23/07/2013
Houve quem falasse inapropriadamente de
"totalitarismo" a respeito das críticas à "co-adopção" homossexual. Mas, já que
se falou nisso, convém ter presente que a convicção de que todo o poder está na
ponta da caneta do legislador é, essa sim, em si mesma, uma convicção de matriz
totalitária.
A ideia de que o Estado pode criar a realidade através do poder da lei é um
delírio perigoso, que nos coloca no cimo da rampa de todas as derivas
totalitárias. O Direito é fonte de justiça quando limitado pela Humanidade ou
subordinado ao Direito Natural, mas fonte de abusos e violências quando se
arvora ilimitada omnipotência. As maiores violências começaram sempre, aliás, na
própria lei e seu abuso: a pena de morte, a prisão perpétua, a escravatura,
tortura, perseguição, expulsões arbitrárias.
As leis de Direito Privado são leis matricialmente narrativas: não conformam
a natureza, conformam-se a ela. Não foi sequer um legislador qualquer que
inventou os contratos, quanto mais o resto. Os contratos existem, são como são;
a lei regula-os. Num Estado de Direito, as leis privadas não criam a realidade,
aderem a ela. Regulam, ordenam, mas não criam, nem inventam, muito menos contra
a realidade. Se o fizessem, atropelariam a realidade; e seriam de deriva
totalitária.
Se todos nascemos de pai e de mãe, é violência extrema privar alguém do
direito a ter pai ou do direito a ter mãe. A dupla referência masculina e
feminina que é parte da nossa natureza integra a nossa própria identidade
pessoal. É o que somos, é o nosso ser.
Por isso mesmo, a generalidade das declarações de direitos humanos e das
Constituições modernas (como a portuguesa) inclui o direito à identidade pessoal
no elenco dos direitos fundamentais da pessoa humana - sem isso, não somos. E
esse direito à identidade é componente principal da dignidade da pessoa humana.
É desse direito fundamental à identidade pessoal que decorre, por exemplo, o
dever de o Estado apoiar e promover a investigação da paternidade ou maternidade
nos filhos do incógnito. E é desse direito à identidade pessoal que decorre
também a noção de adopção do nosso Código Civil (art.º 1598.º) como "o vínculo
que [se estabelece legalmente entre duas pessoas] à semelhança da filiação
natural, mas independentemente dos laços do sangue."
O projecto da co-adopção homossexual é uma fraude intelectual e uma
manipulação jurídica. É uma esperteza: não-saloia, mas sofisticada. Nem tanto
sequer pelo que já foi dito - ser a gazua que abre a porta à adopção homossexual
em geral - mas pelo resto.
A adopção tem um lado generoso, que é atribuir pai e/ou mãe; mas outro
violento, que é tirar pai e/ou mãe. É isso que faz da adopção um instituto tão
difícil e tão delicado; e da sua decisão um processo sério, melindroso e
complexo.
Quando atribuímos juridicamente uma criança a um pai e/ou uma mãe, estamos a
retirá-la definitivamente, de forma irrevogável, a outro pai e/ou outra mãe
naturais - a estes e, simultaneamente, a retirá-los também da sua família
respectiva, de pertença natural: irmãos, primos, tios, avós que fossem. A
geração natural é apagada e substituída, para todos os efeitos, pela filiação
jurídica. A genealogia dessa criança é reescrita por inteiro. Para sempre.
Só é possível diminuir levianamente a seriedade e delicadeza real ou
potencial dos problemas a considerar, se imaginarmos as crianças de que se trate
como res nullius, coisa de nada e de ninguém. Mas nenhuma criança, mesmo
a mais só e abandonada, é assim tão nullius: tem uma história e uma
realidade. Que lhe pertence e a que pertence.
Adoptar a co-adopção é consagrar que, pela potente força imperial da lei, uma
criança pode passar a ser "filha" de pai e pai, sem mãe; ou "filha" de mãe e
mãe, sem pai - e, ipso facto, negar-lhe em definitivo o direito a ter uma
mãe ou o direito a ter um pai, proibindo-o para todo o sempre.
Não se trata de saber quem cuida de quem, mas de alterar radicalmente a
genealogia de uma pessoa, truncando para sempre a sua identidade pessoal. Escusa
de buscar, mais tarde, mãe ou família materna, se a não conhecia; ou de procurar
pai ou família paterna, que não soubera - essas relações ter-lhe-iam sido
apagadas e proibidas para todo o sempre pelo "Direito". Essa criança teria
passado a ter, sem apelo, nem agravo, duas mães e duas famílias maternas e
nenhuma paterna, ou dois pais e duas famílias paternas e nenhuma
materna.
Mesmo o projecto de co-adopção do PS reconhece - e bem - que aquilo que
designa de "parentalidade" é dual, isto é, que somos filhos de dois. Está certo.
Mas quem é que disse que são dois? Quem foi esse ominoso criador que
determinou que sejam dois, e não quatro, ou cinco, ou n? Garanto que não fui eu.
E, não tendo sido eu, essa dualidade parental também não resultou da autoridade
da caneta da Dr.ª Isabel Moreira, ou da pena entusiástica do Dr. Pedro Delgado
Alves ou do arrobo igualitário da escrita da Dr.ª Elza Pais. Isso resulta de
modo inteiramente prosaico da natureza, da biologia, vá lá... do Criador.
A realidade é, de facto, a da dualidade parental; não uma parentalidade
qualquer ou indiferente, mas uma dualidade de maternidade e paternidade. Somos
filhos de dois, mas não de quaisquer dois - somos filhos de dois, porque somos
filhos de mãe e de pai. Será isto homofobia? Não. É a biologia, a natureza. A
natureza, não das coisas, mas a natureza das pessoas.