Espero bem que Camilo Castelo
Branco, lá onde ele estiver a sua alma, não me leve a mal que intitule este diminuto texto
com o título de uma das suas melhores novelas, que todos ganhariam muito em ler.
Posta esta vénia e sem perder tempo com mais ademanes cerimoniosos é meu intento procurar reflectir sobre algumas manhas e astúcias com que a nossa natureza humana decaída se engoda a si própria para poder tranquilamente operar o mal em nome do bem. Como reza um Salmo o ímpio ilude-se a si mesmo para não descobrir os seus pecados impedindo-se assim de os detestar e em consequência converter-se.
Posta esta vénia e sem perder tempo com mais ademanes cerimoniosos é meu intento procurar reflectir sobre algumas manhas e astúcias com que a nossa natureza humana decaída se engoda a si própria para poder tranquilamente operar o mal em nome do bem. Como reza um Salmo o ímpio ilude-se a si mesmo para não descobrir os seus pecados impedindo-se assim de os detestar e em consequência converter-se.
Tirante aqueles casos em que o
bem comum, o bem de todos e de cada um, exige uma correcção dos abusos e das
injustiças, que não têm em conta o destino universal dos bens a riqueza,
legitimamente adquirida, de pessoas e Instituições deriva do Direito Natural à
propriedade privada.
Ora acontece que toda a pessoa
dotada de razão sabe que roubar é mal. É aliás curioso verificar que, de um
modo geral, os ladrões mais desavergonhados quando são gualdripados reagem com uma
fereza ainda maior do que a que exercem quando os assaltantes são eles. Por
isso, quando alguém quer furtar procura arranjar uma justificação que a leve a falsificar,
a metamorfosear, esse acto em um outro de aparência bondosa. Deste modo um
trotskista que intente desfalcar um banco dirá a si mesmo algo deste género: os
banqueiros são uns rapinadores do povo, se eu os palmear não estarei a ladroar
mas sim a ir buscar o que é meu. Se for um franciscano matreiro procurará uma
justificação teológica: Jesus Cristo afirma nos Evangelhos que é mais difícil
um rico entrar no Reino dos Céus do que um camelo[1],
uma baleia, passar pelo fundo de uma agulha. Coitadinhos dos banqueiros, estão
todos na iminência de se condenarem eternamente. Se eu despojar os banqueiros das
suas fortunas não estarei a rapinar mas sim a fazer uma enorme obra de Caridade,
arrebatando-os aos cachafundos do Inferno, abrindo-lhes de par em par os portões
do Reino dos Céus. Sou, sem dúvida, alguma a bondade em pessoa. Um fervoroso matador
em série postar-se-á na Igreja do Loreto (onde se confessa porventura mais de metade
dos católicos de Lisboa) disparando sobre os recém-absolvidos para os despachar
assim perdoados directamente para o Paraíso. Embora estes exemplos pareçam caricaturas
para melhor ilustrar o que pretendo, infelizmente dão-se absurdos semelhantes.
Creio que nunca me será possível esquecer aquela mãe deprimida que por supor
ser uma má progenitora pôs termo à sua vida na esperança de alcançar o Céu para
daí tomar melhor conta deles. Outras, grávidas, exterminam seus filhos em nome
da felicidade deles, ou para fazer deles anjos no Céu. Os exterminadores em série
de crianças nascituras são autorizados, defendidos, remunerados pelos políticos
destruidores sistemáticos em nome do bem das mães grávidas e das sociedades.
Embora não se trate do mesmo, evidentemente,
existe uma inconveniência, feita aliás com a melhor das intenções, em dizer a
uma mãe que acabou de executar à morte o seu filho, ou filha, que ele agora se
encontra no Céu. São, pelo menos duas, as razões dessa impropriedade. A
primeira resulta de não podermos ter a certeza de que isso seja verdade; a
segunda, porque a desgraçada pode sentir-se confirmada no seu erro e consolada
pela injustiça que acabou de cometer, como se fora uma obra de misericórdia.
