quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Hipnoses

«Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal» (Is 5, 20)

Já lá vão uns trinta anos quando comprei uma série de livros para estudar o hipnotismo. Ainda não os tinha lido todos quando um dos meus irmãos mais novos, vendo-me concentrado no assunto, me pediu para o hipnotizar. Disse-lhe que tivesse juízo. Ele teimou, eu opus-me; insistiu, resisti; tornou a instar, rendi-me, convicto de que nada alcançaria mas que ao menos deixaria de me importunar. Incrédulo, mandei-o entrelaçar os dedos das mãos, encostando-os à sua testa com as palmas viradas para mim. Era o teste da sugestão da “colagem” para saber da sua susceptibilidade ou não de ser hipnotizado à primeira em estado médio ou profundo. Terminados os procedimentos concluí afirmando-lhe que não conseguiria descolar os dedos nem tão pouco arrancá-los da fronte. Fez um ademane indicativo de tentativa, trejeitou esforçadamente e murmurou um surpreendido não consigo. Cuidando que mangava comigo, levantei-me e disse-lhe para ir chalacear com outro. Já ia a meio das escadas que desciam do quarto quando o oiço numa aflição soluçada repetindo num choro: não consigo, não consigo. Num sobressalto reentrei rapidamente no aposento, aparentei serenidade, tranquilizei-o e retirei-lhe a sugestão. Escusado será dizer que depois de ter verificado a capacidade “tive” de me render ao seu querer hipnotizando-o mesmo.

Chegados de férias a Lisboa sabendo os amigos da novidade, logo imploraram uma demonstração e vários, mais ou menos cépticos, se ofereceram espontaneamente para experimentarem se seriam ou não hipnotizáveis. Fui então verificando que as susceptibilidades variavam e que alguns só alcançavam o estado superficial embora em maior número chegassem ao médio e ao profundo, estados estes mais propícios ao gáudio das assembleias sempre ávidas de excentricidades. Por exemplo, era possível pôr uma pessoa de cócoras, agitando os braços como se fossem asas, percorrendo a sala em catadupas de cacarejos; ou, num dia de grande frio, sugestionar a pessoa convencendo-a que está num deserto abrasador, de modo que acalorada e afogueada vá tirando todos os agasalhos; ou dar-lhe dentes de alho a comer dizendo-lhe que são amêndoas açucaradas, e é vê-la deliciada saboreando a aspereza do legume; ou então o inverso, de jeito que a pessoa repugna o mais delicado manjar, uma lagosta, por exemplo, vendo, sentindo, cheirando um pedaço de estrume nauseabundo; também era possível dar sugestões pós-hipnóticas que desapareceriam a uma hora marcada ou a uma palavra dita, verbi gratia (v. g.), estar tranquilo e apurar a memória para um exame, ou provocar que a cada passa que se desse num cigarro ela amargaria em crescendo até se tornar insuportável, ou ver alguém que não estava presente e procurar apresentá-lo aos circunstantes. Enfim, um sem número de peripécias ou de auxílios, mas que necessitavam de critério para que as sugestões não fossem perigosas vindo a provocar traumatismos, v. g., dizer que alguém querido morreu, ou que se está rodeado de serpentes venenosas, etc.

Descobri também que apesar de alguns livros afirmarem que só se poderia hipnotizar quem quisesse sê-lo havia alguns casos em que a pessoa desafiando-me garantindo que não o conseguiria com ela, rapidamente era sugestionável. Vim também a perceber que um hipnotizador experimentado poderia, sem pedir consentimento, hipnotizar outra pessoa, ou uma assembleia, sem que ela disso se apercebesse. E como se pode dar a sugestão de esquecer tudo o que se passou durante o hipnotismo para reforçar a amnésia pode o sujeito nunca vir a tomar consciência de que foi magnetizado.

