Quando na minha adolescência e juventude passava o dobrar do ano em Abrantes ao aproximar da meia-noite, quando começavam a soar as badaladas no sino, a minha avó paterna reunia toda a família num círculo que se ia fechando até nos comprimirmos apertadamente ombro a ombro numa tentativa de impedirmos que o ano fugisse e não iniciasse o novo. Mas ele inexorável escapulia-se, desaparecia e a minha avó que tinha todas as qualidades do mundo menos a de profetiza repetia lacrimosa, ano após ano, durante uns vinte ou trinta, que era o último dobrar do ano que celebrava connosco, pois morreria durante o que então começava.
Este ritual ajudou-me a tomar consciência da morte como uma inevitabilidade do discorrer do tempo cronológico. De facto, Khrónos (Cronos de onde deriva cronologia) devora os seus próprios filhos. Creio que era também por isso que durante a minha juventude tinha por costume trajar-me totalmente de negro no dia do meu aniversário – era mais um passo para a sepultura, um outro ano retirado à minha vida. Se, de facto, a morte era o meu destino último, se tudo terminava em ser pasto de sevandijas, para quê viver? Melhor seria não ter sido concebido!
Depois do ritual em casa da avó, os quatro irmãos mais velhos seguíamos para o hotel para festejar num “réveillon” a noite inteira que acabava com um pequeno-almoço tomado numa tasca em frente ao mercado, à beira do largo da feira.
Olhando para trás e meditando nas festividades que as televisões nos apresentam, nesta ocasião, não posso deixar de verificar que há algo de profundamente melancólico em tanta efusão exterior. Trata-se de uma euforia que como o fogo-de-artifício mal brilha com intenso fulgor logo se esvai num breu enlutado. Uma tentativa vã de se iludir procurando afugentar o pânico da morte.
Já via isso quando pelos 20 anos escrevi estes versos:
A ignorância do Vento Leste
A preocupação sobre o tempo
A contínua lembrança agreste
Os Sobressaltos de momento
O tempo assusta quando passado
O futuro é esperado, mais tarde desprezado
O tempo assusta na lembrança do passado
E voa e foge e corre
Afugenta leva traz
Este nasce outro morre
Tempo nunca satisfaz
Sim! É precisamente a ignorância do vento Leste - isto é, do Espírito sopra do Oriente, do Sol de Justiça, do Espírito de Jesus Cristo -, que nos mantêm prisioneiros e escravos do tempo caduco, do tempo efémero, do tempo feroz e cruel que nos rói, corrompe e dissipa.
Com a incarnação de Jesus Cristo a eternidade entrou no tempo e com a Sua Ascensão o tempo entrou na eternidade. O Khrónos perdeu o seu aguilhão, pois foi engolido pelo Kairós. O Kairós é o tempo da salvação que se oferece em cada instante; é Cristo ressuscitado perpetuamente presente na vida concreta de cada um, e na história da humanidade, propondo-Se atractivamente à nossa liberdade, no desejo de a purificar, elevar e aperfeiçoar, capacitando-a para um amor verdadeiro, porque eterno. Se cada momento é uma ocasião de me decidir por Ele que venceu o pecado e a morte, e se a debilidade da minha escolha é revigorada e sustentada pela Sua Graça que a orienta e acolhe, se posso desde já receber a Sua vida eterna e dela viver, se já não sou eu que vivo, mas é Ele que vive em mim 1, se me alimento do Seu corpo ressuscitado e nEle estou mergulhado, enxertado, incorporado então a separação provisória da alma e do corpo não é mais que um adormecer em Cristo, para desde já com Ele participar da plenitude da Sua Glória e, no fim da História, na ressurreição universal, o meu corpo, este mesmo e não outro 2, unindo-se de um modo definitivo e total à minha alma, ser revestido de imortalidade, e da glória própria dos eleitos. Então não haverá gemido, nem dor, nem luto, nem mais se conhecerá sofrimento algum, pois tudo será felicidade desmedida, alegria desmesurada, plenitude de contentamentos, júbilo exuberante, comunhão total, paz excelsa, perfeição inteira, bem íntegro, humildade gloriosa, beleza majestosa, bondade esplêndida, amizade ditosa, amor completo, justiça cabal, realização absoluta e, mais do que tudo isto, Deus tudo em todos. Quem poderá dizer adequadamente aquilo que excede infinitamente tudo quanto de bom possamos imaginar, uma vez que nem os olhos viram nem os ouvidos ouviram nem jamais passou pela mente humana o que Deus tem reservado no Céu para aqueles que O amam? 3 Por Revelação sabemos que é assim, mas o como desse assim ultrapassa imensamente o que agora podemos conceber e apreender.
Mas, então, se a realidade é do modo como acabamos de dizer, como é, a celebração da passagem do Ano pode ser vivida em profundidade, e num sossego tranquilo devemos deixar o pânico 4 e entregarmo-nos à Esperança, que não engana.
