“Diante de tão grave situação, impõe-se mais que nunca a coragem de olhar frontalmente a verdade e chamar as coisas pelo seu nome, sem ceder a compromissos com o que nos é mais cómodo, nem à tentação de auto-engano.” João Paulo II, Evangelium Vitae, 58
1. Há alguns anos escrevi um pequeno texto, para a Partilha, uma espécie de jornal das Equipas de Jovens de Nossa Senhora, intitulado “Ralações (sic) Sexuais”. O escândalo provocado pelo que ali dizia, a doutrina da Igreja, foi enorme. Os motivos maiores de escândalo foram ao que pude apurar as citações que fazia do recentemente publicado Catecismo da Igreja Católica e o uso da palavra fornicação. Esta palavra foi dada como obscena e como uma grave injúria a todo aquele que antes ou fora do casamento tinha comércio carnal com outrem. E, no entanto, esse termo aparece frequentemente na Bíblia e é usado, entre outros, por S. Paulo e pelo próprio Jesus Cristo. Toda a Tradição cristã e o próprio Magistério da Igreja sempre a ela recorreram, pelo menos até aos anos sessenta do século passado. Com a revolução sexual, querendo dar-se por bom aquilo que era pecado disfarçou-se com uma das palavras mais belas e significativas do vocabulário cristão, a saber, relação, a lascívia devassa, figurando-a como respeitável e excelente. Quem diz relação diz Trindade, diz Filiação e Paternidade, diz Pessoa e Amor. Esta palavra é dotada de tal nobreza e riqueza que, num certo sentido, se pode afirmar que o cristianismo é relação (sobre isto o então teólogo Joseph Ratzinger tem páginas belíssimas). O recurso a este termo não foi evidentemente inocente – toda a reengenharia social é precedida de uma reengenharia verbal -, e ainda nos dias de hoje estamos a pagar muito caro o acolhimento acrítico desse termo na Igreja e nos povos.
Uma oligarquia que controla e manipula as palavras impõe, no nosso tempo, um domínio de tal modo intimidatório que não só reprime o uso de determinados vocábulos (a outros, que autoriza, delimita rigorosamente as condições em que a eles se pode recorrer), mas exerce uma coação tamanha sobre os espíritos que os induz à auto-censura.
Como a palavra e a razão ultimamente são idênticas (logos) não é possível pensar a realidade ou a ela ter acesso senão através da palavra. A palavra, ao nomear adequadamente, colhe a realidade permitindo-nos alcançá-la. Por isso uma realidade que não é nomeada é ocultada, mas esconder a realidade é amputá-la, mutilá-la. Por outro lado, a realidade nomeada indevidamente é falsificada, distorcida ou pervertida. De uma ou de outra maneira é-nos vedado o acesso à verdade. Mas se não conhecemos a verdade não poderemos ser livres, nem conseguiremos amar, nem praticar a justiça. Um mundo sem verdade é caótico onde vale tudo e todos são, de facto, inimigos de todos, predominando a violência dos mais fortes.
Na mentalidade reinante no mundo católico português inoculou-se um grande absurdo, a saber, a crença de que, v. g.,: existem patifarias mas não há patifes, existem crueldades mas não cruéis, existem velhacarias mas não há velhacos, existem mentiras mas não há mentirosos, existem genocídios mas não há genocidas, existem crimes mas não há criminosas, existem barbaridades mas não há bárbaros, existem homicídios mas não há homicidas, existem roubos mas não há ladrões, existem adultérios mas não há adúlteros, existe a sodomia mas não há sodomitas, existem depravações mas não há depravados, existem sacanices mas não há safardanas, existe a hipocrisia mas não há hipócritas, etc. O contra-senso está à vista, de facto as realidades enunciadas em primeiro lugar só podem existir pelos actos pessoais que as segundas geram. Não pode haver uma patifaria sem um acto de patifaria e é o acto de patifaria de determinada pessoa que a torna um patife. Pois como dizia S. Gregório de Nissa somos filhos dos nossos actos. Porque o acto não tem somente uma dimensão exterior mas também uma repercussão interior: ao fazer faço-me. Se mato directa e deliberadamente um ser humano inocente sou um homicida. Se ajudo alguém que precisa sou justo, e generoso se lhe dou para além daquilo que lhe é devido.
