In Público
Cada vez que este jornal
publica, com uma certa regularidade, os artigos de Laura Ferreira dos Santos a
favor da eutanásia, fico perplexo. Muito havia a dizer, mas vou debater apenas o
argumento da liberdade e da tolerância em abono da eutanásia (por exemplo, no
artigo de 6 de Agosto de 2011).
Quando se diz que uma
sociedade tolerante deve proporcionar o homicídio assistido a quem o pedir,
invertem-se os dados da questão, porque isso não é um pedido de tolerância mas de
colaboração: os defensores da eutanásia pretendem obrigar-nos a satisfazer o
desejo de quem quer ser morto. Seria mais razoável que, em nome da tolerância,
nos deixassem em paz.
Nos artigos referidos há uma
objecção interessante, que aceito, à parte um pequeno sofisma: defender a
inviolabilidade da vida humana equivale a impor uma determinada perspectiva
sobre a verdade, excluindo outras. De facto, quando a sociedade toma posição em
defesa da dignidade humana assume como verdade que o ser humano tem um valor
intrínseco, não sujeito a transacção. No entanto, isso não é uma «determinada
perspectiva sobre a verdade», é a própria verdade. Aliás, é um elemento de verdade
absolutamente fundamental, sobre o qual assenta uma sociedade que se queira
justa, livre e tolerante.
Uma sociedade tolerante
não é aquela que aceita tudo. Não pode aceitar a guerra da Líbia, a instabilidade
do Iraque, ou a violência da China... não aceita o inaceitável. Não derruba os
pilares-base da vida social, nomeadamente o princípio de que a vida humana é
inviolável. Esta verdade não é negociável, numa sociedade digna. Não é uma perspectiva
acerca da verdade, que estejamos dispostos a trocar por qualquer outra.
Colaborar num homicídio,
a pedido da vítima ou com qualquer outro pretexto, é contradizer a verdade
fundacional de uma sociedade democrática e solidária. Por isso, introduzir a
eutanásia é uma subversão tão grave da ordem social, em linha com aquelas
contradições do slogan do Ministério
da Verdade do inferno orwelliano: «Guerra é paz; liberdade é escravidão;
ignorância é força».
Qualquer ordenamento
jurídico, por mais bárbaro que seja, reconhece o valor de algumas vidas humanas, por razões de família, de dinheiro, ou de
poder. A inovação característica da democracia é proclamar de que todas as pessoas, sem excepção, merecem
esse respeito e de modo absoluto. A democracia não se fundamenta na afirmação
de que todos têm êxito nos negócios, ou de que todos são saudáveis, ou têm
notoriedade social. Nem sequer importa o que «têm», mas o que «são». A verdade fundacional
da democracia é que o ser humano, pelo simples facto de o ser, possui uma
respeitabilidade intocável.
O ponto de partida da
democracia é que esta verdade ética não é uma opinião entre outras, mas uma
verdade absoluta. No dia em que uma vida humana seja dispensável, quebrou-se o
princípio e a vida humana passou a ser um valor relativo. Se uma sociedade aceitar
que algumas pessoas sejam mortas (com um critério ou outro, o critério pouco
importa), ninguém está a salvo, porque nenhum critério resvaladiço subsiste depois
de se derrubar o princípio de que a vida humana é inviolável. Quem revogar este
princípio intransponível não espere encontrar noutro lugar a justificação ética
para uma democracia solidária.
Embora neste assunto da
eutanásia esteja em desacordo com a minha colega da Universidade do Minho, isso
não quer dizer que não tenha muita consideração por ela e não estejamos de
acordo noutros temas.
José Maria C. S. André