Não faço ideia como explicar o que aconteceu, mas que aconteceu não o posso negar, ainda que o quisesse, pois as testemunhas são muitas.
Um Domingo, a meio da celebração, entrou um rafeiro tranquilamente pela coxia central da Igreja em que celebrava Missa. Sentou-se diante do altar, guardando embora alguma distância, e virou o focinho para o ambão onde eu proclamava o Evangelho. Ouviu atentamente a homilia, finda a qual se retirou sossegadamente. O mesmo sucedeu no Domingo seguinte e no outro e ainda em mais um. Eu confesso que não estava habituado, até ser ordenado sacerdote, à presença de animais em Igrejas, muito menos durante a celebração da Sagrada Eucaristia. Mas como franciscano que sou, procurava lembrar e honrar a S. Francisco de Assis, fundador da minha Ordem.
Foi por isso que antes de começar as homilias saudava o animal dizendo: O Senhor te dê a paz irmão cão. Esta cortesia não era nenhuma originalidade nem excentricidade minha, mas tão só a repetição das palavras que S. Francisco tinha dirigido ao lobo de Gúbio. O frei Joaquim, um santo e humilde varão de 88 anos, que se distinguia sempre pela sua grandíssima doçura e mansidão para com todos tinha o coração dividido nesta matéria. Por um lado compartilhava do amor de S. Francisco por todas as criaturas, por outro tinha uma noção tão viva da sacralidade da Eucaristia (ao entrar em qualquer Igreja, não obstante a sua idade avançada, ajoelhava e dobrava-se até chegar com a cabeça ao chão, permanecendo assim em adoração, durante largos minutos) que temia que a presença do cão fosse um sinal de irreverência. Como era incapaz de admitir a menor distracção a qualquer parte da Celebração, colocava-se de pé e ia aproximando-se do rafeiro a passos muito pequenos e lentos, como os do ET, enquanto tinha os olhos fixos em mim. Já perto do animal empurrava-o gentilmente com a parte lateral da perna direita, oculta pelo santo hábito, tentando demovê-lo dali. Mas a verdade é que todos os seus esforços eram inúteis pois o cão permanecia extático até ao início do Credo.
Uma vez que a Igreja era relativamente pequena a ninguém poderia passar desapercebido o que acontecia. Aproveitei então para me dirigir ao irmão cão e lhe agradecer o exemplo que dava de atenção à Palavra de Deus e à sua explicação fazendo votos para que todos os católicos que iam à Missa aplicassem o espírito do mesmo modo. Desde essa homilia nunca mais voltou a entrar na nossa Igreja. Não sei se por humildade, poderá ter-se sentido confundido com os louvores, se por dar a sua missão por concluída, se por qualquer outra razão. A verdade é que desde então as pessoas passaram a estar muito mais atentas.
Não posso evidentemente indicar este irmão cão como um exemplo perfeito e acabado, afinal tinha o grave defeito de não assistir à Missa inteira, como fazem muitos que cuidam erradamente cumprir o preceito participando tão só nalgumas partes de Celebração. Neste sentido talvez o animal estivesse a alertar os católicos que chegam sistematicamente atrasados à Missa e que, não obstante, entram com algum espalhafato, distraindo os demais.
Claro que todos sabemos que os animais não têm uso de razão nem sentimentos à maneira de nós os humanos. Mas Deus na Sua Providência misteriosa pode servir-se deles para nos comunicar algum ensinamento ou para nos despertar para alguma realidade importante.
Creio que daqui poderemos tirar alguma lições:
- Se costuma ir à Missa procure chegar a horas, isto é, cinco ou dez minutos antes de começar. Afinal quando vai jantar a casa de um amigo não chega à hora de se sentarem à mesa, mas um pouco antes.
- Quando lá está não deixe que a sua imaginação vagueie por esse mundo fora mas procure concentrar-se na Palavra de Deus e na sua explicação.
- Se não tem o hábito de ir à Missa procure ao menos, como o irmão cão, assistir ao Evangelho e à homilia. Pode ser que assim venha gradualmente a perceber a importância de participar na Missa inteira.
Nuno Serras Pereira
26. 10. 2008