quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Uma Grande Superstição Contagiosa

Contrariamente às religiões dominantes na antiguidade o judeo-cristianismo afirmou sempre a bondade e a beleza quer do corpo quer da sexualidade. Também advertiu para os perigos derivados do seu abuso e Moisés chegou a tolerar o repúdio devido a dureza do coração das gentes que tendo embora a Lei de Deus não tinham ainda a Sua graça para a poder viver inteiramente e com perfeição. Será Jesus Cristo que com o Seu formidável “não separe o homem o que Deus uniu” volta a colocar as coisas no seu lugar, tal como eram no início, antes que o pecado infeccionasse a humanidade. Pela Sua cruz e ressurreição e com o envio do Seu Espírito, Cristo capacitou o Homem, varão e mulher, que O acolhe para viver essa união indissolúvel, mesmo nas situações mais difíceis e dolorosas.

As palavras de Jesus Cristo pareceram à geração do Seu tempo o mesmo que à nossa: se quem deixa a sua mulher e casa com outra comete adultério sucedendo o mesmo à mulher que deixa o marido então o melhor será não casar. A isto o Senhor responde que alguns nascem castrados, outros a maldade dos homens fá-los tal e outros ainda se fazem a si desse modo por amor do Reino dos Céus. Tradicionalmente e ainda nos dias de hoje esta passagem tem sido interpretada como um chamamento a viver o conselho evangélico do celibato. No entanto, não poucos teólogos chamando a atenção para o contexto em que Jesus fala advertem que essas palavras se aplicam também ao homem ou mulher casados que por qualquer razão não podem fazer uso dos actos próprios dos esposos.

Mas vamos por partes, se quem abandona o cônjuge para casar comete adultério e se o cônjuge abandonado se casa também o comete então isso significa que nenhum realmente se matrimoniou mas antes se ajuntou vivendo adulterinamente. Isto, claro está, se estavam os dois verdadeiramente casados, que para se celebrar o sacramento do matrimónio não basta ir à Igreja realizar os ritos. Requerem-se condições e disposições da parte dos nubentes para a validade do sacramento. Uma dessas condições tem a ver com a aceitação por ambos da indissolubilidade do casamento.
Atentemos no seguinte. Ou reconhecemos que somos capazes de uma doação irrevogável, isto é, que a liberdade é capaz de tomar decisões definitivas e irreversíveis ou não o reconhecemos. Se reconhecemos, somos capazes de contrair matrimónio; se não o reconhecemos somos incapazes e nunca houve casamento – não aconteceu uma entrega incondicional mas simplesmente hipotética, ou seja, submetida a muitos ses.
Se reconhecemos que somos capazes de decisões irrevogáveis, isto é, que somos livres de o fazer então não faz sentido invocar a mesma liberdade para tentar desfazer o que ela fez.

Demos mais um passo, ser católico é seguir Jesus Cristo, viver como Ele viveu, como se nos diz no Evangelho e nas cartas de S. João e S. Paulo. Jesus Cristo, o Deus filho, ao fazer-Se homem para nos elevar e salvar, desposou a humanidade; segundo os Actos dos Apóstolos, passou fazendo o bem, amando-nos com a Sua presença, com a Sua palavra, com os Seus gestos e atitudes. A esposa, isto é, nós em paga de tanto bem torturámo-Lo, crucificámo-Lo, matámo-Lo. Ele permaneceu fiel oferecendo a vida que Lhe arrebatámos em nosso favor para nos resgatar do pecado e nos pode ter Consigo por toda a eternidade.

O casamento é uma vocação que se integra no chamamento de todos à santidade. A santidade consiste na conformação da nossa vontade à Vontade de Deus, de Jesus Cristo, isto é, consiste no amor. O amor é a união de vontades na Verdade que é Deus. Em qualquer vocação a cruz torna-se presente com maior ou menor intensidade. Essa cruz é o caminho para a Ressurreição, para a Salvação. Não é um fim mas porta de entrada para esse fim.

Quem casa deve ter presente que podem surgir, como em muitas outras situações na vida, imponderáveis. Podem não ser capazes de gerar filhos, por doença ou enfermidade; algum deles pode vir a tornar-se incapaz de realizar o acto conjugal; pode acontecer que algum enlouqueça ou contraia Alzheimer; pode ser traído e abandonado, etc.

Se, por hipótese, for traído o pecado do marido ou da mulher que o enganou e abandonou não justificam o seu pecado. Pelo contrário é chamado a permanecer fiel ao amor ao seu cônjuge, como Cristo na cruz, oferecendo-se pela sua salvação. Esta fidelidade sofrida é caminho de santidade e de verdadeira felicidade. Desistir dela é abandonar-se à fraqueza, racionalizando o seu pecado.

Como é possível que se, por hipótese, o marido trai a sua esposa uma e outra vez, isso seja, justamente, considerado infidelidade e adultério, mas no caso de não trair somente algumas vezes senão sempre e continuadamente a isso se chame casamento?
Claro que se poderá argumentar que se os dois estiverem de acordo em divorciar-se, uma vez que o consentimento é mútuo, se poderão “recasar”. Mas isto é a falácia hoje tantas vezes usada de que é o consentimento que produz a bondade ou malícia das acções. O mesmo seria dizer que um atentado bombista ou um assalto a um banco seriam coisas boas, porque aqueles que o fizeram consentiram na conspiração. Se quiserem argumentar que estas comparações não colhem porque dizem respeito ao mal de terceiros importará então recordar que os filhos de pais divorciados e os próprios que rompem o laço padecem também e sempre consequências nefastas. E o facto de dois adultos, por exemplo, se injectarem mutuamente heroína não torna o seu comportamento lícito ou recomendável.

Chegamos agora à grande superstição do nosso tempo, a saber, a crença de que para se ser feliz tem que se ter uma vida sexual (genital) activa ou de que pelo menos esse tipo de relação é uma necessidade sem a qual não se pode ter uma vida decente e aceitável. Nada mais errado! Nem S. José, nem a Virgem Maria, nem Jesus Cristo precisaram alguma vez disso e, pelo menos, para um crente não há dúvida de que ninguém houve mais feliz do que eles. Aí estão multidões de santos, de religiosos/as, sacerdotes e Bispos através dos tempos desmentindo essa pretensão absurda.

As mentalidades nos dias de hoje estão de tal modo tresmalhadas que já ninguém se choca com segundos, terceiros quartos, etc., casamentos. Melindram-se, isso sim, se os amigos não participam nessa outras bodas e se os sacerdotes não as abençoam e celebram uma Missa.

