Nos dias de hoje lê-se de tudo. Basta
entrar numa livraria para nos depararmos com um número infindável de títulos
que interminavelmente se vão renovando a uma velocidade vertiginosa. Ele são
best-sellers, ele são prémios nobel, eles são escritores de há muito consagrados,
eles são inovadores no estilo, nos temas, nas sensibilidades… A literatura como
um maremoto implacável submerge-nos numa ansiedade que freneticamente bulímica quer
estar a par de tudo, não descurando nada, pelo menos, daqueles inumeráveis
autores que nos são solene e indiscutivelmente apontados como os melhores e os
mais autorizados.
E, no entanto, é imensa a palha e
as bolotas que nos apresentam como nutrimento intelectual e que por jejum rigoroso
de excelência, deliberadamente desdenhada e oculta, nos sabem como delícias do
chefe José Avillez.
Já me referi num outro texto ao
conselho avisado do excelente escritor P. João Maia, SJ, sobre os livros e
autores a ler e a reler: Homero, Dante, Cervantes, Shakespeare, Dostoievski e
poucos mais. Hoje porém desejaria indicar alguns autores dotados de uma excelência
singularíssima na arte de escrever, tanto na forma como no conteúdo, e que,
estranhamente, muitos deles não são tidos em conta na generalidade das apreciações.
De facto, como é possível ignorar a correspondência de S. Jerónimo, as obras de
S. Cipriano de Cartago, de Tertuliano, de Lactâncio; e que dizer das Confissões ou da Cidade de Deus de Sto. Agostinho? Dos sermões de S. João Crisóstomo?
Das Homilias de S. Pedro Crisólogo? Da Moralia
in Job de S. Gregório Magno? Das cartas de S. Pedro Damião? Do comentário
ao Cântico dos cânticos e aos
escritos sobre a Virgem Maria de S. Bernardo de Claravalle? Das poesias e dos
comentários aos Evangelhos de S. Tomás d’ Aquino? Da biografia de S. Francisco
de Assis por S. Boaventura, do seu Itinerário
da Mente em Deus? Do Cântico das
criaturas do mesmo S. Francisco? Como é possível fazer tábua rasa das obras
de S. João da Cruz? De Santa dos Diálogos
de Santa Catarina de Sena? Das obras de Santa Teresa de Jesus? De Frei Luiz de
Granada? De Frei Luiz de Leão? Do nosso Frei Luís de Souza? Do P. Manuel
Bernardes? Dos Manuscritos Autobiográficos
de Santa Teresa do Menino Jesus? Estes, e os mais que podíamos indicar, são
desprezados pela intelligentzia contemporânea
e mesmo eclesial e no entanto são os alicerces, os fundamentos do que somos
como cultura. Felizmente, embora não aparecem nas estatísticas oficiais, muitas
destas obras têm tido incomparavelmente mais leitores do que os best-sellers; infelizmente muitos os
desconhecem cada vez mais tendo cada vez menos acesso a eles.
As obras do P. Manuel Bernardes,
por exemplo, que foram durante muito tempo alimento literário e espiritual de
gerações encontram-se esgotadas e não são reeditadas. A Lello que tinha o mérito
de as ter editado (apesar dos erros e gralhas), com a grafia actual, em cinco
volumes de papel bíblia, de há muito que as não reedita. Hoje, mesmo em alfarrabistas,
é extremamente difícil topá-las. Provavelmente, a crítica ferozmente iníqua que
Jorge de Sena e outros lhe dirigiram terá contribuído para isso. Castilho,
injustamente votado ao esquecimento, provavelmente por causa da “questão coimbrã”,
numa página em que só peca por ser demasiado severo para o P. António Vieira,
compara Bernardes e Vieira:
“É Vieira sem
contradição mestre guapíssimo de nossa língua, e o mesmo Bernardes assim o conceituava;
que, porém, a si o propusesse como exemplar, nem
o indica, nem consta, nem se pode com indução plausível suspeitar; eram ambos
engenhosos no discorrer, puros e esmerados no exprimir; — eis aí a sua única semelhança; — no
demais pareciam-se como entre si se podem parecer duas árvores de espécies
diversíssimas.
