Contrariamente às religiões dominantes na antiguidade o judeo-cristianismo afirmou sempre a bondade e a beleza quer do corpo quer da sexualidade. Também advertiu para os perigos derivados do seu abuso e Moisés chegou a tolerar o repúdio devido a dureza do coração das gentes que tendo embora a Lei de Deus não tinham ainda a Sua graça para a poder viver inteiramente e com perfeição. Será Jesus Cristo que com o Seu formidável “não separe o homem o que Deus uniu” volta a colocar as coisas no seu lugar, tal como eram no início, antes que o pecado infeccionasse a humanidade. Pela Sua cruz e ressurreição e com o envio do Seu Espírito, Cristo capacitou o Homem, varão e mulher, que O acolhe para viver essa união indissolúvel, mesmo nas situações mais difíceis e dolorosas.
As palavras de Jesus Cristo pareceram à geração do Seu tempo o mesmo que à nossa: se quem deixa a sua mulher e casa com outra comete adultério sucedendo o mesmo à mulher que deixa o marido então o melhor será não casar. A isto o Senhor responde que alguns nascem castrados, outros a maldade dos homens fá-los tal e outros ainda se fazem a si desse modo por amor do Reino dos Céus. Tradicionalmente e ainda nos dias de hoje esta passagem tem sido interpretada como um chamamento a viver o conselho evangélico do celibato. No entanto, não poucos teólogos chamando a atenção para o contexto em que Jesus fala advertem que essas palavras se aplicam também ao homem ou mulher casados que por qualquer razão não podem fazer uso dos actos próprios dos esposos.
Mas vamos por partes, se quem abandona o cônjuge para casar comete adultério e se o cônjuge abandonado se casa também o comete então isso significa que nenhum realmente se matrimoniou mas antes se ajuntou vivendo adulterinamente. Isto, claro está, se estavam os dois verdadeiramente casados, que para se celebrar o sacramento do matrimónio não basta ir à Igreja realizar os ritos. Requerem-se condições e disposições da parte dos nubentes para a validade do sacramento. Uma dessas condições tem a ver com a aceitação por ambos da indissolubilidade do casamento.
Atentemos no seguinte. Ou reconhecemos que somos capazes de uma doação irrevogável, isto é, que a liberdade é capaz de tomar decisões definitivas e irreversíveis ou não o reconhecemos. Se reconhecemos, somos capazes de contrair matrimónio; se não o reconhecemos somos incapazes e nunca houve casamento – não aconteceu uma entrega incondicional mas simplesmente hipotética, ou seja, submetida a muitos ses.
Se reconhecemos que somos capazes de decisões irrevogáveis, isto é, que somos livres de o fazer então não faz sentido invocar a mesma liberdade para tentar desfazer o que ela fez.
Demos mais um passo, ser católico é seguir Jesus Cristo, viver como Ele viveu, como se nos diz no Evangelho e nas cartas de S. João e S. Paulo. Jesus Cristo, o Deus filho, ao fazer-Se homem para nos elevar e salvar, desposou a humanidade; segundo os Actos dos Apóstolos, passou fazendo o bem, amando-nos com a Sua presença, com a Sua palavra, com os Seus gestos e atitudes. A esposa, isto é, nós em paga de tanto bem torturámo-Lo, crucificámo-Lo, matámo-Lo. Ele permaneceu fiel oferecendo a vida que Lhe arrebatámos em nosso favor para nos resgatar do pecado e nos pode ter Consigo por toda a eternidade.
O casamento é uma vocação que se integra no chamamento de todos à santidade. A santidade consiste na conformação da nossa vontade à Vontade de Deus, de Jesus Cristo, isto é, consiste no amor. O amor é a união de vontades na Verdade que é Deus. Em qualquer vocação a cruz torna-se presente com maior ou menor intensidade. Essa cruz é o caminho para a Ressurreição, para a Salvação. Não é um fim mas porta de entrada para esse fim.
Quem casa deve ter presente que podem surgir, como em muitas outras situações na vida, imponderáveis. Podem não ser capazes de gerar filhos, por doença ou enfermidade; algum deles pode vir a tornar-se incapaz de realizar o acto conjugal; pode acontecer que algum enlouqueça ou contraia Alzheimer; pode ser traído e abandonado, etc.