Pode-se compreender e deve-se acompanhar e ser amigo de quem julga que não consegue viver de outra maneira que não essa. Mas isso não nos deve levar a cumpliciar-nos com as suas debilidades e será bom que os ajudemos a compreender que devem evitar o escândalo, isto é, serem ocasião de queda para outros pelo seu mau exemplo.

A Igreja tem-se preocupado muito com o caso das pessoas que se encontram nesta situação difícil e procura que elas participem na vida eclesial orando e empenhando-se nas obras de caridade e de justiça. Mas dá a impressão que a Igreja anda um pouco esquecida das pessoas que renunciaram a “recasar” ou se estão debatendo com a tentação de o fazerem. É verdade que através do sacramento da confissão e da direcção espiritual, da Santíssima Eucaristia e dos movimentos e paróquias a Igreja disponibiliza sempre um auxílio oportuno e eficaz às pessoas nessa situação. No entanto, parece que um número significativo de padres e até alguns Bispos acabam por aconselhar ou pelo menos desistem de demover essas pessoas de se “recasarem”. Isto a ser verdade, como infelizmente parece ser, significa uma misericórdia mal entendida que esvazia sacrilegamente a Omnipotência de Deus e da Sua Redenção. Afinal, como ensina S. Paulo, Deus pelo poder que exerce em nós é capaz de fazer mais imensamente mais do que aquilo que podemos pedir ou imaginar. Ponto é, que nos disponhamos a isso e colaboremos com a Sua Graça.

Creio que seria muito oportuno criar grupos ou movimentos específicos para as pessoas que se encontram na situação muito difícil de ficar sozinhas, de serem abandonadas. E se lhes proporcionem os meios adequados e necessários para viverem a nova situação com serenidade, alegria, amor e entrega à Providência Divina.

Nuno Serras Pereira
27. 10. 2008

Que Natal?

1. S. Francisco de Assis, na esteira de S. João Crisóstomo, chamava ao Natal a Festa das Festas, porque nesse dia tinha começado a nossa Salvação. Por isso, apesar de aqueles tempos serem de penitências e mortificações rigorosas, como frei Rufino lhe perguntasse se seria lícito comer carne no Natal caso este se celebrasse num sexta-feira, respondeu-lhe que Deus lhe perdoasse por tal interrogação, pois não só o era como se deveria esfregar as paredes toscas, os muros rudes e as pedras campestres com a mesma carne para que também eles se nutrissem e alegrassem com tamanha festividade. E mais adiantava que se determinava a ir falar com o Imperador para convencê-lo a mandar que, nesse dia, todos os que possuíssem vacas e burros lhes dessem uma ração dupla em honra e memória daqueles animais que com o seu bafo acalentaram o Menino Deus na manjedoura; e que os camponeses espalhassem pelos caminhos sementes e cereais para que também as aves do céu, em especial as cotovias, participassem da alegria da festividade.

S. Francisco é rotulado por alguns autores cristãos como fazendo parte daqueles que eles consideram os santos loucos. De facto, um homem de Deus que em vez de se rodear de escribas para lhes ditar graves, eruditas e densas sentenças que serão estudadas, memorizadas, debatidas, investigadas, contraditadas, reafirmadas, explicitadas, desenvolvidas, interpretadas, durante séculos, se põe num bosque a pregar aos pássaros não será sinal que tem grande pancada? Seja-o ou não, é uma grande consolação saber que a loucura não é necessariamente inconciliável com a santidade.

Este varão de Deus não foi como tanto se apregoa o inventor do presépio, já existia o costume de edificá-los nos mosteiros. A sua inovação consiste em revivê-lo eucaristicamente, numa gruta com o povo da aldeia de Greccio, um jumento e uma vaca. Depois os franciscanos tornaram-se os seus grandes divulgadores.

2. Todas estas lembranças franciscanas me vieram à memória ao passo que ia escutando aquele jovem que tinha diante de mim.

Dizia-me que sempre passara o Natal em família alargada rodeado de fartura e de carinho. Desde as refeições opíparas às decorações luminosas até aos presentes quantiosos, tudo lhe abundara. Mas esse ano tinha-se recusado a celebrar com a família o jantar e a ceia de Natal. Ficara em casa sozinho enquanto todos os outros tinham ido para os avós. Resolvera-se a passar todo o dia em jejum e oração numa atitude de comunhão com aquela mole imensa de humanidade sofredora que não poderia participar da alegria das celebrações e festejos. Fechou-se numa sala austera, sentou-se a uma mesa e meditou longamente várias passagens dos Evangelhos e das epístolas. No silêncio que o rodeava peregrinou espiritualmente até às mais longínquas paragens ao encontro de todos os desditosos e desgraçados, abraçando-os com as suas preces. Depois, carregando-os em seu coração levou-os à Missa da meia-noite, entregando-os ao Senhor. À Comunhão suplicou ao Deus humanado que recebia no Seu íntimo que visitasse com a Sua graça e o Seu favor todos aqueles que nele trazia. Em seguida vagueou pelas ruas desejando Boas-festas e entregando santinhos aos solitários com que se deparava, fossem mendigos, desabrigados, polícias de serviço. Não contente, apanhou vários autocarros e táxis como pretexto para poder desejar Feliz Natal e levar um pouco de companhia a quem trabalhava. Finda essa ronda pegou no automóvel e percorreu troços de auto-estrada de modo a poder felicitar todos os que trabalhavam nas portagens.

Confessava-me então com júbilo que tinha sido o Natal mais feliz de toda a sua vida. Depois franzindo a testa contou-me que muitos na família o recriminaram, que ele se manteve em silêncio e que só lhe vinha à memória o texto evangélico quem amar o pai e a mãe mais do que a Mim, não é digno de Mim. Se um dia este jovem for canonizado, pensei para comigo, também será incluído no catálogo dos loucos?

3. Quando era jovem, após a minha conversão, recordo-me de nas proximidades do Natal ouvir alguns sacerdotes invectivar do púlpito a árvore de Natal, as iluminações, as prendas e o Pai Natal. Mas uma vez escutei um padre que na homilia surpreendeu toda a gente ao afirmar categoricamente que o Natal era a árvore, as iluminações, os presentes e o Pai Natal. Ouviu-se um suspiro de alívio quando acrescentou o presépio.

A propósito das luzes que alumiam as noites longas deste período dizia-nos que eram sinal da Luz verdadeira que veio ao mundo e que a todo o homem ilumina; Luz que expulsa as trevas do pecado, alegrando os corações e capacitando-nos para ver a Verdade.

