesta noite, eu tenho de o fazer aqui. Isso fará deste Natal o mais
feliz da minha vida. O último.