Todos nós, ao longo dos anos, temos ouvido a Igreja ensinar em Portugal que o cristão pode legitimamente ter variadíssimas escolhas de voto, em relação aos Partidos e aos candidatos políticos. O que talvez nunca tenhamos escutado é que há opções de voto que são radicalmente incompatíveis com a fé. Que este aspecto essencial da doutrina da Igreja não é conhecido verifica-se não só pela análise das eleições realizadas, mas também pelo facto de cristãos que optam por tomadas de posição políticas em contraste total com a sua fé, ocuparem cargos de relevo em instituições eclesiais, serem convidados, a título de católicos, para conferenciar ao povo cristão, serem publicamente elogiados por alguns senhores bispos, receberem tranquilamente a sagrada comunhão, serem indicados como exemplo a ser seguido.
Na construção de uma casa há coisas essenciais e outras acidentais, e dentro das essenciais há diferentes juízos prudenciais sobre o modo de garantir o essencial. Que a cozinha seja nesta divisão ou na outra, que a sala seja maior ou menor, que haja tantos quartos, qual o tamanho das janelas, etc., são exemplos possíveis de questões acidentais sobre as quais é natural e bom que haja opiniões e decisões diferentes, consoante o gosto dos proprietários e do arquitecto. Mas que a casa tenha alicerces ou não é uma questão essencial, fora de qualquer discussão. Embora também o tecto, por exemplo, seja essencial, sempre se pode opinar e decidir se há-de ser terraço, em telha ou noutro material apropriado.
Se comparar-mos a edificação do bem comum da sociedade, através da política, com a construção de uma mansão ou de um prédio facilmente compreenderemos aquilo que ensina a doutrina da Igreja e que os cristãos, pastores e leigos, geralmente falando, ignoram. O direito à vida de todos, em todas as fases da existência, e a sua tutela é o alicerce de todo o edifício social e político, o fundamento primordial de todos os outros direitos. O direito à saúde, por exemplo, também é essencial; porém pode haver legítima diversidade de pareceres sobre os melhores meios de o garantir – preponderância do serviço público ou do privado, grandes hospitais ou pequenas unidades, etc. Outras questões menores são da ordem do acidental, podem-se legitimamente querer ou não: por exemplo, a construção de um estádio de futebol.
Ora, assim, como nunca seria lícito que um proprietário cristão escolhesse para construir um prédio alguém que ele sabia que o iria edificar sem alicerces, assim nunca é lícito, sem um motivo proporcional adequado, a um cristão, ou qualquer homem de boa-vontade, votar num político ou Partido político que não garanta a tutela do direito à vida. Quem o fizesse tornar-se-ia cúmplice das mortes cruéis perpetradas pela “lei” iníqua e injusta.
A questão da despenalização, da descriminalização, da legalização e da liberalização do aborto provocado é obviamente muitíssimo mais importante do que qualquer outra. Não há proporcionalidade possível entre o extermínio directo e legalmente organizado de seres humanos inocentes e indefesos e qualquer outra questão social. Não basta, no entanto, afirmar a disparidade abissal de peso ou a enorme desconformidade.
Importa, outrossim, declarar que qualquer político ou Partido que tenha uma visão errada sobre esta questão não pode ter uma visão adequada e certa sobre as outras questões sociais, jurídicas e políticas. A razão é simples: o núcleo de cada uma dessas questões é constituído pela dignidade de cada pessoa humana, cuja vida não pode ser submetida ao domínio de ninguém. A dignidade da pessoa brota do facto de ela ser humana, de ser um indivíduo vivo da espécie humana, e não de uma concessão arbitrária que se pode ou não recusar, privilegiando uns em detrimento de outros. Se se pode arrebatar o direito à vida através do aborto então pode-se extorquir qualquer outro direito que nele se origina e se mantém. “Admitir o aborto e depois reivindicar o direito ao trabalho, habitação, educação, saúde e por aí adiante significa afirmar que esses direitos pertencem a alguns, mas não a todos.
Seguramente não pertencem àqueles que foram aniquilados pelo aborto. Por isso esses direitos não podem ser direitos humanos, uma vez que quem assim pensa afirma que nem todos os humanos são sujeitos desses direitos.” (F. Pavone). Porque é que nos empenhamos tanto contra a pobreza, senão porque os pobres têm direito à alimentação, habitação, saúde, emprego, etc. Mas que significam esses direitos senão que eles têm direito à vida?, pois todos eles servem para sustentar e promover a mesma vida. Por isso é que o Papa João Paulo II afirma que quando o direito à vida não é protegido nem tutelado as reivindicações de outros direitos não passam de defesas “totalmente falsas e ilusórias” dos mesmos. (Cf. João Paulo II, Christifideles Laci, nº 38).
A simples ausência de elucidação deste assunto, tão explicitamente claro desde, pelo menos, 1974 (falo da Nota da Congregação para a Doutrina da Fé sobre o Aborto Provocado), os sinais emitidos, por acção e omissão, por alguns senhores bispos, senão mesmo por sectores da Conferência Episcopal, dando a entender que os assuntos, afinal, seriam equivalentes e o apoio descarado que os principais meios de comunicação social da Igreja, bem como outras entidades eclesiais, têm concedido a Partidos e políticos abortistas tem tido a gravíssima consequência de o povo católico eleger como representantes e governantes seus, aqueles que usam o poder, que lhes foi entregue, para derrocarem os fundamentos da sua fé cristã e da ética e direito natural (Cf. Evangelium Vitae, nº 3). Não se trata aqui, obviamente, de uma acusação, mas tão-somente de uma verificação em vista de um pedido de perdão, de um arrependimento e consequente conversão.
Temos, porventura, dois anos para reeducar o nosso povo para que retome o caminho da coerência com as exigências da sua humanidade verdadeira e da sua fé – se queremos que as coisas não piorem. Se há coisa que, à evidência, a Igreja em Portugal desconhece é a doutrina da Igreja sobre o aborto. Não basta saber que a Igreja é contra o aborto, contra a sua legalização, para se poder dizer que se sabe, pois isso é muito pouco, mesmo quase nada.
Deparamo-nos, todavia, com um problema novo. Actualmente, no espectro parlamentar não há nenhum Partido político que não admita o aborto legalizado. Será lícito nestas circunstâncias votar num ou mais Partidos que advoguem uma lei mais restritiva. Contudo, não é obrigatório, uma vez que pode existir ou vir-se a formar algum outro Partido que defenda verdadeiramente o direito à vida. Cuidem-se, pois, os Partidos da maioria em não nos quererem comer por tolos. E cuide a Igreja, uma vez por todas, de chamar às suas responsabilidades e formar adequadamente os políticos católicos.
Nuno Serras Pereira
29. 09. 2004