Depois refutou com erudição que a árvore de Natal tivesse origens pagãs e citando graves mestres e doutores demonstrou tratar-se da Árvore da Vida reencontrada. Aquela, de que os nossos primeiros pais podiam comer no paraíso, tendo assim acesso à imortalidade, vieram a perdê-la após a expulsão devida ao pecado. Mas na plenitude dos tempos de uma outra árvore, a da Cruz, de que a anterior era prefiguração, pende um Fruto que concede a Vida eterna a quem o comer dignamente. Esse fruto disse de Si mesmo quem comer a Minha carne e beber o Meu sangue terá a vida eterna. Este Fruto desta Cruz dá-se-nos em alimento quando o Comungamos Glorioso e Ressuscitado na Eucaristia. O pinheiro que se mantém verde durante todo o ano simboliza a mesma eternidade. As bolas dependuradas, o sacramento da Eucaristia; os Anjos, a corte celestial; as estrelas, aquela que guiou os magos ao presépio; os Pai Natal, os santos. À raiz da árvore muitas famílias colocam o presépio a indicar que Aquele que agora nasce veio para ser crucificado na árvore da Cruz, isto é, veio para nos salvar. Mas que essa árvore que é Ele mesmo está agora verdejante e iluminada pela Ressurreição. No presépio está presente e anuncia-se a Páscoa.

A origem do Pai Natal, continuava na sua pregação o presbítero, está em S. Nicolau um Bispo representado na iconografia de longas barbas brancas e revestido das cores episcopais que foi muito amigo das crianças tendo salvo várias moças da prostituição e ressuscitando três crianças assassinadas. Como morreu no dia 6 de Dezembro a Igreja celebrava, e celebra, nessa data a sua festa. O seu culto foi-se estendendo passando à Grécia, subindo aos Balcãs, à Alemanha, Dinamarca e Países Escandinavos. Como era muito amigo das crianças era costume, no seu dia, colocar os sapatinhos debaixo da chaminé, pois ele passava deixando os seus presentes. Nalguns sítios reunia-se toda a aldeia colocando as crianças os brinquedos velhos num grande saco. Depois chegava S. Nicolau com o seu. Distribuía os presentes que trazia e pegava nos antigos para os entregar aos meninos mais pobres. Mais tarde esta figura foi associada a uma da mitologia pagã produzindo o santa klaus com o seu trenó e as suas renas. A Coca-Cola viu aí uma oportunidade comercial e transformou-o no Pai Natal que agora por aí vadia com “mães natal” de mini-saia, ou mesmo saia nenhuma, e perna ao léu… Aqui o sacerdote fez-se muito corado e pediu desculpa pelo excesso de linguagem, apesar de, adiantou, ser verdade o que dissera, como estava à vista de todos.

Dado que no 25 de Dezembro se celebra o maior dos dons ou presentes que Deus deu à humanidade ao fazer-Se um de nós faz todo o sentido que se ofereçam prendas que rememorem e sejam um sinal desse único e verdadeiro Presente que é Jesus Cristo. Uma vez que o dia 6 é próximo do dia 25 a oferta dos presentes passou para a noite de Natal. As crianças aprenderam então a pedir ao Menino Jesus, por intercessão de S. Nicolau, o que queriam receber. E o Menino Deus vem com o Seu ajudante, S. Nicolau/Pai Natal, dar aos pais a possibilidade de presentearem seus filhos. Mas os adúlteros, disse o padre engasgando-se, quero dizer os adultos, emendou. Haveis de perdoar, continuou, mas sabereis que quando era menino trocava estas palavras sem saber o seu significado e de tanto o repetir na infância, por vezes tenho este lapso… Mas os adulto… Bem, de facto, talvez não esteja mal dizer os adúlteros já que pelo pecado cometemos adultério contra Deus renegando-O como a verdadeiro Esposo das nossas almas, preferindo o amor das criaturas ao do Criador. Mas, dizia, os adultos também fazem bem em trocar-se presentes. Quando dou um presente estou a dizer, por obra, ao outro que ele é importante para mim. Por isso perdi tempo a pensar no que lhe agradaria e a procurá-lo, e despendi dinheiro. É um modo de dizer: que bom que é que tu existas! Tu és um dom, um presente, de Deus na minha vida e este presente que te ofereço é uma prova de gratidão para contigo e ao mesmo tempo um sinal de que quero estar presente na tua vida, em todas as circunstâncias, também nas difíceis. Eu quero ser para ti um dom de Deus. Ora para afirmar isto não é preciso entrar numa lógica consumista. Pode-se perfeitamente oferecer dádivas carregadas de simbolismo e personalizadas. Algumas famílias que gastavam muito dinheiro em presentes passaram a despender esse valor em contribuições para obras caritativas e sociais, no Natal, e combinaram um montante insignificante, que não poderia ser ultrapassado, para que cada um com essa precisa quantia “inventasse” uma oferta para os familiares. Em muitos lares têm sido impressionantes as revelações de criatividade e os contentamentos assim suscitados.

Será este padre também um dos tais malucos?

4. De há uns anos a esta parte, por invenção do demónio – só pode ser, magotes de jovens, pelo menos em Lisboa e alguns arredores, depois do jantar do dia de Natal abandonam as famílias e vão “para a noite”. Parecem uma espécie de vampiros incapazes de passar sem a escuridade das trevas, onde inebriados de álcool e estupefacientes se entretêm a sugar as almas uns dos outros. Pois, noite por noite, proponho-vos uma outra noite.

Já referimos que o presépio remete para o calvário, o Natal para a Páscoa. A madeira da manjedoura anuncia a da Cruz, o Menino enfaixado em paninhos anuncia o sudário que envolverá Jesus Cristo sepultado. A mirra oferecida pelos magos anuncia a Sua Paixão e morte. A própria liturgia da Igreja nos ensina isto mesmo ao celebrar no dia imediato o martírio de S. Estêvão e três dias depois a matança dos Santos Inocentes.
Quer viver o Natal com uma profundidade que nunca viveu? Quer mesmo estar com Cristo onde Ele menino foi desamparado e crucificado. Quer ter-Lhe aquele amor lacrimoso de S. Francisco que queria percorrer o mundo inteiro chorando a Paixão do meu Senhor porque o Amor que Ele é não é amado?