Se, por hipótese, for traído o pecado do marido ou da mulher que o enganou e abandonou não justificam o seu pecado. Pelo contrário é chamado a permanecer fiel ao amor ao seu cônjuge, como Cristo na cruz, oferecendo-se pela sua salvação. Esta fidelidade sofrida é caminho de santidade e de verdadeira felicidade. Desistir dela é abandonar-se à fraqueza, racionalizando o seu pecado.
Como é possível que se, por hipótese, o marido trai a sua esposa uma e outra vez, isso seja, justamente, considerado infidelidade e adultério, mas no caso de não trair somente algumas vezes senão sempre e continuadamente a isso se chame casamento?
Claro que se poderá argumentar que se os dois estiverem de acordo em divorciar-se, uma vez que o consentimento é mútuo, se poderão “recasar”. Mas isto é a falácia hoje tantas vezes usada de que é o consentimento que produz a bondade ou malícia das acções. O mesmo seria dizer que um atentado bombista ou um assalto a um banco seriam coisas boas, porque aqueles que o fizeram consentiram na conspiração. Se quiserem argumentar que estas comparações não colhem porque dizem respeito ao mal de terceiros importará então recordar que os filhos de pais divorciados e os próprios que rompem o laço padecem também e sempre consequências nefastas. E o facto de dois adultos, por exemplo, se injectarem mutuamente heroína não torna o seu comportamento lícito ou recomendável.
Chegamos agora à grande superstição do nosso tempo, a saber, a crença de que para se ser feliz tem que se ter uma vida sexual (genital) activa ou de que pelo menos esse tipo de relação é uma necessidade sem a qual não se pode ter uma vida decente e aceitável. Nada mais errado! Nem S. José, nem a Virgem Maria, nem Jesus Cristo precisaram alguma vez disso e, pelo menos, para um crente não há dúvida de que ninguém houve mais feliz do que eles. Aí estão multidões de santos, de religiosos/as, sacerdotes e Bispos através dos tempos desmentindo essa pretensão absurda.
As mentalidades nos dias de hoje estão de tal modo tresmalhadas que já ninguém se choca com segundos, terceiros quartos, etc., casamentos. Melindram-se, isso sim, se os amigos não participam nessa outras bodas e se os sacerdotes não as abençoam e celebram uma Missa.
Pode-se compreender e deve-se acompanhar e ser amigo de quem julga que não consegue viver de outra maneira que não essa. Mas isso não nos deve levar a cumpliciar-nos com as suas debilidades e será bom que os ajudemos a compreender que devem evitar o escândalo, isto é, serem ocasião de queda para outros pelo seu mau exemplo.
A Igreja tem-se preocupado muito com o caso das pessoas que se encontram nesta situação difícil e procura que elas participem na vida eclesial orando e empenhando-se nas obras de caridade e de justiça. Mas dá a impressão que a Igreja anda um pouco esquecida das pessoas que renunciaram a “recasar” ou se estão debatendo com a tentação de o fazerem. É verdade que através do sacramento da confissão e da direcção espiritual, da Santíssima Eucaristia e dos movimentos e paróquias a Igreja disponibiliza sempre um auxílio oportuno e eficaz às pessoas nessa situação. No entanto, parece que um número significativo de padres e até alguns Bispos acabam por aconselhar ou pelo menos desistem de demover essas pessoas de se “recasarem”. Isto a ser verdade, como infelizmente parece ser, significa uma misericórdia mal entendida que esvazia sacrilegamente a Omnipotência de Deus e da Sua Redenção. Afinal, como ensina S. Paulo, Deus pelo poder que exerce em nós é capaz de fazer mais imensamente mais do que aquilo que podemos pedir ou imaginar. Ponto é, que nos disponhamos a isso e colaboremos com a Sua Graça.
Creio que seria muito oportuno criar grupos ou movimentos específicos para as pessoas que se encontram na situação muito difícil de ficar sozinhas, de serem abandonadas. E se lhes proporcionem os meios adequados e necessários para viverem a nova situação com serenidade, alegria, amor e entrega à Providência Divina.
Nuno Serras Pereira
27. 10. 2008