Tenho a impressão de que os livros que na altura li sobre este tema eram concordes na asserção de que a consciência moral não podia ser hipnotizada e que, por isso, alguém que estivesse sob esse efeito recusar-se-ia a fazer algo contrário às suas convicções morais, podendo mesmo, em caso de insistência por parte do hipnotizador, despertar por si mesma desse estado em que fora induzida. Não sei ao certo se isso é verdade porque nunca me atrevi a sugestionar alguém de modo a sugestionar qualquer coisa que soubesse ser contrária ao, como então se dizia, super ego. No entanto, não foi necessário reflectir muito para concluir que mesmo que a pessoa se negasse a fazer o que contrariasse a sua consciência moral, podia facilmente ser iludida de modo a realizar o que nunca faria no seu estado normal. Suponhamos, por exemplo, que um hipnotizador sem escrúpulos queria uma sessão de “striptease”, isto é, de desnudamento. Bastar-lhe-ia para o efeito dizer à hipnotizada que estava na casa de banho, que fechasse a porta à chave e se despisse para tomar banho… O que se passaria seria que a senhora com o maior dos à vontades despojar-se-ia diante dos presentes. Imagine, ainda, cúmulo da perversão, que o hipnotizador se faria passar pelo marido da mesma… Como se vê é possível especular sobre uma infinidade de situações em que a pessoa hipnotizada seria induzida em erro agindo em desacordo com a sua consciência, julgando estar a segui-la.

Se é possível fazer uma pessoa beber um copo de vomitado julgando que é uma cerveja, também será possível fazê-la explodir assassinando uma multidão de inocentes cuidando que está praticando um acto de justiça e misericórdia merecedora das bem-aventuranças eternas. Este suicídio homicida a que errada e perversamente se dá o nome de martírio tem vindo num crescendo de aluvião recordando-nos de que grupos, povos e nações podem de algum modo ser mesmerizados. Basta recordar a Alemanha nazi, a Rússia estalinista, a China maoísta, o Camboja vermelho de Pol Pot, ou o mais recente genocídio no Ruanda. É verdade que nas situações ora referidas a sugestão foi habitualmente acompanhada pela coação física, mas importa não esquecer que isso não explica como é que os coactores se tornaram tais e em tamanha quantidade.

Esta prontidão comum de que usamos para apontar o dedo a estes regimes totalitários distrai-nos com facilidade das nossas próprias cegueira ou ilusões. Há a possibilidade de enfeitiçamento mais subtis, mais insidiosos, condicionamentos e propagandas que não aparecem como tais, merchandising (ou melhor dito, mercadização) particularmente sofisticados, tão sedutores, tão intensos, tão constantes, tão envolventes, sugestionando poderosamente, modelando fortemente as mentalidades, hipnotizando as gentes.

Se é possível, como vimos, fazer com que o odioso surja como apetecível, que o belo apareça como monstruoso, que o bem seja percepcionado como péssimo, também se dá o inverso, mostrando-se o péssimo como excelente, o disforme como esplendoroso, a verdade como mentira, o certo e desejável como errado e repugnante. Já as sabedorias antigas e primordiais alertavam para o anjo das trevas que se transfigurava em anjo da luz para nos perder. De facto, o Maligno que “é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8, 44) é um enorme ilusionista e o grande hipnotizador que ultimamente está por detrás de todas estas manigâncias. Pois se até um bebé absolutamente inocente e totalmente indefeso, a mais luminosa e deslumbrante imagem de Deus amor, pode ser visto como uma ameaça e um inimigo a abater violentamente, de tal modo que se institucionalize a sua matança directa e propositada, em virtude de uma arbitrariedade prometéica, em que todos, de algum modo, são forçados a participar (nem que mais não seja pelos seus impostos), vede bem a que extremos de radicalismo tirânico e totalitário a hipnose geral pode chegar!

Felizmente Deus, o Omnipotente e Omnisciente, não é hipnotizável, e a Razão criadora que Ele é, fez-Se homem em Jesus Cristo para nos fazer participantes da Sua Divindade, da Sua Razão Amorável ou do Seu Amor Razoável. Por isso a Presença dEle em nós na comunhão dos Seus é a nossa força e o nosso critério que nos imuniza ou/e nos cura das recaídas e nos transforma em despertadores universais para que todos conheçam a Verdade que nos libertará: “conhecereis a Verdade e a Verdade vos tornará livres” (Jo 8, 32).

Foi ao reencontrar esta Verdade, ao reconverter-me, depois de um período muitíssimo atribulado, que me desinteressei destas mesmerizações e desde então até hoje nunca mais hipnotizei ninguém, já lá vão uns trinta anos.

Nuno Serras Pereira
01. 12. 2006