É certo que muita gente católica tem
sido induzida em erro principalmente por uma versão provisória da Encíclica do
Beato João Paulo II, que infelizmente continua a ser editada e continua a constar,
em várias línguas, no sítio da inter-rede do Vaticano. Trata-se do número 99. O
texto temporário dizia o seguinte: “Dar-vos-eis conta de que nada está perdido,
e podereis pedir perdão também ao vosso filho que agora vive no Senhor.”; porém
o definitivo, isto é, o oficial, reza assim: “Podeis confiar o vosso filho ao
mesmo Pai e à Sua misericórdia com Esperança” (Eidem
Patri Eiusque misericordiae cum spe committere). Também é verdade que um
estudo da Comissão Teológica Internacional, intitulado “A Esperança da Salvação
dos infantes que morrem sem terem sido Baptizados”, abriu telejornais e provocou
cachas que sentenciaram o fim do Limbo. Ora nem o estudo diz tal coisa,
limitando-se a dizer que a existência do Limbo é uma hipótese teológica e não
um pronunciamento definitivo do Magistério, e que a essa se podem acrescentar),
nem é dotado de autoridade Magisterial. Tanto é assim que o debate continua
vivo nos meios teológicos internacionais.
Um outro ponto de algum modo já
contido nalguns dos exemplos anteriores que importa declarar tem a ver com o
modo de alcançar, não já um bem aparente, mas sim o verdadeiro bem. Aquilo que se
designa habitualmente com a palavra meios. De facto, para que um acto, uma acção,
seja boa, não basta que o fim dela seja bom mas é necessário que o meio para o granjear
também o seja. É isso que se afirma quando se diz que “os fins não justificam
os meios”. Infelizmente é enorme a confusão que hoje reina nas mentalidades e
na comunicação social sobre este adágio. Uns escrevem “os meios não justificam
os fins”, outros “nem todos os fins justificam os meios”, etc. Ora a sentença
moral de que “os fins não justificam os meios” é como que uma tradução daquilo
que S. Paulo escreve: nunca é permitido praticar o mal para fazer o bem. O que
este dito declara é que um fim bom e justo não justifica, isto é, nunca torna
bom nem justo um meio mau e injusto. Quem quiser chegar ao bem terá de caminhar
pelo bem. Quem quiser ser bom terá de ir pelo bom caminho.
11. 11. 2012
[1] Muitos exegetas
interpretam esta palavra como não se referindo ao animal mas sim a uns nós nas
cordas das redes de pesca que assim também se denominavam; já o nosso P. António
Vieira era do mesmo parecer. Eu, com o máximo respeito, não saberei decidir se
estes intérpretes, neste particular, serão mais camelos que o camelo dos Evangelhos,
inclinando-me embora para me supor o maior dos dromedários. A besta ignorante,
e por isso atrevida, que sou conclui que a comparação de Jesus não se deverá
interpretar somente a partir do seu dito mas também da reacção dos apóstolos
quando afirmam que então ninguém se pode salvar: “Quem pode então salvar-se?” A
pergunta corresponde claramente a uma asserção. Esta resposta aliás ensina-nos
também que rico no entendimento de Jesus não é necessariamente o que tem muitos
bens materiais mas sim todo aquele que está apegado a qualquer coisa interior
ou exterior que o impede de fazer a vontade de Deus, seguindo-O no Seu Filho. Cristo
não corrige os apóstolos mas como que os confirma ao ensinar que de facto aos
homens, à natureza, é impossível (um nó embora com dificuldade, sempre poderia
passar…) mas Deus, somente Ele, transfigura essa impossibilidade em
possibilidade. Só Deus poderá mesmo fazer com que uma baleia ou um camelo
passem pelo fundo de uma agulha. Estes apontamentos serão tão só secreções de
um cérebro delirante.