Os Ensaios da
Fundação Francisco Manuel dos Santos marcaram já uma posição de
intervenção lúcida na sociedade portuguesa. Poucos títulos, porém,
atingem o impacto do mais recente Matemática em Portugal. Uma Questão de
Educação, do professor Jorge Buescu.
O livro formula uma questão
simples: "Portugal não teve, ao longo da sua história quase milenar,
nenhum cientista de topo mundial" (pág. 11). Para entender o facto
existe uma "narrativa convencional". Esta versão canónica da evolução
científica nacional explica o fiasco através de "elementos autoritários,
externos ao ensino e prática das ciências" (pág. 14), que minaram os
esforços das nossas mentes iluminadas: "... da expulsão dos judeus à
Inquisição (pelo menos em dois momentos), do ensino jesuíta (pelo menos
em dois momentos) à decadência naval, do regime filipino à ditadura
salazarista ou a perseguições políticas" (pág. 14).
O autor,
baseado na investigação historiográfica mais recente, procede então ao
desmantelamento total dessas certezas, mostrando à evidência que não
passam de mitos, distorções, falsidades. A conclusão fica inescapável: a
causa da nossa vacuidade científica deve-se "à permanente mediocridade
histórica do ensino das ciências em Portugal em comparação com os países
europeus desenvolvidos" (pág. 20). Ou seja, a culpa da secular
fragilidade científica não está na tacanhez cultural, boçalidade do
povo, obscurantismo religioso, perversidade de ditadores. Todas essas
coisas, por influentes que sejam, mostram-se irrelevantes na questão. Os
verdadeiros culpados são os catedráticos, o meio académico, as
políticas de educação. Foi a sua secular tacanhez, boçalidade e
obscurantismo que estiolou a Ciência e Matemática em Portugal. E não é
preciso fazer arqueologia para saber do que se trata. Repetidamente
(págs. 23, 68, 79, 90), o livro nota a semelhança entre os desastres
antigos e os males que hoje se apontam ao ensino: "falta de exigência e
de rigor, ... facilitismo,...cultura de mediocridade" (págs. 68 e 69).
Mas
a questão não se reduz ao campo educativo, pois os tais lentes que
sabotaram a ciência nacional estiveram activos em todas as áreas. A
monstruosa falsificação histórica que o livro denuncia não se limitou à
Matemática, mas afecta todo o nosso imaginário colectivo. Podemos dizer
que fomos todos enganados em alguns traços da interpretação oficial da
nossa história.
As elites intelectuais dos séculos XIX e XX
construíram uma magna narrativa civilizacional para explicar não apenas
para a miséria educativa, mas todo o desenvolvimento nacional. Mas nesse
relato os heróis estão trocados com os vilões, as forças progressivas
com as retrógradas, as causas com consequências.
A Inquisição,
repetidamente acusada de todos os males nacionais, "teve um efeito
objectivo nulo sobre o desenvolvimento da Matemática em Portugal" (pág.
53) e um impacto civilizacional muito inferior ao que os seus inimigos
oitocentistas lhe quiseram assacar. Quanto aos jesuítas, malditos entre
os malditos, "ao longo de todo o século XVII foram eles os únicos a
ensinar Matemática e ciências em Portugal" (pág. 54). Pelo contrário, o
Marquês de Pombal, supremo herói maçónico, repetidamente celebrado como
reformador genial, criou "medida política isolada mais catastrófica
alguma vez tomada em Portugal" (pág. 60), precisamente ao expulsar a
Companhia de Jesus: "De um dia para o outro Portugal acordou sem
escolas, sem professores, sem estabelecimentos de ensino e com 20 000
ex-alunos na rua" (pág. 61).
Portugal é um país espantoso, com um
povo capaz de feitos únicos e maravilhosos. Em compensação, o País está
há séculos dotado de uma elite pedante, mesquinha e medíocre. Esse
grupinho de iluminados tem sempre no bolso a salvação nacional e,
atingindo o poder, tudo faz para arruinar o País. Os desastres de 1834,
1890, 1910, 1916, 1926, 1961, 1978, 1983 e 2011 não são azares externos,
mas efeito directo das soluções milagrosas da elite, que depois compõe
uma magna falsificação histórica para se desculpar e acusar os
adversários. Vemos isso hoje, com a crise.