Ora a recusa em recorrer a este tipo de vocabulário não só deceparia os nossos dicionários de uma parte muito substancial, como empobreceria seriamente a nossa compreensão da realidade e introduziria em nós uma alucinação dualista.
2. a) No século passado, não no Concílio Vaticano II mas depois deste, pela primeira vez na história da Igreja censuraram-se algumas expressões na récita dos salmos, na oração da Liturgia das Horas, por serem consideradas violentas (numa leitura literal, já se sabe, porque a espiritual dá-lhe um novo sentido: “a letra mata, o espírito vivifica” - S. Paulo). Eu não discuto, é claro, a autoridade de quem teve poder para o fazer. Fica porém a interrogação se esse precedente não tem aberto ou não poderá vir abrir caminho a mutilações cada vez maiores deixadas ao critério das modas de momento. Podemos perguntar-nos se ao desabituarmo-nos dessas expressões por as acharmos intoleráveis, a nossa sensibilidade não irá sofrendo um processo de transformação tornando-a cada vez mais delicada a ponto de não poder vir a suportar aquilo que hoje nos parece normal. Se assim fosse, a Sagrada Escritura iria sendo sucessivamente expurgada até ao ponto de restar só aquilo que admitiríamos. Mas desse modo, a Revelação testemunhada na Sagrada Escritura deixaria de ser o critério pelo qual aferir e julgar a nossa vida e, pelo contrário, a nossa sensibilidade erigir-se-ia como juiz da Revelação. A Escritura deixaria de ser reconhecida como inspirada por Deus na sua totalidade e nós escolheríamos aquilo que nos interessasse, recortando-a à nossa medida. Acabaria então por ser “obra das nossas mãos”, isto é, um ídolo. Nela não encontraríamos o Deus verdadeiro mas sim um espelho das nossas ideações. Por este andar, dias virão em que, por exemplo, passagens onde se condenam a contracepção, o adultério ou a sodomia terão de ser retiradas.
b) A doutrina da Igreja ensina-nos que Jesus Cristo na Sua Pessoa, nos Seus actos e nas Suas palavras é a Revelação perfeita de Deus. Se assim é, como é, então tudo n’ Ele é normativo para quem n’ Ele acredita e O queira seguir. Ora nos Evangelhos topamos com palavras e atitudes duras da parte de Jesus - expulsa os vendilhões do Templo, polemiza com os anciãos, os escribas, os fariseus… Recorre a expressões como hipócritas, raça de víboras, sepulcros caiados por fora mas cheios de imundície por dentro, filhos do diabo, escravos do pecado, duros de coração, etc. A fidelidade a esta normatividade percorreu a história da Igreja até há relativamente pouco tempo. E isto por uma razão muito simples, por amor. Sendo Jesus Cristo o próprio Amor feito homem a Igreja e os seus santos logo entenderam que estas atitudes de Jesus não eram fruto de mau génio ou de irritabilidade caprichosa mas sim do Seu amor. De facto, como nos ensinava um filósofo quando estávamos nos bancos da Faculdade de Teologia, é o amor de Jesus que O leva a chamar hipócritas aos hipócritas, pois sem essa acusação reveladora eles nunca se dariam conta do estado em que estavam. Nas palavras do professor o hipócrita precisa que lhe chamem hipócrita para deixar de o ser.
De facto, se, como dizíamos acima, a linguagem é usada para camuflar, ocultar ou falsificar a realidade, mesmo aqueles que a manipulam para esse fim acabam por ser vítimas da sua perversão. É então necessário que alguém lhes diga o que todos calam e eles eludem, iludindo-se.
