terça-feira, 6 de abril de 2010

Bento XVI - Cinco anos debaixo de fogo


di Paolo Rodari
(tradução de É o Carteiro)
Foi a 10 de Março passado. Enquanto os casos dos sacerdotes acusados de terem cometido abusos sobre menores invadiam a Alemanha, na Praça de São Pedro, Bento XVI explicava a sua ideia de governo da Igreja; tomando o exemplo de São Boaventura, afirmava que, para ele, «governar não é simplesmente fazer, é sobretudo pensar e rezar». «Para São Boaventura», prosseguia, «não se governa a Igreja apenas mediante ordens e estruturas, mas conduzindo e iluminando as almas.» Desde esse dia 10 de Março, Bento XVI não voltou a referir-se a este tema; mas, reagiu às acusações referentes à gestão da Igreja, que têm ido num crescendo de intensidade – as mais recentes foram publicadas no New York Times, que refere o caso de dois sacerdotes pedófilos, o americano Lawrence C. Murphy e o alemão Peter Hullermann, para pôr em causa o Cardeal Ratzinger, Prefeito do ex-Santo Ofício desde 1981 –, pondo em prática os ensinamentos do teólogo franciscano; ou seja, dando a conhecer o seu «pensamento iluminado», que é o que pretende ser a carta pastoral à Igreja da Irlanda.

E sempre foi assim, no decurso dos seus cinco anos de pontificado, que completará no próximo dia 19 de Abril. As palavras são o principal modo como o Papa conduz e se dirige à Igreja, ciente que está de que o pensamento cristão autêntico é a verdadeira «espada» lançada contra o mundo. «Note-se que não se trata de uma novidade», salienta o vaticanista Luigi Accattoli. «Já noutros momentos houve reacções furiosas ao pensamento do Papa.» Qual foi então o elemento que desencadeou a tempestade? «A ideia de que o Papa pretende voltar atrás, aos anos que antecederam o Concílio, aos anos obscuros da época tridentina; de que as suas palavras são retrógradas, quando comparadas com a cultura contemporânea, com o progresso dos novos tempos. Paulo VI, que começou por ser a esperança da cultura mediática de tendência “liberal”, tornou-se de repente um demónio ao escrever a Humanae Vitae; não foi por acaso que, em 1973, Vittorio Gorresio escreveu “O Papa e o demónio”, ou que Carlo Falconi, ex-sacerdote e vaticanista, publicou em 1978 “A viragem de Paulo VI”, entendendo por viragem o acento pré-conciliar que Montini pretendia conferir ao seu pontificado com a publicação da Humanae Vitae. João Paulo II foi alvo das mesmas acusações. Até 1989, Wojtyla era uma esperança para toda a gente; após a queda do Muro de Berlim, o seu pensamento deixou de ser útil, e começaram a chover as críticas. Porém, do ponto de vista da imprensa, o mais retrógrado era Ratzinger. “Restauração” foi a palavra que ocorreu nos títulos dos jornais que, em 1985, anteciparam a publicação do seu “Relatório sobre a fé”, escrito de parceria com Vittorio Messori; e “restauração” era quase um sinónimo de infâmia.»

Tudo começa a 22 de Dezembro de 2005, quando Bento XVI faz o seu primeiro discurso à Cúria Romana, lançando um desafio a quantos gostariam de uma Igreja, não tanto «para o mundo», ou «próxima do mundo», mas de uma Igreja «do mundo». Referindo-se ao Concílio, Ratzinger afirma que não foi uma ruptura com o passado, salientando que aqueles que insistem nesta interpretação mais não fazem do que «alinhar com as simpatias dos media e com uma parte da teologia contemporânea». «Foi a 22 de Dezembro de 2005 que toda a gente percebeu definitivamente quem é Ratzinger», observa Benny Lai, o decano dos vaticanistas. «Foi nesta altura que todos intuíram com quem teriam de se haver. Até 2005, ainda havia quem tivesse a esperança de que o primeiro Ratzinger, aquele que fora considerado mais progressista, tinha regressado; mas não foi isso que aconteceu. Já no tempo do Concílio muitos se tinham enganado, tomando Ratzinger por um teólogo progressista; até o Cardeal Giuseppe Siri teve essa opinião: quando o conheceu, não ficou com boa opinião dele. Mas Ratzinger acabou por mostrar que não correspondia a essa designação que lhe tinha sido inicialmente aplicada. E é essa mudança que ainda hoje incomoda, fora e dentro da Igreja.»

Desde o discurso à Cúria Romana até aos nossos dias, o «pensamento de Ratzinger» foi-se manifestando de muitas formas, desencadeando reacções indignadas de muitos. «Naturalmente que Ratzinger está em desvantagem relativamente a Wojtyla», comenta ainda Benny Lai, «porque, para ele, as multidões não têm uma função terapêutica, como tinham para o Papa polaco. Mas o problema está na origem. Com multidões ou sem elas, são os conteúdos dos seus discursos que incomodam e que geram aversões. E isto aplica-se ao caso dos sacerdotes pedófilos, porque incomoda a muita gente, dentro da Igreja, que o Papa continue a insistir no celibato dos sacerdotes. E, no entanto, o Papa não se deixa perturbar. Como aconteceu quando lhe negaram a possibilidade de falar na Universidade della Sapienza: não se apresentou na aula magna da instituição, mas não deixou de lhe fazer chegar o discurso que tinha escrito, e deixou um sinal: “Não pretendo impor a fé”, uma declaração que foi título de todos os jornais. E o mesmo se passou quando foi a África. O Papa afirmou que a SIDA não se resolve com a distribuição de preservativos, e foi uma tempestade; foi atacado pela intelligentsia laica de metade da Europa. Mas estas declarações estavam correctas: combate-se a SIDA através de uma educação do homem que o leve a olhar de outra maneira para o seu corpo; o contrário é uma concepção narcisista e auto-referencial da sexualidade.»

Já em Ratisbona tinha havido uma reacção importante a Bento XVI. O Papa falou das relações entre fé e religião, chamando a atenção para o nexo entre religião e civilização, e salientando que converter por via da violência vai contra a religião e contra Deus. A citação de uma frase de Manuel II Paleólogo, de acordo com o qual Maomé introduziu apenas «coisas más e desumanas tais como a sua norma de propagar, através da espada, a fé que pregava», suscitou a indignação do mundo muçulmano. «Aquela página», explica Piero Gheddo, missionário, jornalista e escritor do Pontifício Instituto das Missões Exteriores, «é sintomática da natureza deste pontificado. Parte do mundo muçulmano reagiu com indignação; e contudo, as palavras do Papa permaneceram. Porque não se pode fugir às suas palavras. Na verdade, este discurso produziu frutos; há um ano, por exemplo, estive no Bangladesh, onde vários muçulmanos estão a trabalhar sobre palavras do Papa, nomeadamente sobre a relação que deve existir entre fé e religião.»

Mas Ratzinger não fere apenas quando fala, fere também quando toma decisões que têm incidência no coração da vida da Igreja. Como por exemplo a assinatura da Summorum Pontificum, que liberalizou o rito antigo, e a revogação da excomunhão aos bispos lefebvrianos. O restabelecimento da Missa antiga suscitou reacções principalmente em França. «O que responde àqueles que, em França, receiam que Summorum Pontificum assinale um recuo relativamente às grandes intuições do Vaticano II?», perguntaram os jornalistas ao Papa em Setembro de 2008, no avião que o levava a Paris. «Que se trata de um receio infundado», respondeu o Papa, «porque este Motu proprio é um simples acto de tolerância, com fins pastorais, dirigido às pessoas que foram formadas naquela liturgia, que a amam, a conhecem, e com ela desejam viver.» A acusação é sempre a mesma: o Papa pretende regressar aos tempos anteriores ao Concílio; ou seja, é contra a modernidade. Foi a mesma acusação que muitos lhe fizeram quando revogou a excomunhão aos quatro bispos lefebvrianos; e também desta vez Ratzinger reagiu, por um lado, explicando que «não se pode congelar a autoridade magisterial da Igreja no ano de 1962», e por outro, recordando àqueles que se afirmam como grande defensores do Concílio que «quem pretende ser obediente ao Vaticano II tem de aceitar a fé professada no decurso dos séculos e não pode cortar as raízes das quais vive a árvore.»

É sempre ao Vaticano II que regressamos. A revogação da excomunhão aos lefebvrianos foi, para o mundo hebraico, um regresso a um passado hostil. Com efeito, um destes quatro bispos é Richard Williamson, negacionista da Shoah, e Bento XVI viu-se forçado a reafirmar uma noção para ele óbvia, a de que não partilha, em nenhum sentido, esta posição do bispo. Mas compreende-se que uma parte do mundo hebraico não tenha ficado satisfeita. De resto, é durante a visita a Auschwitz e no decurso da viagem à Terra Santa que diversos rabinos de cidades importantes, principalmente europeias, criticam Ratzinger, considerando insuficientes as palavras que o Papa dedicou aos judeus; de Ratzinger, o alemão, exigia-se mais, mesmo tratando-se de um dos teólogos que mais trabalharam no sentido da reaproximação do judaísmo. Porém, e não obstante todas as pressões, o Papa prossegue o seu caminho, optando por tornar pública, a poucos dias da sua visita à sinagoga de Roma, a assinatura do decreto sobre as virtudes heróicas de Pio XII, que constitui o último passo antes da beatificação. O mundo hebraico reagiu, mas o Papa tinha tomado esta decisão e, na sinagoga, retoma uma tese já muitas vezes exposta: «A sede apostólica desenvolve as suas acções de assistência aos judeus de forma muitas vezes oculta e discreta.»

Há também um certo mundo protestante que não compreende Ratzinger. É de Novembro passado a Constituição Apostólica Anglicanorum Coetibus, em razão da qual os grupos de anglicanos que o desejem podem regressar a Roma. O Papa explicou o gesto como uma resposta a uma solicitação dos mesmos anglicanos, mas muitos deles – e mesmo uma parte da Igreja Católica – não o compreenderam e acusaram-no de só saber pescar «para a direita», ou seja, entre os sectores da cristandade que estão descontentes com as derivas progressistas e «liberais» das próprias igrejas. A 1 de Fevereiro passado, o Papa respondeu a estas acusações, declarando aos Bispos de Inglaterra e do País de Gales, em visita ad limina: «Peço-vos que sejais generosos na aplicação das directivas da constituição apostólica destinada a auxiliar aqueles grupos de anglicanos que desejem entrar em plena comunhão com a Igreja Católica; estou convencido de que estes grupos serão uma bênção para toda a Igreja.» «Tenho andado pelo mundo e conhecido diversas realidades anglicanas», comenta Piero Gheddo. «Por que motivo desejam regressar à comunhão com Roma? Porque uma Igreja que se abre ao mundo de forma leviana, aceitando a ordenação de mulheres e o casamento homossexual, é uma igreja sem sentido. O Papa combate pela salvaguarda de uma Igreja ancorada na verdade e é por esse motivo que é hostilizado.»