Pedro Vaz Patto
Acabo de ler a carta do Papa Bento XVI sobre o escândalo dos abusos sexuais de crianças e adolescentes praticados durante vários anos por sacerdotes irlandeses. Será oportuno reflectir a respeito das lições que podem ser extraídas desta tão triste ocorrência.
Um dos maiores erros cometidos por responsáveis da Igreja irlandesa foi o de sobrepor as exigências de salvaguarda da imagem e reputação da Igreja às da protecção das vítimas de crimes tão graves. Essa reputação não pode assentar na mentira, sobretudo se esta prejudica as pessoas que a Igreja deve servir. A humildade de reconhecer e pedir perdão pelos erros dos seus filhos, na linha do que fez João Paulo II a propósito de dois mil anos de História e do que faz agora inequivocamente a este propósito Bento XVI, de modo algum descredibiliza a Igreja.
Outra lição a retirar destes factos é a de que a compreensão e misericórdia para com os autores de crimes não dispensam as exigências da justiça, eclesiástica e civil, com o que isso supõe de atenção às vítimas, de reparação dos danos, e até de castigo e penitência. Como afirma o Papa nesta carta aos católicos irlandeses, os autores destes crimes devem «responder perante Deus e os homens». O que se passou na Irlanda, ao contrário do que por vezes se tem afirmado, nunca teve cobertura nas normas de direito canónico, que foram esquecidas e violadas. Essas normas foram mais tarde modificadas no sentido de uma maior severidade precisamente pelo cardeal Ratzinger, razão pela qual se revela profundamente injusta a obstinada tentativa, da parte de alguns sectores de opinião, de o responsabilizar por factos como os ocorridos na Irlanda.
A “avalanche”, a que vimos assistindo, de notícias sobre abusos sexuais de crianças e adolescentes praticados por sacerdotes (algumas relativas a factos de há mais de cinquenta anos e já conhecidos) pode criar (de forma não certamente inocente) uma imagem distorcida da realidade, quase como se estes fenómenos fossem exclusivos ou característicos da Igreja católica e não se verificassem, até em proporções maiores, em ministros de outras denominações cristãs ou de outras religiões, e, sobretudo, noutros grupos profissionais. Distorção que também faz esquecer o testemunho de integridade (nalguns casos, até de santidade) da esmagadora maioria dos sacerdotes.
Como têm salientado os especialistas e até quem contesta a disciplina canónica a tal respeito, não é o celibato que está na origem destas condutas, perpetradas noutros âmbitos na sua grande maioria por pessoas não celibatárias. Mesmo assim, nem sequer a ocorrência de um destes casos seria de esperar ou aceitar, pelo que representam, como também salienta a carta em apreço, de atentado à “santidade do sacramento da Ordem” e à confiança que devem merecer quaisquer agentes de formação da juventude. Que sacerdotes tenham praticado factos tão graves faz realçar a importância da sua adequada e criteriosa selecção e preparação. Um cuidado que instruções recentes da Santa Sé têm procurado reforçar.
Alguns sectores de opinião normalmente hostis para com a Igreja católica (a revista alemã Der Spiegel, por exemplo) têm aproveitado este escândalo não só para contestar a disciplina do celibato sacerdotal, mas para descredibilizar a própria ética sexual veiculada pela Igreja católica. Também por esta via se distorce gravemente a realidade. Estes fenómenos revelam a pertinência dessa ética sexual, não o contrário.
O abuso sexual de menores representa, talvez, o ápice de violação daqueles princípios de ética sexual que a Igreja católica tem defendido contra a corrente da opinião dominante, muitas vezes quase sozinha (apesar de decorreram, em grande parte, de uma perspectiva simplesmente “humanista” e não especificamente cristã). Falar de auto-domínio, de controlo dos impulsos e tendências sexuais é contrariar a opinião dominante, mas é a falta desse auto-domínio que está na origem destes comportamentos. Salientar os malefícios da actividade sexual precoce, porque normalmente dissociada da comunhão interpessoal que a humaniza, também vai contra a opinião dominante, mas são malefícios desse tipo que, de uma forma extremada, decorrem do abuso sexual de menores. Quando a corrente dominante vai no sentido da apologia de uma sexualidade como um campo sem regras (quantas vezes não se ouve dizer que não há “sexualidades normais”?), é pertinente contrariar essa visão. E salientar, como faz o magistério da Igreja, a importância de evitar a coisificação do outro, neste como noutros campos. Essa coisificação caracteriza vários comportamentos sexuais cada vez mais tolerados e atinge, talvez, a sua máxima expressão precisamente no abuso sexual de crianças e adolescentes.
Também esta é uma lição que pode ser extraída deste escândalo.