Queira então mandar-se estar com algum dos muitos grupos de cristãos rezando pela vida diante de hospitais e “clínicas” onde Cristo menino é abortado. À hora do costume nos lugares do costume, a 25 de Dezembro, rezaremos para que haja Natal (= nascimento) para todos os bebés concebidos e ainda não nascidos. Lembre-se que desde o dia 1 de Julho foram impedidos de nascer em Portugal, por uma morte violenta, cinco mil e seiscentas crianças (números redondos). Queira mandar-se persuadir os seus para esta hora de oração na noite do dia de Natal. Vale mesmo a pena amar Aquele que tanto nos amou.

Nuno Serras Pereira
09. 12. 2008

Linguagens e Positividade

“Diante de tão grave situação, impõe-se mais que nunca a coragem de olhar frontalmente a verdade e chamar as coisas pelo seu nome, sem ceder a compromissos com o que nos é mais cómodo, nem à tentação de auto-engano.” João Paulo II, Evangelium Vitae, 58

1. Há alguns anos escrevi um pequeno texto, para a Partilha, uma espécie de jornal das Equipas de Jovens de Nossa Senhora, intitulado “Ralações (sic) Sexuais”. O escândalo provocado pelo que ali dizia, a doutrina da Igreja, foi enorme. Os motivos maiores de escândalo foram ao que pude apurar as citações que fazia do recentemente publicado Catecismo da Igreja Católica e o uso da palavra fornicação. Esta palavra foi dada como obscena e como uma grave injúria a todo aquele que antes ou fora do casamento tinha comércio carnal com outrem. E, no entanto, esse termo aparece frequentemente na Bíblia e é usado, entre outros, por S. Paulo e pelo próprio Jesus Cristo. Toda a Tradição cristã e o próprio Magistério da Igreja sempre a ela recorreram, pelo menos até aos anos sessenta do século passado. Com a revolução sexual, querendo dar-se por bom aquilo que era pecado disfarçou-se com uma das palavras mais belas e significativas do vocabulário cristão, a saber, relação, a lascívia devassa, figurando-a como respeitável e excelente. Quem diz relação diz Trindade, diz Filiação e Paternidade, diz Pessoa e Amor. Esta palavra é dotada de tal nobreza e riqueza que, num certo sentido, se pode afirmar que o cristianismo é relação (sobre isto o então teólogo Joseph Ratzinger tem páginas belíssimas). O recurso a este termo não foi evidentemente inocente – toda a reengenharia social é precedida de uma reengenharia verbal -, e ainda nos dias de hoje estamos a pagar muito caro o acolhimento acrítico desse termo na Igreja e nos povos.

Uma oligarquia que controla e manipula as palavras impõe, no nosso tempo, um domínio de tal modo intimidatório que não só reprime o uso de determinados vocábulos (a outros, que autoriza, delimita rigorosamente as condições em que a eles se pode recorrer), mas exerce uma coação tamanha sobre os espíritos que os induz à auto-censura.

Como a palavra e a razão ultimamente são idênticas (logos) não é possível pensar a realidade ou a ela ter acesso senão através da palavra. A palavra, ao nomear adequadamente, colhe a realidade permitindo-nos alcançá-la. Por isso uma realidade que não é nomeada é ocultada, mas esconder a realidade é amputá-la, mutilá-la. Por outro lado, a realidade nomeada indevidamente é falsificada, distorcida ou pervertida. De uma ou de outra maneira é-nos vedado o acesso à verdade. Mas se não conhecemos a verdade não poderemos ser livres, nem conseguiremos amar, nem praticar a justiça. Um mundo sem verdade é caótico onde vale tudo e todos são, de facto, inimigos de todos, predominando a violência dos mais fortes.

Na mentalidade reinante no mundo católico português inoculou-se um grande absurdo, a saber, a crença de que, v. g.,: existem patifarias mas não há patifes, existem crueldades mas não cruéis, existem velhacarias mas não há velhacos, existem mentiras mas não há mentirosos, existem genocídios mas não há genocidas, existem crimes mas não há criminosas, existem barbaridades mas não há bárbaros, existem homicídios mas não há homicidas, existem roubos mas não há ladrões, existem adultérios mas não há adúlteros, existe a sodomia mas não há sodomitas, existem depravações mas não há depravados, existem sacanices mas não há safardanas, existe a hipocrisia mas não há hipócritas, etc. O contra-senso está à vista, de facto as realidades enunciadas em primeiro lugar só podem existir pelos actos pessoais que as segundas geram. Não pode haver uma patifaria sem um acto de patifaria e é o acto de patifaria de determinada pessoa que a torna um patife. Pois como dizia S. Gregório de Nissa somos filhos dos nossos actos. Porque o acto não tem somente uma dimensão exterior mas também uma repercussão interior: ao fazer faço-me. Se mato directa e deliberadamente um ser humano inocente sou um homicida. Se ajudo alguém que precisa sou justo, e generoso se lhe dou para além daquilo que lhe é devido.

Ora a recusa em recorrer a este tipo de vocabulário não só deceparia os nossos dicionários de uma parte muito substancial, como empobreceria seriamente a nossa compreensão da realidade e introduziria em nós uma alucinação dualista.

2. a) No século passado, não no Concílio Vaticano II mas depois deste, pela primeira vez na história da Igreja censuraram-se algumas expressões na récita dos salmos, na oração da Liturgia das Horas, por serem consideradas violentas (numa leitura literal, já se sabe, porque a espiritual dá-lhe um novo sentido: “a letra mata, o espírito vivifica” - S. Paulo). Eu não discuto, é claro, a autoridade de quem teve poder para o fazer. Fica porém a interrogação se esse precedente não tem aberto ou não poderá vir abrir caminho a mutilações cada vez maiores deixadas ao critério das modas de momento. Podemos perguntar-nos se ao desabituarmo-nos dessas expressões por as acharmos intoleráveis, a nossa sensibilidade não irá sofrendo um processo de transformação tornando-a cada vez mais delicada a ponto de não poder vir a suportar aquilo que hoje nos parece normal. Se assim fosse, a Sagrada Escritura iria sendo sucessivamente expurgada até ao ponto de restar só aquilo que admitiríamos. Mas desse modo, a Revelação testemunhada na Sagrada Escritura deixaria de ser o critério pelo qual aferir e julgar a nossa vida e, pelo contrário, a nossa sensibilidade erigir-se-ia como juiz da Revelação. A Escritura deixaria de ser reconhecida como inspirada por Deus na sua totalidade e nós escolheríamos aquilo que nos interessasse, recortando-a à nossa medida. Acabaria então por ser “obra das nossas mãos”, isto é, um ídolo. Nela não encontraríamos o Deus verdadeiro mas sim um espelho das nossas ideações. Por este andar, dias virão em que, por exemplo, passagens onde se condenam a contracepção, o adultério ou a sodomia terão de ser retiradas.

