1.Ação de graças
Caríssimos irmãos e estimados amigos:
Ao começar o ministério de que o Santo Padre Francisco me incumbiu no
Patriarcado, o meu primeiro sentimento só pode ser de ação de graças a
Deus, que assinala a sua presença nas nossas vidas decalcando-as no
trilho pascal que Jesus Cristo unicamente abriu. É altura de retomar na
Igreja de Lisboa o que nela comecei a viver há seis décadas e meia, do
âmbito familiar ao paroquial e do paroquial ao diocesano, com tantos
exemplos e estímulos de leigos, consagrados e clérigos que a minha
memória evoca agradecida. Destaco de entre eles os meus três sucessivos
Patriarcas, os Cardeais Cerejeira, Ribeiro e Policarpo, nos quais pude
divisar o rosto paternal de Deus e o cuidado pastoral de Cristo. Ao
Senhor D. José Policarpo, reafirmo a muita gratidão pela amizade com que
sempre me acompanhou, bem como pela lucidez e generosidade do seu
serviço eclesial, dentro e além do Patriarcado. Sei que posso contar com
a sua oração e conselho, para o trabalho que agora inicio.
Nesta evocação, não poderia faltar a Igreja Portucalense, de cujo
serviço episcopal me ocupei nos últimos anos. Foram muitos e muitíssimos
os testemunhos que lá colhi de dedicação a Deus e ao próximo, tanto na
quadrícula diocesano-paroquial como nos institutos de vida consagrada,
movimentos e associações de fiéis, ou em centenas de instituições
sociocaritativas e outras, com generosidade reforçada pelas atuais
dificuldades da sociedade portuguesa e especialmente nortenha. Norte
que, aliás, bem nos pode inspirar a todos, pela capacidade de resistir,
recomeçar e inovar, que a sua população reiteradamente demonstra, em
muitos dos seus intervenientes sociais, económicos e culturais. Nunca
poderei agradecer devidamente o apoio e o carinho com que sempre fui
acompanhado pela Diocese do Porto e o seu magnífico povo, bem como pelas
respetivas instituições públicas e privadas. Quero, ainda assim,
destacar a grande comunhão eclesial que sempre encontrei nos órgãos
coletivos da pastoral diocesana e, acima de tudo, nos caríssimos Bispos
Auxiliares e demais membros do Conselho Episcopal. Como tudo na Igreja
de Cristo, só em comunhão se serve a comunhão: assim foi no Porto, como
assim é e será em Lisboa.
2. Comunidades de acolhimento e missão
Importa insistir neste ponto e à luz do Evangelho que ouvimos:
«Naquele tempo designou o Senhor setenta e dois discípulos e enviou-os
dois a dois à sua frente, a todas as cidades e lugares aonde Ele havia
de ir. E dizia-lhes: “[…] Quando entrardes nalguma cidade dizei
primeiro: ‘Paz a esta casa!’”»
Jesus envia os seus discípulos a todas as cidades e lugares aonde ele
mesmo havia de ir. Este envio define permanentemente a Igreja e
legitima-a como “cristã”, participando da missão de Cristo, que “por nós
homens e para nossa salvação desceu dos Céus”. Ou, como lhe ouvimos
dizer no quarto Evangelho, dirigindo-se ao Pai: «Assim como Tu me
enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo» (Jo 17, 18). Enviada a
todas as cidades e lugares onde Cristo quer chegar, é função da Igreja
abrir caminho a tudo o que assinala a sua vinda, superando egoísmos com
partilhas e transformado solidões em convivências.
Mas, falando de Igreja, falamos de comunidade e não de subjetivismos
dispersos. Jesus envia-os “dois a dois”, como já aos Doze Apóstolos os
reunira em grupo. Também e apenas deste modo se pode falar de Igreja
“cristã”, pois Cristo nada faz essencialmente sem o Pai, ou
eclesialmente o quer fazer sem os discípulos. Ensina-nos mesmo que, em
Deus, a unidade é comunhão, quando prossegue: «Não rogo só por eles, mas
também por aqueles que hão de crer em mim, por meio da sua palavra,
para que todos sejam um só, como Tu, Pai, estás em mim e eu em Ti; para
que assim eles estejam em Nós e o mundo creia que Tu me enviaste» (Jo
17, 20-21).
A Igreja não existe para si mesma. No Espírito de Cristo, existe para
Deus Pai em permanente ação de graças e para o mundo em constante
serviço. O que não se inclui neste duplo e coincidente movimento está a
mais e exige conversão. O mundo, este nosso mundo de hoje em dia,
precisa urgentemente de comunidades de acolhimento e missão.
Não sendo este um momento de detalhes programáticos, adianto, ainda
assim, o que me parece mais óbvio: a Igreja de Lisboa seguirá as
indicações do Sínodo dos Bispos, na sua Mensagem de outubro último, e da
Conferência Episcopal Portuguesa, na sua Nota Pastoral de 11 de abril,
que visa “promover a renovação da pastoral da Igreja em Portugal”.
Tiraremos certamente daqui plano e programa que baste para os próximos
tempos e na maior correspondência ao que o nosso povo espera da Igreja,
dentro ou mesmo fora das fronteiras da crença.
