domingo, 11 de novembro de 2012

O Bem e o Mal - Nuno Serras Pereira

Espero bem que Camilo Castelo Branco, lá onde ele estiver a sua alma, não me leve a mal que intitule este diminuto texto com o título de uma das suas melhores novelas, que todos ganhariam muito em ler.  

Posta esta vénia e sem perder tempo com mais ademanes cerimoniosos é meu intento procurar reflectir sobre algumas manhas e astúcias com que a nossa natureza humana decaída se engoda a si própria para poder tranquilamente operar o mal em nome do bem. Como reza um Salmo o ímpio ilude-se a si mesmo para não descobrir os seus pecados impedindo-se assim de os detestar e em consequência converter-se.


Tirante aqueles casos em que o bem comum, o bem de todos e de cada um, exige uma correcção dos abusos e das injustiças, que não têm em conta o destino universal dos bens a riqueza, legitimamente adquirida, de pessoas e Instituições deriva do Direito Natural à propriedade privada.

Ora acontece que toda a pessoa dotada de razão sabe que roubar é mal. É aliás curioso verificar que, de um modo geral, os ladrões mais desavergonhados quando são gualdripados reagem com uma fereza ainda maior do que a que exercem quando os assaltantes são eles. Por isso, quando alguém quer furtar procura arranjar uma justificação que a leve a falsificar, a metamorfosear, esse acto em um outro de aparência bondosa. Deste modo um trotskista que intente desfalcar um banco dirá a si mesmo algo deste género: os banqueiros são uns rapinadores do povo, se eu os palmear não estarei a ladroar mas sim a ir buscar o que é meu. Se for um franciscano matreiro procurará uma justificação teológica: Jesus Cristo afirma nos Evangelhos que é mais difícil um rico entrar no Reino dos Céus do que um camelo[1], uma baleia, passar pelo fundo de uma agulha. Coitadinhos dos banqueiros, estão todos na iminência de se condenarem eternamente. Se eu despojar os banqueiros das suas fortunas não estarei a rapinar mas sim a fazer uma enorme obra de Caridade, arrebatando-os aos cachafundos do Inferno, abrindo-lhes de par em par os portões do Reino dos Céus. Sou, sem dúvida, alguma a bondade em pessoa. Um fervoroso matador em série postar-se-á na Igreja do Loreto (onde se confessa porventura mais de metade dos católicos de Lisboa) disparando sobre os recém-absolvidos para os despachar assim perdoados directamente para o Paraíso. Embora estes exemplos pareçam caricaturas para melhor ilustrar o que pretendo, infelizmente dão-se absurdos semelhantes. Creio que nunca me será possível esquecer aquela mãe deprimida que por supor ser uma má progenitora pôs termo à sua vida na esperança de alcançar o Céu para daí tomar melhor conta deles. Outras, grávidas, exterminam seus filhos em nome da felicidade deles, ou para fazer deles anjos no Céu. Os exterminadores em série de crianças nascituras são autorizados, defendidos, remunerados pelos políticos destruidores sistemáticos em nome do bem das mães grávidas e das sociedades.

Embora não se trate do mesmo, evidentemente, existe uma inconveniência, feita aliás com a melhor das intenções, em dizer a uma mãe que acabou de executar à morte o seu filho, ou filha, que ele agora se encontra no Céu. São, pelo menos duas, as razões dessa impropriedade. A primeira resulta de não podermos ter a certeza de que isso seja verdade; a segunda, porque a desgraçada pode sentir-se confirmada no seu erro e consolada pela injustiça que acabou de cometer, como se fora uma obra de misericórdia.

É certo que muita gente católica tem sido induzida em erro principalmente por uma versão provisória da Encíclica do Beato João Paulo II, que infelizmente continua a ser editada e continua a constar, em várias línguas, no sítio da inter-rede do Vaticano. Trata-se do número 99. O texto temporário dizia o seguinte: “Dar-vos-eis conta de que nada está perdido, e podereis pedir perdão também ao vosso filho que agora vive no Senhor.”; porém o definitivo, isto é, o oficial, reza assim: “Podeis confiar o vosso filho ao mesmo Pai e à Sua misericórdia com Esperança” (Eidem Patri Eiusque misericordiae cum spe committere). Também é verdade que um estudo da Comissão Teológica Internacional, intitulado “A Esperança da Salvação dos infantes que morrem sem terem sido Baptizados”, abriu telejornais e provocou cachas que sentenciaram o fim do Limbo. Ora nem o estudo diz tal coisa, limitando-se a dizer que a existência do Limbo é uma hipótese teológica e não um pronunciamento definitivo do Magistério, e que a essa se podem acrescentar), nem é dotado de autoridade Magisterial. Tanto é assim que o debate continua vivo nos meios teológicos internacionais. 

Um outro ponto de algum modo já contido nalguns dos exemplos anteriores que importa declarar tem a ver com o modo de alcançar, não já um bem aparente, mas sim o verdadeiro bem. Aquilo que se designa habitualmente com a palavra meios. De facto, para que um acto, uma acção, seja boa, não basta que o fim dela seja bom mas é necessário que o meio para o granjear também o seja. É isso que se afirma quando se diz que “os fins não justificam os meios”. Infelizmente é enorme a confusão que hoje reina nas mentalidades e na comunicação social sobre este adágio. Uns escrevem “os meios não justificam os fins”, outros “nem todos os fins justificam os meios”, etc. Ora a sentença moral de que “os fins não justificam os meios” é como que uma tradução daquilo que S. Paulo escreve: nunca é permitido praticar o mal para fazer o bem. O que este dito declara é que um fim bom e justo não justifica, isto é, nunca torna bom nem justo um meio mau e injusto. Quem quiser chegar ao bem terá de caminhar pelo bem. Quem quiser ser bom terá de ir pelo bom caminho.

11. 11. 2012



[1] Muitos exegetas interpretam esta palavra como não se referindo ao animal mas sim a uns nós nas cordas das redes de pesca que assim também se denominavam; já o nosso P. António Vieira era do mesmo parecer. Eu, com o máximo respeito, não saberei decidir se estes intérpretes, neste particular, serão mais camelos que o camelo dos Evangelhos, inclinando-me embora para me supor o maior dos dromedários. A besta ignorante, e por isso atrevida, que sou conclui que a comparação de Jesus não se deverá interpretar somente a partir do seu dito mas também da reacção dos apóstolos quando afirmam que então ninguém se pode salvar: “Quem pode então salvar-se?” A pergunta corresponde claramente a uma asserção. Esta resposta aliás ensina-nos também que rico no entendimento de Jesus não é necessariamente o que tem muitos bens materiais mas sim todo aquele que está apegado a qualquer coisa interior ou exterior que o impede de fazer a vontade de Deus, seguindo-O no Seu Filho. Cristo não corrige os apóstolos mas como que os confirma ao ensinar que de facto aos homens, à natureza, é impossível (um nó embora com dificuldade, sempre poderia passar…) mas Deus, somente Ele, transfigura essa impossibilidade em possibilidade. Só Deus poderá mesmo fazer com que uma baleia ou um camelo passem pelo fundo de uma agulha. Estes apontamentos serão tão só secreções de um cérebro delirante.