b) A doutrina da Igreja ensina-nos que Jesus Cristo na Sua Pessoa, nos Seus actos e nas Suas palavras é a Revelação perfeita de Deus. Se assim é, como é, então tudo n’ Ele é normativo para quem n’ Ele acredita e O queira seguir. Ora nos Evangelhos topamos com palavras e atitudes duras da parte de Jesus - expulsa os vendilhões do Templo, polemiza com os anciãos, os escribas, os fariseus… Recorre a expressões como hipócritas, raça de víboras, sepulcros caiados por fora mas cheios de imundície por dentro, filhos do diabo, escravos do pecado, duros de coração, etc. A fidelidade a esta normatividade percorreu a história da Igreja até há relativamente pouco tempo. E isto por uma razão muito simples, por amor. Sendo Jesus Cristo o próprio Amor feito homem a Igreja e os seus santos logo entenderam que estas atitudes de Jesus não eram fruto de mau génio ou de irritabilidade caprichosa mas sim do Seu amor. De facto, como nos ensinava um filósofo quando estávamos nos bancos da Faculdade de Teologia, é o amor de Jesus que O leva a chamar hipócritas aos hipócritas, pois sem essa acusação reveladora eles nunca se dariam conta do estado em que estavam. Nas palavras do professor o hipócrita precisa que lhe chamem hipócrita para deixar de o ser.

De facto, se, como dizíamos acima, a linguagem é usada para camuflar, ocultar ou falsificar a realidade, mesmo aqueles que a manipulam para esse fim acabam por ser vítimas da sua perversão. É então necessário que alguém lhes diga o que todos calam e eles eludem, iludindo-se.

3. a) Estas brevíssimas indicações parecem suficientes para abordar agora a questão da positividade e da negatividade. Nos dias de hoje ouve-se como uma palavra talismã, isto é que nos dispensa ou impede de pensar e nos arrebata consigo, que temos de ser positivos e que as mensagens têm de ser positivas, que basta de profetas da desgraça, etc. Há evidentemente muita verdade no que se afirma, mas há também uma cilada do Maligno. Porque a chamada positividade não pode ser o critério último, este é sempre a verdade, ou se quisermos a verdadeira positividade. O Sim da Boa Nova floresce na terra firme do Não dos mandamentos. O próprio Cristo, a Positividade de Deus, é sinal de contradição e se falou da casa sólida sobre a rocha também pregou sobre a desmoronada porque construída em cima da areia. O Mesmo que anunciou a Salvação falou do Inferno 18 vezes. O que acolheu as virgens prudentes não abriu a porta às insensatas. O que colocou o pobre Lázaro no seio de Abraão deixou o rico avarento nos seus sofrimentos. O que designou Pedro como fundamento visível da Igreja também lhe chamou Satanás. O que disse: vinde benditos de Meu Pai também vociferou: ide-vos malditos para o fogo eterno preparado para Satanás e os seus anjos, etc. Se retirarmos da Sagrada Escritura aquilo a que hoje se chama negatividade, com que ficaremos? Uma das características marcantes dos falsos profetas no Antigo Testamento era a sua positividade, o seu optimismo. Pelo contrário, Jeremias, por exemplo, verdadeiro profeta, era aquilo a que hoje se chama um profeta da desgraça. Isaías é verdade está cheio de anúncios belíssimos mas tem como contrapartida também oráculos severíssimos. Lede S. Tiago, lede S. Paulo, lede S. João.

b) Como exemplo de autocensura, nestes tempos, atente-se, por exemplo, numa coisa tão banal e tão simples como o reconhecimento verbal de que o aborto é um homicídio. Bem podemos procurar em toda a documentação, declarações, debates, intervenções, entrevistas dos pró vida em Portugal que nunca encontramos esta palavra. E, não obstante, este termo é essencial, indispensável. A este propósito o Papa João Paulo II adianta: “Talvez este fenómeno linguístico Talvez este fenómeno linguístico seja já, em si mesmo, sintoma de um mal-estar das consciências. Mas nenhuma palavra basta para alterar a realidade das coisas: o aborto provocado é a morte deliberada e directa, independentemente da forma como venha realizada, de um ser humano na fase inicial da sua existência, que vai da concepção ao nascimento. A gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio [negrito meu] e, particularmente, quando se consideram as circunstâncias específicas que o qualificam.” (Idem).

4. Finalmente, há uma ilusão imensamente ingénua muito disseminada que consiste em pensar que se formos “civilizados” no linguajar, isto é, conformistas com o politicamente correcto não nos perturbarão nem incomodarão. Se o padre Nuno foi a tribunal e condenada em primeira instância e deve-se, é claro, aos seus destemperos de linguagem. Fora ele comedido como nós e nunca lhe aconteceria aquilo que nunca nos acontecerá. Quem assim pensa, se é que há alguém que assim pense, é porque não sabe o que aí vai pelo mundo. Não sabe das centenas de activistas e muitas dezenas de sacerdotes católicos presos no país da liberdade, os USA, só por rezarem pacificamente nas vizinhanças de algum abortadouro; desconhece os processos em tribunal colocados na Alemanha e nos USA contra o manso e pacífico Papa João Paulo II; ou não prestou a devida atenção ao que sucedeu em Roma há poucos dias com o suavíssimo Papa Bento XVI. Se as nossas consciências continuarem anestesiadas, se compactuarmos, mesmo que pela indiferença, com esta situação, se nos arrecearmos de proclamar a verdade íntegra, amando sempre a todos, eles acabarão por tomar o poder da forma que o querem e seremos todos sujeitos às piores arbitrariedades. Mas, espero em Deus, assim não será. É a nossa Fé que vence o mundo.

Nuno Serras Pereira
25. 01. 2008

Grande Galo

Apesar do ritmo conturbado e frenético dos tempos em que vivemos nós, os franciscanos, ainda damos tempo ao tempo, à observação dos nossos irmãos animais e ao diálogo franco e aberto sobre a mesma.

Da primeira vez que estive vivendo na nossa fraternidade de Setúbal era Guardião o frei Henrique, sacerdote e psicólogo, sendo seu vigário o frei João, também sacerdote, professor e um exímio escritor. A casa sendo velha e construída em parte sobre o leito de uma antiga ribeira era lugar propício ao aparecimento de alguns irmãos ratos que sem cerimónia, talvez porque cientes da nossa condição franciscana, se passeavam airosamente pelas várias divisões incluindo os nossos quartos.