Diz-nos o texto sinodal: «É necessário criar comunidades acolhedoras,
onde todos os marginalizados encontrem a sua casa, realizar
experiências concretas de comunhão que, com a força ardente do amor […],
atraiam o olhar desencantado da humanidade contemporânea» (Mensagem, nº
3). Comunidades que coletivamente o sejam, quer para acolher, quer
procurando quem ainda não chegou, adianta mais à frente: «A obra da
evangelização não é tarefa de alguns na Igreja, mas de comunidades
eclesiais enquanto tais, onde se tem acesso à plenitude dos instrumentos
do encontro com Jesus: a Palavra, os sacramentos, a comunhão fraterna, o
serviço da caridade, a missão» (Mensagem, nº 8).
O Papa Francisco tem insistido repetidamente neste ponto, nos seus
preenchidos meses de luminoso pontificado. E que importante é e será,
que nas nossas comunidades todos possam encontrar sempre um “sim” à
pessoa que são, mesmo quando não devamos conceder o que imediatamente
nos peçam. Ainda aí imitaremos Cristo, que tanto evidenciava a
misericórdia divina como não escondia a exigência evangélica, quer
acolhendo quem vinha, quer propondo sempre mais e melhor, mesmo que
difícil.
3. A consequência sociocultural do Evangelho
Nesta linha geral, a Mensagem do Sínodo dos Bispos dá-nos várias
indicações, absolutamente a reter. Lembro apenas mais uma, aliás muito
realçada nas recentes Jornadas Pastorais do Episcopado: «O gesto da
caridade, por sua vez, exige ser acompanhado pelo empenho em favor da
justiça, com um apelo que a todos envolve, pobres e ricos. Daí também a
inserção da doutrina social da Igreja nos percursos da nova
evangelização e o cuidado pela formação dos cristãos que se empenham em
servir a convivência humana na vida social e política» (Mensagem, nº
12).
São muitas e globais, de facto, as consequências socioculturais do
Evangelho, quer na concretização comunitária quer na aplicação social.
Com a difusão do cristianismo e a sua feliz coincidência com as
aspirações de tantas sabedorias e credos, foram pouco a pouco germinando
sementes de vida, civilização e cultura de que não podemos abdicar sem
pôr em risco a própria humanidade de nós todos: a dignidade da pessoa
humana, na variedade enriquecida de raças e povos e sempre protegida e
promovida da conceção à morte natural de cada um; a verdade familiar, na
complementaridade homem-mulher, na geração e educação dos filhos e na
entreajuda entre mais novos e mais velhos; uma visão desmitificada e
responsável do conjunto da criação, que assim mesmo abriu espaço à
ciência e ao autêntico desenvolvimento; a valorização do trabalho, como
meio de realização pessoal e social de cada ser humano, sempre a
garantir neste sentido; a distinção entre “Deus e César”, que abriu
caminho à laicidade positiva das instituições políticas e à liberdade
religiosa dos cidadãos; e o reconhecimento teórico e prático de quatro
princípios indispensáveis a qualquer sociedade que se queira justa e
realmente livre: a dignidade da pessoa humana, o bem comum, a
subsidiariedade e a solidariedade (cf. Compêndio da Doutrina Social da
Igreja, nº 160).
Nos tempos que vivemos, quase para nos refazermos como sociedade
reencontrada, os cristãos têm de oferecer a todos, crentes ou não
crentes, o que recebem de Deus, como luz penetrante, verdade verificada e
caridade plena. Com simplicidade, como São Pedro ensinava aos que
viviam numa sociedade ainda por evangelizar: «No íntimo do vosso
coração, confessai Cristo como Senhor, sempre dispostos a dar a razão da
vossa esperança a todo aquele que vo-la peça; com mansidão e respeito,
mantende limpa a consciência...» (1 Pe 3, 15-16). Tanto mais que, diante
da complexidade dos problemas, as respostas nem sempre são fáceis,
exigindo abertura, esclarecimento e estudo; e os que não concordam hoje
connosco, poderão fazê-lo mais à frente, em caminhos necessariamente
comuns. Como o próprio nome indica, a concórdia começa nos corações,
quando ninguém desiste de ninguém, seja em que campo for.
4. Rumos a seguir
Concluo, caríssimos irmãos e estimados amigos, aludindo à referida
Nota pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa, visando promover a
renovação da pastoral da Igreja em Portugal. Indica-nos ela sete
oportunos “rumos”, dos quais destaco os três primeiros: O primado da
graça, «sabendo todos bem, pastores e fiéis leigos, que o essencial da
vivência cristã e dos frutos pastorais na vida da comunidade não depende
tanto do nosso esforço de programação e da multiplicação dos nossos
passos e afazeres, mas sobretudo da transformação da nossa mente e da
conversão do nosso coração, operadas pela ação da graça de Jesus
Cristo»; a comunhão para a missão, requerendo «comunidades que sejam
autênticas escolas de vivência da fé e da comunhão, gerando entre todos
os seus membros laços de fidelidade, de proximidade e de confiança, que
se traduzam no serviço humilde da caridade fraterna»; e a missão
generalizada, «como empenho da comunidade toda e de todos seus membros».
Falando de graça, comunhão e missão, imediatamente pensaremos
n’Aquela em que tudo se realizou primeiro, no acolhimento e oferta de
Jesus Cristo ao mundo. Retomemos o exemplo de Santa Maria, que em Nazaré
acolheu em si mesma e em Belém ofereceu a todos o Verbo de Deus
incarnado. - Lembrai-nos sempre, ó Mãe de Cristo e da Igreja, que isso
mesmo havemos de ser: pleno acolhimento de Cristo e missão permanente no
mundo, para reedificar na paz a cidade de todos!
+ Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa