João César das Neves
In Diário de Notícias - 19. 01. 2009
Passa este ano o 80.º aniversário de um dos mais curiosos livros de história de sempre. Na vasta obra de Hilaire Belloc (1870-1953) o pequeno volume de 1929 Survivals and New Arrivals. The Old and New Enemies of the Catholic Church (reedição Tan Books, 1992; www.ewtn.com/library/ANSWERS/SURVIV.HTM) passa despercebido apesar da sua impressionante lucidez.
O autor parte de um facto evidente: "Uma única instituição, há já mil e novecentos anos, tem sido atacada, não de um princípio oposto, mas de qualquer ponto concebível. Foi denunciada de todos os lados e por razões sucessivamente incompatíveis: sofreu desprezo, ódio e triunfo efémero de inimigos tão diversos quanto a diversidade das coisas pode produzir. Esta instituição é a Igreja Católica" (p.1). Exemplos históricos desses ataques contraditórios são múltiplos. "Nestas últimas épocas ela foi furiosamente condenada por laxismo na disciplina e por extravagante severidade, por ligeireza de organização e por tirania; por combater os apetites naturais do homem e por lhes permitir excesso e até perversão" (p.1-2).
Ao considerar, numa dada era, os inimigos que confrontam a Igreja, o autor classifica-os em três partes. Além dos ataques em plena força, a que chama "oposição principal" (main opposition), existem mais dois grupos curiosos. Um é dos sobreviventes (survivals), que tiveram o seu tempo e manifestam alguma força decadente. O outro inclui os recém-chegados (new arrivals), que dominarão épocas futuras. Esta dinâmica tripartida resume a eterna e multifacetada oposição à Igreja.
O essencial do livro, como se adivinha, constitui uma análise cuidadosa das forças que em 1929 hostilizavam a fé católica. A oposição principal vinha então de três lados: o nacionalismo nazi, fascista ou galicano, o anticlericalismo maçon ou liberal e o agnosticismo superficial e irresponsável da autodenominada "mente moderna". Além disso existiam cinco sobreviventes de tendências anteriores: o ataque bíblico dos fundamentalistas literais, o materialismo marxista ou positivista e três doutrinas anticatólicas baseadas no realismo político- -social (argumento "riqueza e poder"), na evolução social (argumento histórico) e na investigação física (negação científica). Todos estes raciocínios oitocentistas, mantendo virulência, estavam em claro declínio nos inícios do século XX.
O elemento em que a argúcia de Belloc brilha é na identificação dos novos ataques. Nessa secção aparece uma única força. Décadas antes da New Age e O Código Da Vinci, o historiador antecipa que o futuro inimigo do catolicismo será o "neopaganismo".
Qual é hoje o alinhamento dos inimigos da Igreja? Seria preciso o génio do franco-britânico para responder à questão, mas algo pode ser dito. A sua estrutura permanece válida. Não há dúvida de que a oposição principal dos anos 20 está reconduzida à condição de sobrevivente, enquanto o ataque avassalador vem agora do neopaganismo triunfante. A sua influência manifesta-se precisamente no aspecto que o autor antevira: o combate contra a família e a vida humana. Belloc não tinha dúvidas em 1929 de que o neopagão "toma o homem como um animal. Para já faz do casamento um simples contrato civil dissolúvel pelo consentimento de ambas as partes. Em breve terá de o fazer dissolúvel pela vontade de apenas uma. (...) Podemos dizer que a facilidade e frequência do divórcio são o teste da medida em que uma sociedade antes cristã avançou para o paganismo" (p. 137). É impressionante o rigor fotográfico com que a nossa sociedade foi retratada à distância.
Talvez o leitor queria tentar a sorte na identificação dos recém-chegados. Belloc, pelo seu lado, identificou na linha que traçara um hiato, uma oportunidade inesperada: o embate da fé católica com o neopaganismo pode ter o mesmo desfecho que na Antiguidade teve o choque com a versão original. "Não posso acreditar que a razão humana irá permanentemente perder o seu poder. Ora a fé é baseada na razão, e em todo o la- do fora da fé o declínio da razão é patente" (p. 167).