Declarar-lhes guerra parecia ser avesso à nossa vocação. Além de que o próprio S. Francisco aquando de uma grande enfermidade que padeceu deixava-se percorrer pelos irmãos ratos que, pelos vistos, já naquele tempo mostravam uma particular predilecção pelos frades menores. No entanto, como o nosso acolhimento deve ser universal “obedecendo a todas as criaturas por amor de Deus”, segundo o dito do nosso fundador, não nos opúnhamos, e quem sabe se não agradeceríamos, a presença de muitos irmãos gatos da vizinhança que de algum modo policiavam o redor da casa.

Ainda nos interrogámos, este plural provavelmente é majestático, se deveríamos ou não servir de mediadores, tentando conciliar as partes, nesse conflito quotidiano.

Mas vamos ao ponto. O caso é que no pequeno quintal fronteiro ao convento havia uma capoeira que tinha galinhas poedeiras cuja actividade acompanhávamos diariamente tecendo os comentários suscitados pelo desenrolar dos acontecimentos. Acolitámos solicitamente uma que chocava os seus ovos e, algum tempo depois, regozijámo-nos grandemente com os pintainhos que ainda trôpegos davam os seus primeiros passos. À medida que iam crescendo procurámos divisar quais viriam a ser galos e quais galinhas. Com alguma brevidade distinguimos claramente só um como sendo seguramente galo. Mas à medida que iam crescendo e se confirmava a nossa primeira impressão começou-nos a intrigar um outro pinto que parecendo embora uma fêmea tinha alguns ligeiros traços que apontavam para uma certa indefinição. Estranhámos o caso e comentámo-lo abundantemente. Como o tempo passasse o pinto tornou-se claramente um magnífico e soberbo exemplar e as pintainhas visivelmente galinhas, mas o espécime indeterminado continuava vago e a sua ambiguidade parecia intensificar-se – semelhava as galinhas sem o ser inteiramente e, por outro lado, tinha uns longes de galo. O nosso cuidado crescia pois de dia para dia até que me atrevi a suplicar ao Padre Guardião que fizesse uma terapia cognitiva ao galináceo para o ajudar a crescer e a amadurecer.

No dia seguinte, depois de almoço, ao sairmos para tomar a bica fraterna, verificámos com grande espanto que o galo estava morto. No café as nossas conversas alternaram entre os Olimpos da metafísica e a enigmática morte do irmão galo. A perturbação, como se vê, era sensível. Todo essa tarde foi passado em profundas escogitações e indagações meditativas.

Qual não foi o nosso espanto quando no dia imediato, ao fazermos as nossas observações costumeiras, constatámos uma mudança radical e inesperada no individuo até então indeterminado. Ganhou visivelmente, nesse curto espaço, traços acentuados de galo. E de dia para dia, a olhos vistos, com uma enorme rapidez foi ganhando as formas nítidas e vigorosas de um belíssimo exemplar. O outro que nos tinha parecido magnífico esvaía-se perante a opulência e o garbo deste. A sua galhardia, o seu porte imponente, a sua elegância deslumbravam e eclipsavam o anterior.

Com alguma malícia e grande atrevimento ainda disse ao Guardião que não precisava de ter feito uma terapia tão radical. A sua sonora gargalhada confirmou-me, se necessário fosse, que era inocente na matança do primeiro. Sugeri então que quando reunisse, juntamente com os Guardiães das outras fraternidades, com o governo da Ordem recomendasse que no noviciado (para quem não está habituado ao nosso jargão, ou linguajar, o noviciado está para as Ordens religiosas com a recruta para os militares) se ensinasse a história do galo.

A mim, miserável e pecador, ensinou-me a entender melhor o ensinamento de S. João Baptista quando afirmou: “É preciso que eu diminua para que Ele cresça”. De facto, é preciso que aprendamos a morrer para que outros possam crescer.

Nuno Serras Pereira
28. 10. 2008

Fácil e Prático

Todos nos damos conta, de que existem ataques organizados e sistemáticos a valores fundamentais, a bens inegociáveis, a absolutos morais que não sendo em si confessionais encontram, não obstante, o seu último baluarte no judeo-cristianismo e na Igreja Católica. Estas forças obscuras, cientes disto mesmo recorrem às mais descaradas mentiras e manipulações com o intuito de descredibilizar Jesus Cristo e a Sua Igreja. Com os meios poderosos de que dispõem recorrem à edição de livros e de revistas, à produção de filmes e séries televisivas, à rádio e internet, em proporções gigantescas de modo a subjugar as mentalidades. Isto que está à vista de quem quer ver pode também corroborar-se em inúmeros documentos.

Mas deixemos esta última consideração e concentremo-nos no que aqui em Portugal podemos fazer para formar o povo Católico e demais homens de boa vontade quando pontos fundamentais da verdade sobre o homem e sobre Deus são agredidos e distorcidos. É claro que se pode e se tem feito imenso, embora muito mais se possa e deva realizar.

Uma das coisas em que se podia apostar era na formação de um grupo de trabalho interdisciplinar que proporcionasse um esclarecimento rápido em linguagem acessível, estilo perguntas e respostas, impresso em livretes que se distribuiriam largamente pelas paróquias, santuários e movimentos. Por exemplo, agora a propósito das investidas homossexuais e eutanásicas podia-se elaborar duas obras, a propósito de cada arremetida, que se intitulariam «200 perguntas e 200 respostas sobre O “casamento” entre pessoas do mesmo sexo» ou «200 perguntas e 200 respostas sobre a eutanásia». Estes dois livros poderiam ser publicados por fases, em opúsculos separados de 25 ou de 50 perguntas e respostas, de modo a não assustar quem não tenha hábitos de leitura. Estas obras abordariam as questões dos pontos de vista filosóficos, políticos, éticos, teológicos, médicos, psicológicos, sociais, jurídicos, etc. Mas tudo numa linguagem clara e simples.

Isto pode ser feito de muitas maneiras. Uma delas consistiria em pedir aos senhores Bispos que tomassem a iniciativa e colocar-lhes o “bebé” nas mãos. Assim tem sido, ao que parece, em Espanha. Outro modo seria os leigos organizarem-se e apresentarem aos senhores Bispos o trabalho e a sugestão para que exercido o seu discernimento dêem ou não seguimento ao projecto.

Eu se fosse membro de algum movimento pró vida ou da Federação saberia o que fazer. Pediria ao Professor João César das Neves que dirigisse o empreendimento escolhendo ele as pessoas com quem trabalhar. E iria com uma delegação aos senhores Bispos suplicando-lhes a bênção e o discernimento para essa formação das consciências.