3. a) Estas brevíssimas indicações parecem suficientes para abordar agora a questão da positividade e da negatividade. Nos dias de hoje ouve-se como uma palavra talismã, isto é que nos dispensa ou impede de pensar e nos arrebata consigo, que temos de ser positivos e que as mensagens têm de ser positivas, que basta de profetas da desgraça, etc. Há evidentemente muita verdade no que se afirma, mas há também uma cilada do Maligno. Porque a chamada positividade não pode ser o critério último, este é sempre a verdade, ou se quisermos a verdadeira positividade. O Sim da Boa Nova floresce na terra firme do Não dos mandamentos. O próprio Cristo, a Positividade de Deus, é sinal de contradição e se falou da casa sólida sobre a rocha também pregou sobre a desmoronada porque construída em cima da areia. O Mesmo que anunciou a Salvação falou do Inferno 18 vezes. O que acolheu as virgens prudentes não abriu a porta às insensatas. O que colocou o pobre Lázaro no seio de Abraão deixou o rico avarento nos seus sofrimentos. O que designou Pedro como fundamento visível da Igreja também lhe chamou Satanás. O que disse: vinde benditos de Meu Pai também vociferou: ide-vos malditos para o fogo eterno preparado para Satanás e os seus anjos, etc. Se retirarmos da Sagrada Escritura aquilo a que hoje se chama negatividade, com que ficaremos? Uma das características marcantes dos falsos profetas no Antigo Testamento era a sua positividade, o seu optimismo. Pelo contrário, Jeremias, por exemplo, verdadeiro profeta, era aquilo a que hoje se chama um profeta da desgraça. Isaías é verdade está cheio de anúncios belíssimos mas tem como contrapartida também oráculos severíssimos. Lede S. Tiago, lede S. Paulo, lede S. João.
b) Como exemplo de autocensura, nestes tempos, atente-se, por exemplo, numa coisa tão banal e tão simples como o reconhecimento verbal de que o aborto é um homicídio. Bem podemos procurar em toda a documentação, declarações, debates, intervenções, entrevistas dos pró vida em Portugal que nunca encontramos esta palavra. E, não obstante, este termo é essencial, indispensável. A este propósito o Papa João Paulo II adianta: “Talvez este fenómeno linguístico Talvez este fenómeno linguístico seja já, em si mesmo, sintoma de um mal-estar das consciências. Mas nenhuma palavra basta para alterar a realidade das coisas: o aborto provocado é a morte deliberada e directa, independentemente da forma como venha realizada, de um ser humano na fase inicial da sua existência, que vai da concepção ao nascimento. A gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio [negrito meu] e, particularmente, quando se consideram as circunstâncias específicas que o qualificam.” (Idem).
4. Finalmente, há uma ilusão imensamente ingénua muito disseminada que consiste em pensar que se formos “civilizados” no linguajar, isto é, conformistas com o politicamente correcto não nos perturbarão nem incomodarão. Se o padre Nuno foi a tribunal e condenada em primeira instância e deve-se, é claro, aos seus destemperos de linguagem. Fora ele comedido como nós e nunca lhe aconteceria aquilo que nunca nos acontecerá. Quem assim pensa, se é que há alguém que assim pense, é porque não sabe o que aí vai pelo mundo. Não sabe das centenas de activistas e muitas dezenas de sacerdotes católicos presos no país da liberdade, os USA, só por rezarem pacificamente nas vizinhanças de algum abortadouro; desconhece os processos em tribunal colocados na Alemanha e nos USA contra o manso e pacífico Papa João Paulo II; ou não prestou a devida atenção ao que sucedeu em Roma há poucos dias com o suavíssimo Papa Bento XVI. Se as nossas consciências continuarem anestesiadas, se compactuarmos, mesmo que pela indiferença, com esta situação, se nos arrecearmos de proclamar a verdade íntegra, amando sempre a todos, eles acabarão por tomar o poder da forma que o querem e seremos todos sujeitos às piores arbitrariedades. Mas, espero em Deus, assim não será. É a nossa Fé que vence o mundo.
Nuno Serras Pereira
25. 01. 2008