Apesar do ritmo conturbado e frenético dos tempos em que vivemos nós, os franciscanos, ainda damos tempo ao tempo, à observação dos nossos irmãos animais e ao diálogo franco e aberto sobre a mesma.
Da primeira vez que estive vivendo na nossa fraternidade de Setúbal era Guardião o frei Henrique, sacerdote e psicólogo, sendo seu vigário o frei João, também sacerdote, professor e um exímio escritor. A casa sendo velha e construída em parte sobre o leito de uma antiga ribeira era lugar propício ao aparecimento de alguns irmãos ratos que sem cerimónia, talvez porque cientes da nossa condição franciscana, se passeavam airosamente pelas várias divisões incluindo os nossos quartos.
Declarar-lhes guerra parecia ser avesso à nossa vocação. Além de que o próprio S. Francisco aquando de uma grande enfermidade que padeceu deixava-se percorrer pelos irmãos ratos que, pelos vistos, já naquele tempo mostravam uma particular predilecção pelos frades menores. No entanto, como o nosso acolhimento deve ser universal “obedecendo a todas as criaturas por amor de Deus”, segundo o dito do nosso fundador, não nos opúnhamos, e quem sabe se não agradeceríamos, a presença de muitos irmãos gatos da vizinhança que de algum modo policiavam o redor da casa.
Ainda nos interrogámos, este plural provavelmente é majestático, se deveríamos ou não servir de mediadores, tentando conciliar as partes, nesse conflito quotidiano.
Mas vamos ao ponto. O caso é que no pequeno quintal fronteiro ao convento havia uma capoeira que tinha galinhas poedeiras cuja actividade acompanhávamos diariamente tecendo os comentários suscitados pelo desenrolar dos acontecimentos. Acolitámos solicitamente uma que chocava os seus ovos e, algum tempo depois, regozijámo-nos grandemente com os pintainhos que ainda trôpegos davam os seus primeiros passos. À medida que iam crescendo procurámos divisar quais viriam a ser galos e quais galinhas. Com alguma brevidade distinguimos claramente só um como sendo seguramente galo. Mas à medida que iam crescendo e se confirmava a nossa primeira impressão começou-nos a intrigar um outro pinto que parecendo embora uma fêmea tinha alguns ligeiros traços que apontavam para uma certa indefinição. Estranhámos o caso e comentámo-lo abundantemente. Como o tempo passasse o pinto tornou-se claramente um magnífico e soberbo exemplar e as pintainhas visivelmente galinhas, mas o espécime indeterminado continuava vago e a sua ambiguidade parecia intensificar-se – semelhava as galinhas sem o ser inteiramente e, por outro lado, tinha uns longes de galo. O nosso cuidado crescia pois de dia para dia até que me atrevi a suplicar ao Padre Guardião que fizesse uma terapia cognitiva ao galináceo para o ajudar a crescer e a amadurecer.
No dia seguinte, depois de almoço, ao sairmos para tomar a bica fraterna, verificámos com grande espanto que o galo estava morto. No café as nossas conversas alternaram entre os Olimpos da metafísica e a enigmática morte do irmão galo. A perturbação, como se vê, era sensível. Todo essa tarde foi passado em profundas escogitações e indagações meditativas.
Qual não foi o nosso espanto quando no dia imediato, ao fazermos as nossas observações costumeiras, constatámos uma mudança radical e inesperada no individuo até então indeterminado. Ganhou visivelmente, nesse curto espaço, traços acentuados de galo. E de dia para dia, a olhos vistos, com uma enorme rapidez foi ganhando as formas nítidas e vigorosas de um belíssimo exemplar. O outro que nos tinha parecido magnífico esvaía-se perante a opulência e o garbo deste. A sua galhardia, o seu porte imponente, a sua elegância deslumbravam e eclipsavam o anterior.
Com alguma malícia e grande atrevimento ainda disse ao Guardião que não precisava de ter feito uma terapia tão radical. A sua sonora gargalhada confirmou-me, se necessário fosse, que era inocente na matança do primeiro. Sugeri então que quando reunisse, juntamente com os Guardiães das outras fraternidades, com o governo da Ordem recomendasse que no noviciado (para quem não está habituado ao nosso jargão, ou linguajar, o noviciado está para as Ordens religiosas com a recruta para os militares) se ensinasse a história do galo.
A mim, miserável e pecador, ensinou-me a entender melhor o ensinamento de S. João Baptista quando afirmou: “É preciso que eu diminua para que Ele cresça”. De facto, é preciso que aprendamos a morrer para que outros possam crescer.
Nuno Serras Pereira
28. 10. 2008