27. 09. 2013
Algum tempo depois de, como filho
pródigo, ter regressado à Igreja, isto é a Jesus Cristo total, Cabeça e corpo, para
usar uma expressão de Santo Agostinho, comecei a ler o jornal L’ Osservatore Romano na sua totalidade –
Pontificava então o Papa Paulo VI. Este hábito de ler tudo o que promanava dos
Santos Padres tem-se mantido até os dias de hoje. Provavelmente aqueles que não
estão a par das coisas eclesiais não saberão que isto significa que li e
meditei muitos milhares, mas mesmo muitos, de páginas. Já não tenho grande memória
de Paulo VI, mas no que diz respeito a João Paulo II e a Bento XVI posso
testemunhar que os seus pontificados foram marcados essencialmente pelo
Amor/Misericórdia. Não me refiro somente à Encíclica de João Paulo II sobre
Deus rico em Misericórdia (tema
que está presente em todos os seus documentos e talvez de um modo mais marcante
na Veritatis Splendor, na Evangelium Vitae e na Redemptoris Missio) ou às
de Bento XVI sobre a Caridade /Amor/Misericórdia. Mas esses luminosos Pontificados
foram marcados por uma proximidade, um abeiramento samaratiano de cada pessoa humana, desde o seu início até ao seu
termo. Se há verdade que o mundo e a Igreja têm escutado até à saturação, que
ninguém desconheça dentro e fora da Igreja, a não ser os recém-nascidos, é que
Deus é Misericórdia. Não há homilia que o omita, nem catequese que só disso
fale, nem artigo de opinião ou entrevista radiofónica ou televisiva a católicos,
Cardeais, Bispos, sacerdotes ou leigos que nisso não insista. Isso é muito
claro, por exemplo, quando conversando com pessoas que se dirigem a uma “clínica”
ou “maternidade” ou hospital para abortarem dizem que não faz mal nenhum
matarem a seus filhos, porque Deus é misericordioso e perdoa: “não faz mal”,
asseguram com um sorriso. É mesmo em nome da Misericórdia que catequistas ensinam
as suas crianças sobre a bondade do aborto, da contracepção, da
homossexualidade e do “casamento” entre pessoas do mesmo sexo; e também
sacerdotes, até no confessionário, aconselham essas coisas, tudo em nome da
Misericórdia. Um ministro da Comunhão, só para dar um exemplo, obrigou a sua
filha abortar e, apesar de isto ser público e notório, tanto o pároco como o
Bispo acharam, em nome da misericórdia, por bem que ele continuasse a
distribuir a Sagrada Comunhão. A mesma misericórdia serve ainda de justificação
aos políticos que se intitulam católicos, votarem favoravelmente a eutanásia, o
aborto, o casamento “gay”; e de pretexto a Bispos e Cardeais de lhes darem entusiasticamente
a Sagrada Comunhão e de os convidarem, como exemplos, para palestrarem ao povo
de Deus. Essa pastoral, da “misericórdia” e do “amor” vazios de conteúdo,
conhecemo-la aqui na Europa há muitos anos e os seus resultados estão à vista –
não podiam ser mais devastadores.
