quinta-feira, 1 de abril de 2010

Aquela Missa

Não me lembra exactamente a data. Sei que foi nos primeiros anos do meu Sacerdócio. Poucos meses depois de ser Ordenado Presbítero, a 6 de Julho (dia de Santa Maria Goretti!, Santa esta de minha grande devoção) de 1986, fui colocado na nossa Fraternidade de Coimbra, na Av. Dias da Silva, perto das Carmelitas, onde então vivia a Irmã Lúcia.

Ora sucedeu que um grupo de jovens com o qual apostolizava a malta coimbrã se lembrou de organizar uma semana de missão numa aldeia da Beira Baixa, cujo nome não recordo, embora a lembre com muita saudade. Creio que a ideia partiu do namorado de uma moça que era natural de lá.

Organizámo-nos, planeámos e projectamos tudo muito franciscanamente, isto é, não pensámos em quase nada e entregámos tudo à Providência Divina.

Quando chegámos destinaram-me a melhor casa da aldeia, a da tia Júlia (achei mal que um mísero franciscano fosse tratado como dignitário Jesuíta ou Opus Dei, mas tive que obedecer…). A tia Júlia era uma mulher extraordinária, para além de uma enorme alegria expansiva tinha a determinação e a voz de comando de um general. Tratou-me com todos os carinhos maternais e, simultaneamente, com as reverências próprias de quem lida com um Rei. Eu, achando que o que precisava era de ser açoitado na praça pública, inibia-me com tantos desvelos. Enquanto me servia requeijão acabado de fazer espreitava pela janela aberta e vociferava para os campos: Ah! Bruno que ainda cais num poço e me morres afogado, depois o teu pai dá-te uma sova! Anda já para aqui! O Bruno era um petiz, sobrinho da F., a tal namorada do rapaz que teve a ideia.

O tempo foi dividido entre a oração, os trabalhos no campo ou no forno, algum lazer, as longas pregações nas Missas e as confissões. De manhãzinha rezávamos com o povo na Igreja as Laudes com meditação feita a partir dos textos da leitura breve das mesmas. Depois íamos aprender a trabalhar com aquela gente boa e sã muito afeita à rudeza árdua do labor campestre. Achavam graça por nos ver tão desajeitados e ignorantes das coisas do campo. Foi lá que aprendemos a fazer pão. Aquele pão que é mesmo pão e que saboreámos ainda quente, saído do forno a lenha, com muita manteiga.

Pela tarde rezávamos o Terço, as Vésperas e a Missa. De noite, depois do jantar, partilhávamos o dia (porque nas tarefas estávamos espalhados) e convivíamos à lareira, comendo uns chouriços na brasa, uns queijinhos de cabra e bebendo um óptimo vinho palhete.

Ora sucedeu que um dia se resolveu irmos com a aldeia em peso a uma ribeira que distava alguns quilómetros do sítio – bons tempos aqueles em que as portas da rua tinham a chave por fora dia e noite e ninguém as assaltava. A ideia era passar lá grande parte do dia e por isso se decidiu que a Santa Missa não seria, como habitualmente, celebrada na Igreja mas sim à beira da corrente de águas vivas.

Depois de um grande caminhada (embora para aquela gente tudo seja perto, para mim, nado e criado na cidade, as distâncias assumem outra proporção.) lá chegamos ao local que de tão aprazível nos deslumbrou com a sua beleza pitoresca. Toda a proximidade da ribeira era de terra plana coberta de viçosa e abundante erva verde, como um relvado. Algumas árvores frondosas sombreavam o lugar associando-se à frescura da torrente sossegada mas contínua.

Depois da maravilha inicial, como me competia, pedi que procurassem pelas redondezas pedregulhos ou troncos com os quais se pudesse fazer um altar para oferecer o Sacrifício Santíssimo. Depois de uma busca aturada não conseguiram encontrar mais do que uma pedra rectangular lisa. Teria uns 50 cm por 30 cm com uma altura de uns 20 cm. Instei para que alargassem a pesquisa. Não conseguiram deparar com mais nada. Já me tinha paramentado quando olhando para aquela pedra a meus pés que iria fazer de altar decidi de novo que não poderia celebrar assim.