Nuno Serras Pereira
28. 11. 2008

Do Pânico à Esperança

Quando na minha adolescência e juventude passava o dobrar do ano em Abrantes ao aproximar da meia-noite, quando começavam a soar as badaladas no sino, a minha avó paterna reunia toda a família num círculo que se ia fechando até nos comprimirmos apertadamente ombro a ombro numa tentativa de impedirmos que o ano fugisse e não iniciasse o novo. Mas ele inexorável escapulia-se, desaparecia e a minha avó que tinha todas as qualidades do mundo menos a de profetiza repetia lacrimosa, ano após ano, durante uns vinte ou trinta, que era o último dobrar do ano que celebrava connosco, pois morreria durante o que então começava.

Este ritual ajudou-me a tomar consciência da morte como uma inevitabilidade do discorrer do tempo cronológico. De facto, Khrónos (Cronos de onde deriva cronologia) devora os seus próprios filhos. Creio que era também por isso que durante a minha juventude tinha por costume trajar-me totalmente de negro no dia do meu aniversário – era mais um passo para a sepultura, um outro ano retirado à minha vida. Se, de facto, a morte era o meu destino último, se tudo terminava em ser pasto de sevandijas, para quê viver? Melhor seria não ter sido concebido!

Depois do ritual em casa da avó, os quatro irmãos mais velhos seguíamos para o hotel para festejar num “réveillon” a noite inteira que acabava com um pequeno-almoço tomado numa tasca em frente ao mercado, à beira do largo da feira.

Olhando para trás e meditando nas festividades que as televisões nos apresentam, nesta ocasião, não posso deixar de verificar que há algo de profundamente melancólico em tanta efusão exterior. Trata-se de uma euforia que como o fogo-de-artifício mal brilha com intenso fulgor logo se esvai num breu enlutado. Uma tentativa vã de se iludir procurando afugentar o pânico da morte.

Já via isso quando pelos 20 anos escrevi estes versos:

A ignorância do Vento Leste
A preocupação sobre o tempo
A contínua lembrança agreste
Os Sobressaltos de momento

O tempo assusta quando passado
O futuro é esperado, mais tarde desprezado
O tempo assusta na lembrança do passado

E voa e foge e corre
Afugenta leva traz
Este nasce outro morre
Tempo nunca satisfaz

Sim! É precisamente a ignorância do vento Leste - isto é, do Espírito sopra do Oriente, do Sol de Justiça, do Espírito de Jesus Cristo -, que nos mantêm prisioneiros e escravos do tempo caduco, do tempo efémero, do tempo feroz e cruel que nos rói, corrompe e dissipa.

Com a incarnação de Jesus Cristo a eternidade entrou no tempo e com a Sua Ascensão o tempo entrou na eternidade. O Khrónos perdeu o seu aguilhão, pois foi engolido pelo Kairós. O Kairós é o tempo da salvação que se oferece em cada instante; é Cristo ressuscitado perpetuamente presente na vida concreta de cada um, e na história da humanidade, propondo-Se atractivamente à nossa liberdade, no desejo de a purificar, elevar e aperfeiçoar, capacitando-a para um amor verdadeiro, porque eterno. Se cada momento é uma ocasião de me decidir por Ele que venceu o pecado e a morte, e se a debilidade da minha escolha é revigorada e sustentada pela Sua Graça que a orienta e acolhe, se posso desde já receber a Sua vida eterna e dela viver, se já não sou eu que vivo, mas é Ele que vive em mim 1, se me alimento do Seu corpo ressuscitado e nEle estou mergulhado, enxertado, incorporado então a separação provisória da alma e do corpo não é mais que um adormecer em Cristo, para desde já com Ele participar da plenitude da Sua Glória e, no fim da História, na ressurreição universal, o meu corpo, este mesmo e não outro 2, unindo-se de um modo definitivo e total à minha alma, ser revestido de imortalidade, e da glória própria dos eleitos. Então não haverá gemido, nem dor, nem luto, nem mais se conhecerá sofrimento algum, pois tudo será felicidade desmedida, alegria desmesurada, plenitude de contentamentos, júbilo exuberante, comunhão total, paz excelsa, perfeição inteira, bem íntegro, humildade gloriosa, beleza majestosa, bondade esplêndida, amizade ditosa, amor completo, justiça cabal, realização absoluta e, mais do que tudo isto, Deus tudo em todos. Quem poderá dizer adequadamente aquilo que excede infinitamente tudo quanto de bom possamos imaginar, uma vez que nem os olhos viram nem os ouvidos ouviram nem jamais passou pela mente humana o que Deus tem reservado no Céu para aqueles que O amam? 3 Por Revelação sabemos que é assim, mas o como desse assim ultrapassa imensamente o que agora podemos conceber e apreender.

Mas, então, se a realidade é do modo como acabamos de dizer, como é, a celebração da passagem do Ano pode ser vivida em profundidade, e num sossego tranquilo devemos deixar o pânico 4 e entregarmo-nos à Esperança, que não engana.

Revendo o ano que terminou, podemos rezar por todos aqueles que partiram para que o Senhor os receba na Sua Glória abreviando-lhes, se for caso disso, aquele tempo misterioso em que mergulhados no fogo purificador do Seu amor se preparam para a bem aventurança do Céu no face a face com a beleza da soberana majestade de Deus.
No Purgatório, nome que se dá a este mistério, que é uma espécie de átrio de entrada do Paraíso, as almas, que aí padecem o seu aperfeiçoamento, não perderam a sua identidade garantida pela temporalidade da memória, nem, em virtude da comunicação, ou comunhão, dos santos (dos baptizados, dos que pertencem a Cristo) a sua ligação connosco. Esse sofrimento que elas experimentam, resulta, creio, fundamentalmente de quatro circunstâncias, a saber, por ordem crescente: 1) a consciência da perfeição a que podiam ter chegado durante a sua vida terrena, constatando agora amargamente que afinal teria sido tão fácil, não fora o seu desmazelo e negligência em cooperar com a Graças de Deus; 2) o desgosto intenso por verificarem que os seus pecados continuam a repercutir-se na vida de tantos outros, contristando-os; 3) a tribulação suscitada pelas ofensas cometidas contra o Amor infinito de Deus, que agora conhece melhor; 4) o desejo intensíssimo, ainda não satisfeito, de poder gozar do bem incomparável que consiste na totalidade da presença Deus, contemplando-O face a face.