Evidentemente que nem S. João
Paulo II nem Bento XVI são responsáveis por estes abusos, pelo contrário. Mas não
me venham dizer que somente agora é que a Igreja anunciará a Misericórdia de
Deus e o amor de Jesus como Salvador como contexto para tudo o mais. Porque
afirmar isso é uma falsidade infame. Se há ícone da Misericórdia que ficará
como eminente na história da Igreja esse será sem margem para dúvida o Papa João
Paulo II. Já nos esquecemos dos milhões de pessoas que ele converteu ou aproximou
da Igreja e de Deus, das multidões inumeráveis que se abeiraram da confissão
sacramental, etc., etc.? Mas este mesmo Papa que estendeu a devoção da Divina
Misericórdia (Santa Faustina) e proclamou o Domingo depois do da Páscoa como
Domingo da Misericórdia (e Deus veio buscá-lo nessa solenidade para o levar
para junto de si) percebeu muito bem que não se podia somente insistir nessa
tecla mas que era preciso dar-lhe um conteúdo substancial e aí tinha, nos dias
de hoje, uma proeminência vital o aborto e eutanásia (Evangelium vitae - defesa da vida nos seus momentos
mais vulneráveis), os ataques à família (Familiaris consortio; carta às famílias; direitos da família)
e a contracepção (Teologia do
corpo – como comentário à Humanae vitae). As vítimas, os feridos,
mutilados, desfeitos, estilhaçados por essas violências brutais – nos dias de
hoje perante a avalanche imensa de estudos e dados empíricos, é impossível
ignorá-los – são infinitamente maiores do que as vítimas das guerras
horrorosas, a que todos nos opomos. E, no entanto, ninguém, nem mesmo eu!, na
Igreja quer ou pede que se insista somente nesses assuntos - de onde terá
surgido ideia tão insólita e abstrusa? O que espanta nos dias de hoje é o silêncio
sepulcral sobre eles ou raridade (se tivermos em conta os documentos da Santa Sé e dos Episcopados o
aborto, o “casamento” gay e a contracepção muito provavelmente não representarão
sequer 0, 1 por cento dos assuntos tratados) com que são abordados e a
insistência em outros pontos que também são morais e também “vêm depois”: a
guerra e a paz, a pobreza, os refugiados, os imigrantes, os doentes, etc. (assuntos aliás de que todo o mundo
fala com consenso universal).
Todos os anos se celebra o dia
mundial da Paz acompanhado de oração em todas as Igrejas do mundo, com
homilias, palestras, conferências; há sempre uma longa mensagem dos Santos
Padres amplamente difundida não só pelos órgãos da Igreja mas também pelos grandes
média e pela internet – blogues, redes sociais, etc. O tema costuma reaparecer
diversas vezes ao longo do ano quer no Angelus do Santo Padre, quer nas suas Catequeses,
quer nas Dioceses, quer nas orações universais das Missas de Domingo, quer no
terço diário rezado nos grandes Santuários Marianos. E de vez em quando os
Papas convocam vigílias de oração não só em Roma como por todo o mundo,
congregando centenas de milhares de pessoas, só na praça de S. Pedro, e ali estão
3 ou 4 horas em oração. Todos os anos há o dia das migrações e a respectiva
mensagem e as peregrinações e se for preciso um Papa deitando uma coroa de
flores aos mares por causa das centenas de vítimas de traficantes sem escrúpulos.
E há ainda o dia dos doentes, também com uma mensagem papal e com preces nas
Igrejas por todo o orbe (que aliás acontecem praticamente todos os dias nas
Missas e na Liturgia das Horas e nos Terços desfiados nos Santuários Marianos).
Nas audiências os enfermos são abençoados, acariciados, abraçados; em todas as
viagens apostólicas os Papas sempre se querem encontrar com eles e dirigir-lhes
uma palavra, confortá-los. E podíamos continuar dando mais exemplos da
solicitude materna da Igreja pela grande maioria dos já nascidos.