Lendo-os com atenção, sente-se que Vieira, ainda falando do céu, tinha
os olhos nos seus ouvintes; Bernardes, ainda falando das criaturas, estava
absorto no Criador. Vieira vivia para fora, para a cidade, para a corte, para o
mundo, e Bernardes para a cela, para si, para o seu coração. Vieira estudava
graças a louçainhas de estilo; achava-as, é verdade, tinha boa mão no
afeiçoá-las e uma graça no vesti-las como poucos; Bernardes era como estas
formosas de seu natural que se não cansam com alindamentos, a quem tudo fica
bem; que brilham mais com uma flor apanhada ao acaso, do que outras com
pedrarias de grande custo. Vieira fazia a eloquência; a poesia procurava a
Bernardes. Em Vieira morava o génio; em Bernardes o amor, que, em sendo
verdadeiro, é também génio. Vieira sacrificava tudo à sua necessidade suprema,
ao empenho de ser original e único; sacrificava-lhe a verdade, sacrificava-lhe
a verossemelhança; sacrificava-lhe até a possibilidade; não hesitava em propor
o princípio mais absurdo, como fosse ou parecesse novo, e como para lá não
achava caminho pela lógica, fabricava-o com pontes sobre pontes, através de um
oceano de sofismas, de argúcias, de puerilidades, de indecências, de quase heresias,
e, contente de lá chegar por entre os aplausos, não se detinha a reflectir se
não tinha sido aquilo um grandíssimo abuso da grande alma que Deus lhe dera,
uma dúplice vaidade aos olhos da religião e da filosofia, um exemplo ruim, mais
perigoso pelo agigantado de quem o dava. Bernardes não tomava tese que da
consciência lhe não brotasse, e a desenvolvê-la aplicava todas as suas
faculdades intelectuais, que eram muitas, e todas as faculdades morais que eram
mais, tresdobradamente. Vieira zomba frequentes vezes da nossa credulidade,
podemos desconfiar da convicção de Vieira, ainda quando nos fala certo;
Bernardes é um amigo cândido e liso, que, ainda quando nos ilude, não nos
mente.
Por tudo isso se admira Vieira: a Bernardes admira-se e ama-se.”
Também Camilo Castelo-Branco, de
resto admirador incondicional de Castilho, nutria um carinho muito especial por
Bernardes preferindo-o a Vieira.
Acresce que a suculenta e
saborosa doutrina ascético-mística, presente nas obras de Bernardes, no seu
essencial (tendo embora em conta a mudança dos tempos), é de muitíssimo
proveito para as almas cristãs, em particular para Sacerdotes e Religiosos.
Antero de Quental grande amigo de
Eça lamentava a sua pobreza de vocabulário e exortava-o a ler os Clássicos. Mais
tarde Eça, em Paris, começará a ler Vieira (aliás o seu conto do enforcado é um
desenvolvimento de uma narração de Vieira num dos seus sermões do Rosário) e
confidencia-o a António Nobre pedindo-lhe que quando voltasse a Portugal
recomendasse a todos a leitura dos seus sermões.
A literatura portuguesa, em
grande parte, afastou-se de tal modo das suas raízes que nos dias de hoje um
leitor comum deparar-se-á com uma enorme dificuldade em compreender e saborear
um texto de Bernardes, de Vieira, de Luís de Souza, de Heitor-Pinto. E como lhe
servem quotidianamente repasto de ruim qualidade pode inclusive sentir-se
enjoado e mesmo tomar asco aos escritos dos autores referidos. Não se deixe porém
vencer desistindo pois se for constante e persistir a recompensa será grande. Então
encontrará palavras que lhe enchem a alma, que trazem dentro em si as
realidades que significam possibilitando-lhe experiências e vivências de
transcendência. Eça, não obstante, todo o mérito literário, faz da religião um
ornamento, um mero elemento estético. Mesmo o Suave Milagre e a Vida de
Santos, não obstante a sua beleza e o facto de representarem claramente um
avanço e uma aproximação ao religioso, carecem de densidade e profundidade (Raúl
Brandão nas suas Memórias refere que
estando com Eça lhe viu bentinhos, medalhas religiosas, no pescoço).
Pelo contrário, quem conhece a
obra de Camilo não estranhará os Clássicos nem a sua religiosidade pois que a
linguagem dos seus textos está toda ela embebida dos escritos clássicos e
religiosos, mesmo quando (ele ou o narrador) se atiça contra a Igreja ou mesmo
quando blasfema. Será esta a razão do seu saneamento dos estudos de português? É
verdade que nalgumas das suas obras ele recorre à linguagem religiosa para
através dela incutir o contrário das suas verdades, por exemplo, a justificação
do adultério.
Quanto mais aprofundo os textos e
a vida do P. Manuel Bernardes mais me persuado da enorme conveniência de que
seja mais conhecido e estudado. Desconfio mesmo que seja Santo, um Santo ainda
não canonizado que pediu ao Senhor, com receio de perder a Graça da
perseverança final, que o pusesse em estado de inocência antes da morte o que
lhe foi concedido, salvo erro, dois anos antes de adormecer em Cristo. Como o
pai de Santa Teresa de Lisieux, que também padeceu a mesma cruz, já beatificado,
esperemos que Manuel Bernardes também o possa vir a ser.
13. 08. 2012