A Igreja passa
por uma crise terrível. Por isso o Papa renunciou. Esse gesto
revolucionário abre uma oportunidade para repensar tudo a fundo." Estas
são, em resumo, as três teses básicas que, no simplismo habitual, a
comunicação social tem divulgado sobre este tema.
Como de costume,
a imprensa produz hipóteses, elabora raciocínios e outorga conclusões,
sempre com pouca preocupação pela realidade. Por isso é tantas vezes
apanhada de surpresa. O seu permanente sobressalto previne-nos para não
levar a sério o que os media dizem sobre uma instituição que os
ultrapassa espantosamente. Estas teses chegam para mostrar isto.
A
suposta "crise terrível" nunca passou de uma invenção de comentadores
exaltados. Por acaso a Igreja passa por uma fase particularmente feliz
da sua longa história. Uma sequência de papas santos e brilhantes,
unidade do clero à volta do magistério, ausência de perseguições abertas
nas democracias e enorme aumento de fiéis têm sido raros nos séculos
anteriores. Além disso, o vasto e profundo processo de reforma criado
pelo último Concílio, sem par em qualquer instituição mundial, torna a
Igreja mais ágil, sólida e diligente.
São exactamente estes
aspectos, constatáveis numa análise sociológica séria, que levam muitos
adversários assustados a apregoar a tese da "crise terrível". O sucesso
estrondoso das múltiplas iniciativas de João Paulo II, que manteve o
mundo suspenso durante 27 anos, foi continuado pelo sucesso também
espantoso das iniciativas de Bento XVI. Com estilo totalmente diferente,
ficou provado que a causa não era o inimitável génio pessoal do papa
polaco, mas uma força muito mais poderosa que alimenta todos os papas,
por serem papas.
Até o escândalo de pedofilia, prova central da
tese da "crise terrível", foi mal compreendido. Primeiro porque ao
lançar a campanha, os jornais, hostis ou simplesmente oportunistas,
fizeram um favor precioso à Igreja, eliminando do seu seio alguns
criminosos horríveis. Depois, o truque de suscitar ao mesmo tempo casos
muito antigos, de locais muito longínquos, pode impressionar algum
tempo, mas acaba por falhar. Qual é o interesse em fazer manchetes de
acontecimentos de há 40 anos? Só face à Igreja é que os jornais chamam
notícias a coisas acontecidas antes de ter nascido o jornalista que as
relata. Hoje, fazendo uma devassa à vida de qualquer clérigo, os jornais
prestam um excelente serviço à Igreja, mas maçam os leitores. O que
assusta é só atenderem aos poucos casos de pedofilia dentro da Igreja,
sem ligar aos de fora, que são a esmagadora maioria.
O outro caso
que se diz motivar a renúncia do Papa prova também o oposto do que
dizem. Um punhado de criminosos, aliás mais louvados que censurados,
entrou na intimidade da Santa Sé sem conseguir encontrar nada de
realmente demolidor. Que outro dirigente ou organização, política ou
económica (incluindo a administração e a redacção de jornais e
televisões), sofrendo uma fuga de informação privada com tal vastidão e
detalhe, sairia tão bem quanto o Papa e a Cúria? Qualquer inspecção aos
papéis privados de governos e empresas conseguiria provar tão pouco? Se
se olhassem ao espelho, aqueles que comentam com ar severo o caso
deveriam admitir que, apesar dos pecadilhos revelados, as fugas
demonstram antes a virtude da Igreja. A «crise terrível» afinal é outra.
De
facto o mundo passa por uma crise terrível. Bento XVI sempre esteve
consciente dos verdadeiros dramas, e nunca se distraiu com pormenores
secundários, como as tricas que ocupam os comentadores. Consciente da
missão central que lhe compete, salvar a humanidade neste momento tão
difícil, achou que se deveria dedicar à tarefa fundamental, a oração
diante de Deus, entregando a alguém mais jovem a condução dos assuntos
operacionais.
O gesto profético de Bento XVI dá a oportunidade à
Igreja, não de repensar tudo, como dizem os estranhos, mas de
serenamente retomar a função que lhe compete. Essa não precisa de ser
repensada pois foi-lhe entregue há muitos anos, junto a um lago.