A questão da legalização da
eutanásia está na ordem do dia e vem sendo debatida nas páginas do Público.
Quase sempre se propõe a eutanásia como
um recurso excepcional e estritamente enquadrado, como corolário do respeito
escrupuloso pela liberdade de quem a pede. Que tal objectivo seja atingido, não
resulta, porém, das experiências dos países que legalizaram tal prática, como a
Bélgica, que se prepara agora para alargar tal legalização.
Há cerca de um ano, a propósito do
décimo aniversário dessa legalização na Bélgica (e a título de balanço), foi publicado
um manifesto, Dez anos de eutanásia, um
feliz aniversário?, subscrito por médicos de diferentes especialidades, mas
também juristas, filósofos e teólogos de várias religiões.
Aí se afirma que a legalização da
eutanásia não envolve apenas o respeito pela liberdade individual. Representa o
aval da comunidade e do corpo médico à opção em causa. A quebra de um interdito
fundamental (“não matar”) que estrutura, como sólido alicerce, a vida
comunitária, não pode deixar de afectar a confiança no seio das famílias, entre
gerações e na comunidade em geral; e, particularmente, a confiança no corpo
médico. Fragiliza, por outro lado, os mais vulneráveis, sujeitos a pressões, em
grande medida inconscientes, que os levam a sentir-se obrigados a pedir a
eutanásia para não serem um peso para a família e para a sociedade. O manifesto
denuncia a efectiva verificação destas consequências.
E confirma os receios de que a
quebra desse interdito estruturante nunca poderá ter efeitos limitados e
contidos. Salienta, a este respeito, o facto de ser a própria comissão
destinada a controlar a aplicação da lei a reconhecer que não tem meios para esse
controlo (sendo que em dez anos nenhuma infracção da lei foi detectada). Não é
de esperar que os médicos se auto-denunciem quando ultrapassem esses limites. A
noção de “sofrimento insuportável” a que a lei recorre (como as de outros
países) é subjectiva e tem permitido estender o seu campo de aplicação a
sofrimentos psíquicos que não se enquadram na noção de “patologia grave e
incurável” a que a legalização supostamente se restringiria.
Suscitaram compreensível clamor,
vários casos de prática da eutanásia a coberto da lei belga em vigor: o de uma
mulher, de 44 anos, que sofria de anorexia nervosa e o de uma outra, de 64 anos,
que sofria de depressão crónica (doenças que podem ser tratadas); o dos irmãos
gémeos Verbessen, surdos de nascença em vias de ficar cegos («já não tinham por
que viver» - afirmou o médico que provocou a sua morte); ou a do professor de
medicina De Duve, com 95 anos, que não era doente terminal, nem sofria de “dor
insuportável”.
E, mesmo assim, está agora em vias de ser
aprovada, na Bélgica, a extensão da legalização da eutanásia a casos de
crianças (cuja maturidade para decidir seja atestada por psicólogos) e de dementes
(que tenham manifestado a sua vontade anteriormente, no exercício das sua
faculdades). Num e noutro caso, o respeito pela “sacrossanta” liberdade de quem
pede a eutanásia é posto em segundo plano. Dá-se relevo à manifestação de
vontade de uma criança, num âmbito de absoluta irreversibilidade, quando não é
dado esse relevo, por incapacidade, em âmbitos de muito menor importância.
Dá-se relevo, no caso de pessoas dementes, a uma manifestação de vontade não
actual, quando é sabido que muitas vezes a vontade de uma pessoa se altera
quando a doença progride e o apego à vida vem ao de cima (ou seja: nunca pode
haver a certeza de que fosse essa a vontade real e actual da pessoa demente).
Também no caso de pessoas dementes,
pode facilmente suceder que a motivação do pedido não seja o previsível
sofrimento dessas pessoas (nestes casos, o sofrimento atingirá mais os
familiares do que o próprio doente, por este não se aperceber da sua doença),
mas antes a vontade de não fazer recair sobre esses familiares um fardo difícil
de suportar (fardo que é inegável). Pode, assim abrir-se a porta a uma morte
provocada já não pela compaixão para com o doente, mas para que as pessoas ao redor
deste se livrem de um fardo difícil de suportar.
Estas mesmas consequências (a
dificuldade de controlo e a extensão da eutanásia a situações de doentes
incapazes de manifestar a sua vontade) já se haviam notado na mais antiga
experiência holandesa (país onde a prática judiciária também já admite a eutanásia
de crianças). O célebre relatório Remmelink, de 1991, que evidenciou tais
consequências, serviu de base ao livro de Herbert Hendin Seduced by Death (W. W. Norton & Com. Inc, 1997), que
desempenhou um papel influente na rejeição da legalização da eutanásia nos
Estados Unidos.
O balanço destas experiências só
confirma que quando se derruba um alicerce, a derrocada total do edifício
acabará por se verificar (abre-se uma caixa
de Pandora, caímos numa rampa
deslizante).