quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A propósito dos recentes ataques a Isabel Jonet - por Mário Pinto (Prof. jubilado do ISCTE e da UCP)

1. Com as estruturas constitucionais e legais que ninguém nos impôs, mas são aquelas que como povo decidimos e gerimos democraticamente, entrámos numa grave crise económica e social. Essas estruturas são, aliás, análogas às de muitos outros países que não estão, ou estão muito menos, em crise como nós. É portanto evidente que as causas não são apenas estruturais, mas sim dos nossos costumes: não estaríamos como estamos, super-endividados e sem competitividade económica (ou estaríamos muito menos) se, governantes e governados, tivéssemos sido suficientemente sóbrios, diligentes e honestos. Mas esta explicação da crise é tabu. Como se comprova com a clamorosa agressão mediática raivosa, de uns tantos contra Isabel Jonet, apenas porque ela expressou algumas opiniões sobre a crise e os costumes na televisão. 


2. Porquê tanto «ódio ideológico»? Porque se sentem incomodados (eles dirão: indignados, porque cada um padroniza a sua dignidade) por haver quem (por amor, ou caridade, é a mesma coisa) vai socorrer os que precisam, sem estar à espera de reformas estruturais ou políticas, utópicas e falsas — porque nunca e em nenhum lugar deixou de haver pobres e necessitados, e não se pode esperar por elas enquanto alguém sofre? 

Se estes «indignados» fossem interrogados acerca da sua opinião sobre a legitimidade da censura à liberdade de expressão, eles indignar-se-iam outra vez, só porque se lhes admitia a indignidade de adeptos da censura. E contudo são censores; e ferinos censores. Eles são, aliás, os «acusadores eternos» — não apenas críticos — por tudo e por nada enquanto não seja tal e qual como pensam e querem mandar, apesar de se reclamarem como democratas.


3. A sua tese é muito simples, mesmo caricatural: nada de sentimentos personalizados, tudo estruturas e funcionários remunerados. Nada de doação, de gratuitidade na sociedade civil (que é sociedade de relações personalizadas entre iguais); tudo de prestações do Estado, pagas pelos impostos forçados de todos, proporcionalmente dos mais ricos, e realizadas mediante a intermediação de funcionários profissionalizados. Isto é, tudo em relações burocráticas exclusivamente políticas: entre, por um lado, o Estado sem face; e, por outro lado, cidadãos anónimos. O problema das relações das pessoas dos cidadãos, entre si, não se coloca. É assim que, paradoxalmente, defendem a liberdade, a igualdade e a responsabilidade dignificantes, em nome da dignidade da pessoa humana, segundo o lema da Contemporaneidade: liberdade, igualdade, fraternidade. 


4. Não dizem é quem garante a «moralidade» do Estado e dos funcionários — quem guarda o guarda — quando tudo colocam na sua acção e poder burocrático, em que toda a gente é ninguém porque é anónima. Não admitem que o paradoxo que a sociologia moderna já desmascarou, entre o alegadamente generoso interesse geral e o realíssimo interesse egoísta privado, opera mesmo nos políticos e nos funcionários, como pode por exemplo aprender-se com o sociólogo Mancur Olson. Não será por acaso que os impostos o são pela força; e que a parábola do (Estado) predador sedentário tem verosimilhança. 


5. Em seu entender, quem não entende as coisas à sua maneira politicamente correcta, não reconhece direitos e deveres. Ora isso é falso. Os direitos e os deveres fundamentais do Estado de Direito Democrático de modelo social europeu, de que nos reclamamos constitucionalmente, fundamentam uma sociedade de titulares que são pessoas responsáveis de direitos e de deveres com conteúdo personalizante (ou não seriam então reconhecidos com base na dignidade da pessoa humana, como efectivamente são). Os deveres constitucionais de solidariedade não se limitam a pagar impostos; e as liberdades fundamentais pessoais, como as «caritativas», que não forçam ninguém, não podem ser censuradas como heréticas. 


6. O que Isabel Jonet faz, distribuindo gratuitamente pela federação do Banco Alimentar, é apenas facilitar a doação de muitos milhares de pessoas, que dão para Isabel Jonet distribuir. Se o que ela faz é «caridadezinha» que merece ser ridicularizada, então os ridicularizados são esses muitos milhares de pessoas que, sem se cansar, repetidamente têm vindo a dar; e os que aceitam receber. Digam lá, esses mal-dizentes, se querem acusar todos estes milhares de cidadãos de «caridadezinha». Algumas vozes anónimas até disseram que vão deixar de dar, sinal de que já deram para a caridadezinha — obviamente, ninguém dá nada pessoalmente a Isabel Jonet. Terão dado? Vão deixar de dar? 


7. Se o que se pretende atingir é o humanismo ou o credo cristão — que, na nossa sociedade, possa estar por detrás destas iniciativas caridosas —, então é preciso responder bem alto e destemidamente que os cristãos não podem ceder perante a tentativa de ridicularizar [1] a sua verdade, [2] a sua liberdade e [3] a sua história. 


8. A sua verdade é que confessam sem vergonha Deus e o amor ao próximo, como indissociáveis. A sua liberdade é que estão dispostos ao martírio final, se necessário, o que definitivamente os liberta perante tudo e todos. A sua história é que, com muitos erros e muitos acertos, muitos pecados e muita virtude, confessam-se diariamente pecadores perante Deus, mas não se envergonham perante quaisquer juízes humanos que agora pretendam ter descoberto a suprema iluminação e a suprema perfeição que os legitima para julgar e condenar sumariamente. 


9. A doutrina cristã da Igreja tem um conteúdo teológico de fé, de esperança e de caridade, que engloba não apenas a relação com Deus, como solidariamente também a relação fraterna entre os homens. E acerca da fraternidade, as obras de caridade dos filhos da Igreja, por todo o mundo e ao longo de séculos (bem como a Doutrina Social da Igreja, mais sistematizada na Contemporaneidade), pedem meças com o património histórico dos que hoje se apresentam como julgadores perfeitos e detentores da justiça automática, eficiente e perfeita, das máquinas estatais.


10. O pensamento social cristão — constantemente proclamado pelos Papas e por mil instâncias dentro da Igreja, como por exemplo as conhecidas Comissões Justiça e Paz —, não é apenas pensamento; é também acção politicamente fecunda, de muitos modos, designadamente em partidos e em sindicatos, na Contemporaneidade. Não é possível agora aqui invocar os legítimos títulos de cidadania política e social dos católicos, na experiência histórica ocidental da Contemporaneidade (embora erros concretos também haja). Baste lembrar que a mais antiga internacional sindical é de origem cristã; que a União Europeia e a defesa da ONU e da paz e cooperação internacional são bandeiras destacadamente levantadas pelos católicos; que, no Parlamento Europeu, o maior grupo parlamentar é ainda hoje de ascendência cristã. 


11. Os católicos, com erros e acertos como todos os homens, não se envergonham do seu passado em Igreja; não se envergonham da sua fé, da sua esperança e da sua caridade. E não faltarão com o seu testemunho contra aqueles que se erguem como censores totalitários do pensamento caridoso. Merece aprovação que os católicos sejam pacientes. Sobretudo a hierarquia católica. Mas, paciência é uma coisa; deixar passar sem crítica pública e destemida o erro agressivo e prepotente, permitindo a impressão de que esse erro tem razão, seria covardia na defesa da Verdade da Fé e da liberdade da Cidade.