Bem sabia que Jesus Cristo antes de padecer a morte afrontosa na Cruz tinha lavado os pés a seus apóstolos aquando da instituição da Eucaristia e do Sacerdócio, para nos dar o exemplo de humildade e serviço. Mas Ele Ressuscitou, e subiu Glorioso aos Céus, e todo o poder Lhe foi dado, na sua humanidade, no Céu e na Terra, e toda a criatura deve dobrar os joelhos na Sua presença, e há-de vir em Majestade a julgar os vivos e os mortos, recompensando e condenando a cada um segundo as suas obras.

Ter a Deus como escabelo de meus/nossos pés!, era totalmente impensável, inaceitável. Não podia, de todo, celebrar assim os Santos Mistérios.

Mas olhava em frente e via o povo reunido, expectante, faminto, mirando-me com um ar expectante, suplicante. Foi então que me fixei numa árvore que já tinha chamado a minha atenção. Estava mesmo à beira da água; o seu tronco tinha a peculiaridade de não ter crescido na vertical mas sim na diagonal sobre a corrente de tal modo que com os seus ramos pairava sobre as águas. Estudando rapidamente a estrutura providencial da planta lenhosa verifiquei que poderia encaixar a pedra, a servir de altar, coberta da devida toalha, no cruzamento de uma ramificação e que eu poderia sentar-me numa outra ramagem ligeiramente mais baixa e aí presidir aos Sagrados Mistérios. Como a lápide era pequena a vela foi encastrada num outro ponto do lenho junto ao altar. Considerei então que aquela árvore representava a Cruz, e lembrei-me que o meu conterrâneo e Irmão de vida Religiosa, Santo António de Lisboa, tinha mandado construir uma cela no cimo de uma árvore para melhor se dar à contemplação do Mistério de Deus. Tinha o senão de ter de celebrar a Missa sentado podendo somente adorar corporalmente o Senhor com inclinações do tronco e da cabeça. Diz S. Francisco que “a necessidade não conhece lei” e, sendo assim, pus-me espiritualmente em comunhão com os Sacerdotes que, por se encontrarem em cadeiras de rodas, celebram a Missa como podem e do mesmo modo o fiz. Claro que tive de descer para distribuir a Sagrada Comunhão e remontar de novo para a purificação e demais ritos finais.

Lembro-me que ao olhar do cimo daquela árvore, que figurava Jesus Cristo, para aquele povo simples e ávido do Pão da Vida e da Sua Palavra como que me senti semelhante a Jesus pregando da barca para as gentes que se amontoavam na praia.

Este momento, bem como vários outros da missão, foram registados em fotografias. Não vo-las posso enviar porque aqui há uns anos uma revista[1] mas pediu, a propósito de uma entrevista, e, apesar dos meus pedidos, nunca mas devolveu. Sei, porém, que alguns daqueles a quem envio este texto estiveram nessa missão que foi para todos nós um grande Graça de Deus.

Não sei se hoje teria feito o mesmo. O mais provável é que regressasse para celebrar na Igreja. Sei que o que fiz então foi com recta intenção. Deus na Sua infinita misericórdia me perdoará se O deslustrei. Mas lembrei-me nesta Quinta-feira Santa, dia em que Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu o Sacramento da Eucaristia e o do Sacerdócio, de vos contar este episódio para que se lembrem de rezar por nós Padres e de dar grandes Graças a Deus por Se tornar assim tão próximo de nós alimentando-nos de Si mesmo na aparência de pão e de vinho. À honra de Cristo. Ámen.


Nuno Serras Pereira

01. 04. 2010



[1] Chama-se: A REVISTA, Bombeiros-Defesa-Segurança. Foi no número 30 de Maio 2005. Pç Luís de Camões, 36, 2 direito (1200-243 Lisboa). Telf. 21 322 46 60 a 77. Email: jmt@gabinet1.pt . Estes dados são retirados do dito número 30 de 2005 e importa que aqui vão porque o facto de hoje ser tradicionalmente o dia das mentiras pode levar alguém a pensar que se trata de uma jocosidade.