Segundo o então Cardeal Ratzinger, agora Papa Bento, não devemos pensar que o Purgatório seja uma espécie de campo de concentração do além 5. De facto, já Santa Catarina de Génova dizia que depois do Céu não há alegria maior do que a do Purgatório, uma vez que temos a certeza de que vamos para o Céu. Ora esta segurança atenua ou de algum modo envolve ou penetra de paz e alegria o enorme sofrimento dos nossos irmãos que se encontram nesse estado. Em relação ao primeiro tipo de padecimento sabem que o Senhor completará, também com o auxílio da nossa caridade e das nossas orações, em especial a Eucaristia, o que em seu, delas, auxílio começou levando à perfeição a Sua obra; em relação ao segundo, seguramente que o nosso perdão lhes levará alegria; acresce que se é verdade que essas almas não estão em condições de fazer nada por si mesmas podem, contudo, interceder por nós (por isso que havia o costume, que ainda permanece em alguns sítios, de mandar celebrar Missas não só pelas almas do Purgatório, mas também às almas do Purgatório), reparando de algum modo o mal que fizeram. Em relação ao terceiro, a percepção maior da Misericórdia infinita de Deus, atenuará de algum modo a lucidez da culpa hedionda. Finalmente, no que diz respeito ao quarto, a certeza firmíssima de que se alcançará a presença do Amado, é chuva de regozijo e de bálsamo para as ânsias arrebatadas.

O Inferno é aquele estado mais do que medonho, muito pior do que o pintam, do qual Deus, na Sua infinita Misericórdia, faz tudo o que está ao Seu alcance para dele nos livrar – pois dá a todos as graças necessárias para se salvarem. No entanto, Deus criou-nos livres e leva a nossa liberdade a sério, isto é, respeita-a, não obriga ninguém a salvar-se (Ele não criou o Inferno, mas este foi produzido pela liberdade da criatura angélica, de Lúcifer). Somos responsáveis e não puras determinações de circunstâncias arbitrárias. A possibilidade da condenação é real e não imaginária. Aos condenados a nossa oração não aproveita por que o seu estado de perdição é para sempre. Estão como que enquistados ou petrificados no seu egoísmo, nas sua aversão a Deus. Sabes porque vês todos os dias nas televisões o horror do inferno produzido por aqueles que vivem sem o Deus verdadeiro, e não sabes porque o não experimentas nem na tua carne e nem na tua alma. Pois o Inferno verdadeiro de que este é uma pálida figuração é imensamente mais pavoroso do que esse que sabes e não sabes.

Revendo o ano que terminou, é bom fazer um exame de consciência do que passou para pedir a Deus perdão dos pecados que cometemos e meditarmos, na Sua presença, sobre os meios a que importa recorrer para os emendarmos e, por outro lado, dar graças a por todo bem recebido e praticado. Depois, confiar o novo ano com todas as incógnitas que carrega a Jesus por Maria, no Espírito Santo seu Divino Esposo. A Virgem Maria, a Mãe de Deus que hoje festejamos solenemente, a medianeira de todas as Graças – pois Jesus quis vir até nós no Seu Espírito através d’ Ela, a omnipotência suplicante, a que gerou e deu à luz o Senhor do tempo, nos acompanhe, nos ampare, nos torne presente Seu Filho, e o forme em nós, acompanhando-nos na Sua, dele, expansão nos nossos corações e no nosso crescimento nEle.

Em cada instante da nossa vida somos chamados a decidirmo-nos por Ele, o Evangelho da Vida, não o rejeitemos, não o atraiçoemos. Vem Senhor Jesus. À honra de Cristo, Amem.

Nuno Serras Pereira
1 de Janeiro de 2008

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Debates

O Dr. Pedro Líbano Monteiro, não o antigo quadro do BCP mas um seu parente, costumava em 1997-1998 aconselhar aos membros dos grupos pró vida que não fossem a debates sobre o aborto, mas que propusessem como alternativa, aos meios de comunicação social que os convidassem, entrevistas em separado dos oponentes. Se bem me recordo as razões que apresentava eram as de que durante as disputas havia grande alarido e muita confusão, não se conseguindo discorrer verdadeiramente nem verbalizar qualquer coisa que tivesse princípio, meio e fim. As interrupções contínuas, os ataques e contra-ataques cerrados, as astúcias dos opositores, a parcialidade dos entrevistadores, mascarada de neutralidade, o nervosismo, etc., tudo conspirava contra a racionalidade e uma apreciação serena e lúcida das questões e dos factos.

Aquando do último referendo sobre o aborto foi patente o uso e abuso das controvérsias televisivas como recurso, por parte de agências de comunicação a mando dos abortófilos, para enfraquecer e ridicularizar as posições favoráveis ao amor e à vida. Creio que seria aconselhável que os pró vida revissem as gravações desses programas para aprenderem com os erros que cometeram, não obstante a enorme boa vontade e coragem. Agora sem a pressão do acontecimento é fácil perceber os erros que cometeram, bem como as falácias, truques e sofismas a que os abortófilos recorreram. Muitos destes têm preparações específicas, exigentes, profissionais para este tipo de discussão enquanto os pró vida são puramente, no sentido nobre da palavra, amadores.

Acresce que estas polémicas, sobre questões apelidadas de fracturantes, partem sempre de pressupostos favoráveis àqueles que estão empenhados em subverter os valores vigentes, alicerçados na lei moral universal. Os instrumentos forjadores ou, pelo menos, veiculadores desse quadro mental constituído por preconceitos perniciosos e perversos são habitualmente os meios de comunicação social. De modo que o simples facto de alguém neles aparecer para disputar qualquer coisa que se oponha a esse contexto fabricado, e veiculado mais ou menos subliminarmente através de todo o tipo de programação, fá-lo surgir aos olhos dos espectadores ou ouvintes como uma excentricidade retrógrada e inimiga da liberdade e da felicidade das pessoas. Acresce que o próprio, intuindo de algum modo isso mesmo, exerce uma férrea auto-censura sobre o que diz, admitindo tacitamente como base da discussão princípios inaceitáveis, mas que ao serem implicitamente adoptados ou, ao menos, não refutados representam uma derrota anunciada.

Por isso, terá razão o Dr. Miguel Alvim ao insistir que se recusem debates sobre certas matérias. A alternativa será conceder entrevistas em directo caso seja na rádio ou na TV e por escrito quando se trate de jornais. O directo deve ser exigido para evitar montagens tendenciosas; e a entrevista por escrito para impedir que o jornalista em vez de transcrever o que a pessoa disse coloque na sua boca a interpretação que ele faz das palavras do entrevistado. Quanto ao mais, evangelização, catequese, sessões de esclarecimento, etc.

Nuno Serras Pereira
12. 11. 2008