Creio que não passará pela cabeça
de ninguém (talvez tenha
ocorrido a Nietzsche, mas não se trata de uma cabeça propriamente recomendável)
dizer que se trata de uma obsessão e que a Igreja não pode estar sempre a
insistir no mesmo. Ora a verdade, como é patente a todos, é que as pessoas na
sua etapa embrionária e nascitura não têm, repito, não têm um ínfimo da atenção,
solicitude e diligência por parte da Igreja que todos estes outros. O Santo
Padre num Angelus referiu, e muitíssimo bem, que tinha ficado com o coração
ferido ao ver na tv os mil e tal mortos, entre os quais muitas crianças, num
ataque na Síria. Mas não lhe sangra, e se sangra não poderá dizê-lo também?, os
mais de mil mortos num só dia trucidados em Itália e em França? Porque não
depositar uma coroa de flores e celebrar Missa à porta de um Hospital ou de uma
clínica onde se dizimam bebés – é impopular, não é? Mas estou em que é de toda
a justiça. Porque não convocar um dia de jejum e oração universal pelos 50 milhões
de pessoas abortadas anualmente (falo só dos cirúrgicos)? Por que não receber
sobreviventes de abortos falhados e falar disso? e mulheres que abortaram e que
publicamente dizem do seu arrependimento? e matadores em série de embriões e
nascituros que foram convertidos pelos obcecados fanáticos? e os predadores homossexuais
que foram curados? e os casais desfeitos por causa da contracepção que em
virtude da aprendizagem dos “métodos” naturais reencontraram o amor e o equilíbrio?
e os estilhaçados por “tratamentos artificiais” que para conseguirem ter filhos
mataram uma data deles e não tiveram sucesso vindo depois a encontra-lo na
Napro technology? Os cristãos que se têm empenhado nesta missão evangélica são
misericordiosos, tomam a seu cargo as pessoas, acompanhando-as como o bom
samaritano que lava, limpa, unge, levanta o seu próximo com pureza evangélica
sabendo que Deus é maior que qualquer pecado. Pela Graça de Deus são capazes
aquecer os corações das pessoas, de caminhar na noite com elas, de dialogar de
descer às suas noites, nas suas trevas, sem perder-se. Não se limitam a acolher
e receber as pessoas mas procuram novos caminhos saindo de si mesmos e indo ao
encontro de quem abandonou a Igreja, ou nunca a frequentou ou lhe é indiferente
ou mesmo hostil E fazem-no com grande audácia e coragem.
Porque é que se pode falar, como
uma insistência desusada em tantos outras questões morais tais como mundanidade,
carreirismo, maledicência, cobiça, etc., e não nas outras? Qual o contexto?
Os Papas João Paulo II e Bento
XVI que celebraram com grandes festejos, incendiando os corações no amor a
Jesus Cristo, os encontros mundiais da juventude sempre consideraram que havia o
contexto adequado para falar do aborto, da defesa da vida. Hoje, pelos vistos,
nega-se, apesar dos pedidos dos jovens e casais, o que parecia adquirido e
vem-se a público lamentar a discordância e acoimá-la de obsessão. Isto sim, é
uma novidade. Que se anuncie primeiro Cristo e o Seu Amor não o é, sempre foi
assim, e se alguém nos quiser persuadir do contrário teremos de lhe dizer com
toda a reverência que anda muito enganado. E lembrar-lhe que muitos, muitíssimos
por o fazerem são presos, escorraçados, vilipendiados, agredidos e presos.
Para terminar, convirá atender a
que importa muito ter em conta as circunstâncias. Quando Hitler se propunha a
invadir a Inglaterra seria totalmente absurdo que os cristãos aliados desembarcassem
na Normandia de sorriso rasgado e olhar afectuoso conclamando amigos e irmãos,
Cristo ama-vos muito e é o vosso Salvador. Se assim tivesse sido o mundo hoje
seria nazi.
Também quando Portugal esteve
preste a ser dominado inteiramente pelo comunismo, depois do 25 de Abril, o que
nos valeu foi um Cardeal, chamado Karol Woityla (futuro João Paulo II), que em Roma teve uma conversa
longa, com o então Bispo de Aveiro e ciente do perigo terrível em que estávamos
convenceu o prelado português de que só nos poderíamos salvar se a Igreja saísse
à rua liderando o povo. Essas manifestações encabeçadas em quase todas as
dioceses por Bispos não saíram propriamente com um rosto amável proclamando animadamente
Jesus ama vos. O verdadeiro amor misericordioso exigiu carrancas e urros que
contivessem os portadores da ideologia intrinsecamente perversa. À honra e glória
de Cristo. Ámen.
S. João Paulo II, rogai por nós.