Revendo o ano que terminou, podemos rezar por todos aqueles que partiram para que o Senhor os receba na Sua Glória abreviando-lhes, se for caso disso, aquele tempo misterioso em que mergulhados no fogo purificador do Seu amor se preparam para a bem aventurança do Céu no face a face com a beleza da soberana majestade de Deus.
No Purgatório, nome que se dá a este mistério, que é uma espécie de átrio de entrada do Paraíso, as almas, que aí padecem o seu aperfeiçoamento, não perderam a sua identidade garantida pela temporalidade da memória, nem, em virtude da comunicação, ou comunhão, dos santos (dos baptizados, dos que pertencem a Cristo) a sua ligação connosco. Esse sofrimento que elas experimentam, resulta, creio, fundamentalmente de quatro circunstâncias, a saber, por ordem crescente: 1) a consciência da perfeição a que podiam ter chegado durante a sua vida terrena, constatando agora amargamente que afinal teria sido tão fácil, não fora o seu desmazelo e negligência em cooperar com a Graças de Deus; 2) o desgosto intenso por verificarem que os seus pecados continuam a repercutir-se na vida de tantos outros, contristando-os; 3) a tribulação suscitada pelas ofensas cometidas contra o Amor infinito de Deus, que agora conhece melhor; 4) o desejo intensíssimo, ainda não satisfeito, de poder gozar do bem incomparável que consiste na totalidade da presença Deus, contemplando-O face a face.
Segundo o então Cardeal Ratzinger, agora Papa Bento, não devemos pensar que o Purgatório seja uma espécie de campo de concentração do além 5. De facto, já Santa Catarina de Génova dizia que depois do Céu não há alegria maior do que a do Purgatório, uma vez que temos a certeza de que vamos para o Céu. Ora esta segurança atenua ou de algum modo envolve ou penetra de paz e alegria o enorme sofrimento dos nossos irmãos que se encontram nesse estado. Em relação ao primeiro tipo de padecimento sabem que o Senhor completará, também com o auxílio da nossa caridade e das nossas orações, em especial a Eucaristia, o que em seu, delas, auxílio começou levando à perfeição a Sua obra; em relação ao segundo, seguramente que o nosso perdão lhes levará alegria; acresce que se é verdade que essas almas não estão em condições de fazer nada por si mesmas podem, contudo, interceder por nós (por isso que havia o costume, que ainda permanece em alguns sítios, de mandar celebrar Missas não só pelas almas do Purgatório, mas também às almas do Purgatório), reparando de algum modo o mal que fizeram. Em relação ao terceiro, a percepção maior da Misericórdia infinita de Deus, atenuará de algum modo a lucidez da culpa hedionda. Finalmente, no que diz respeito ao quarto, a certeza firmíssima de que se alcançará a presença do Amado, é chuva de regozijo e de bálsamo para as ânsias arrebatadas.
O Inferno é aquele estado mais do que medonho, muito pior do que o pintam, do qual Deus, na Sua infinita Misericórdia, faz tudo o que está ao Seu alcance para dele nos livrar – pois dá a todos as graças necessárias para se salvarem. No entanto, Deus criou-nos livres e leva a nossa liberdade a sério, isto é, respeita-a, não obriga ninguém a salvar-se (Ele não criou o Inferno, mas este foi produzido pela liberdade da criatura angélica, de Lúcifer). Somos responsáveis e não puras determinações de circunstâncias arbitrárias. A possibilidade da condenação é real e não imaginária. Aos condenados a nossa oração não aproveita por que o seu estado de perdição é para sempre. Estão como que enquistados ou petrificados no seu egoísmo, nas sua aversão a Deus. Sabes porque vês todos os dias nas televisões o horror do inferno produzido por aqueles que vivem sem o Deus verdadeiro, e não sabes porque o não experimentas nem na tua carne e nem na tua alma. Pois o Inferno verdadeiro de que este é uma pálida figuração é imensamente mais pavoroso do que esse que sabes e não sabes.
Revendo o ano que terminou, é bom fazer um exame de consciência do que passou para pedir a Deus perdão dos pecados que cometemos e meditarmos, na Sua presença, sobre os meios a que importa recorrer para os emendarmos e, por outro lado, dar graças a por todo bem recebido e praticado. Depois, confiar o novo ano com todas as incógnitas que carrega a Jesus por Maria, no Espírito Santo seu Divino Esposo. A Virgem Maria, a Mãe de Deus que hoje festejamos solenemente, a medianeira de todas as Graças – pois Jesus quis vir até nós no Seu Espírito através d’ Ela, a omnipotência suplicante, a que gerou e deu à luz o Senhor do tempo, nos acompanhe, nos ampare, nos torne presente Seu Filho, e o forme em nós, acompanhando-nos na Sua, dele, expansão nos nossos corações e no nosso crescimento nEle.
Em cada instante da nossa vida somos chamados a decidirmo-nos por Ele, o Evangelho da Vida, não o rejeitemos, não o atraiçoemos. Vem Senhor Jesus. À honra de Cristo, Amem.
Nuno Serras Pereira
1 de Janeiro de 2008
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