1. Faz amanhã quarenta anos que o Papa Paulo VI publicou a encíclica Humanae Vitae, um documento extraordinário em defesa da bondade e dignidade da vida e da sexualidade humanas. Por ocasião desse acontecimento a Conferência Episcopal Portuguesa elaborou uma excelente Nota Pastoral que infelizmente não teve tradução adequada na prática pastoral. Pelo contrário, esta afastou-se progressiva e resolutamente do ensino autorizado do Santo Padre e dos Bispos a ele unidos. É verdade que um grupo de casais generosos, de início, com grande determinação e perseverança, se empenharam no ensino da regulação natural da fertilidade. Mas, aos poucos, segundo me contaram, depararam com uma espécie de cepticismo sistemático da parte de Bispos e Sacerdotes.
Por mão de alguns daqueles e de outros destes entrou a APF, “sucursal” da IPPF, em Portugal. Avisados embora da natureza perversa dessa organização internacional, ignoraram com insolência o conselho.
Um dos sacerdotes provocou uma cisão num dos grupos iniciais de casais e fundou uma outra associação complacente com uma mentalidade ambígua e inspirada numa argumentação expressamente condenada na encíclica.
Entretanto, um número muito significativo de Pastores optou por uma estratégia de silêncio esmagador na catequese, nas pregações, nas homilias, etc. A ideia era de que se os casais ignorassem a lei Divina ao recorrerem à contracepção embora materialmente pecassem não o faziam formalmente, pelo que não lhes seriam pedidas contas de uma ofensa a Deus. Esta atitude absurda ao ver a lei moral como uma imposição exterior e não como uma exigência interior, inscrita no coração da pessoa, acha que a pessoa é mais livre e mais feliz se viver ignorando a lei de Deus, pelo que a redenção em vez de ser vista como um resgate de um cativeiro é percebida como um agrilhoamento numa escura enxovia espiritual.
Depois, nega, na prática, que Deus, com a Sua graça, possa em nós o que sozinhos não podemos, a saber, vencer o pecado. Por outras palavras, torna vã a Cruz de Cristo, o Seu Sacrifício redentor.
Em terceiro lugar, esquece a Sagrada Escritura quando declara que nos serão pedidas contas das faltas cometidas pelos outros por ignorância, quando a culpa desta é imputável à nossa negligência. Também se deve atribuir a este modo distorcido de pensar o facto de muitos confessores remeterem para consciência do penitente ou do dirigido espiritual, entendendo esta como uma decisão, seja ela qual for, válida ou verdadeira pelo simples facto de a tomar, em vez de procurarem formá-la uma vez que os seus juízos podem ser erróneos.
O passo seguinte foi o de aconselhar, dadas determinadas circunstâncias, o recurso aos contraceptivos enquanto contraceptivos (ou seja, enquanto implicam a escolha contraceptiva). Isto que ao princípio gozava de uma certa discrição, resumindo-se a orientações personalizadas já hoje se pode ouvir em congressos eclesiais, em cursos de preparação para o matrimónio e em outras ocasiões públicas. Aquando do décimo aniversário da Humanae Vitae um, hoje monsenhor, confidenciou-me, com um ar de quem ia salvar a Igreja se não o próprio mundo, que partia para Roma com o objectivo de combater, durante um congresso, o Papa João Paulo II e os seus teólogos. Este colega sempre fez grandes proclamações públicas de fidelidade ao magistério da Igreja enquanto pela calada ia minando esse mesmo magistério.
2. Provavelmente a maioria dos católicos em Portugal, actualmente, não saberá sequer da existência deste documento do Papa Paulo VI e julgará até que a Igreja aprova a contracepção e a esterilização ou que pelos menos é-lhe indiferente. Nos retiros e demais reflexões ou recolecções para casais este tema não é abordado ou não é aprofundado como se nada tivesse a ver com a espiritualidade matrimonial. E, no entanto, Karol Wojtyla poucos meses antes de ser eleito Papa João Paulo II escreveu que -
na verdade que a Humanae Vitae anuncia joga-se o “combate pelo valor e pelo sentido da própria humanidade … é manifesto que a encíclica Humanae Vitae não é somente um documento, mas um acontecimento … parece que como estrato mais profundo deste acontecimento se deva considerar a controvérsia e o combate pelo próprio homem …” (Karol Cardeal Wojtyla [poucos meses antes de ser eleito Papa], La visione antropológica della Humanae Vitae, p. 129, VV. AA., Lateranum- a cura della facoltà di teologia della pontifícia università lateranense, N. S. – Anno XLIV, 1978, n. 1, pp. 372)
-, e já como Pontífice dedicou 3 anos de catequese, nas Audiências Gerais, conhecidas no seu conjunto como a Teologia do Corpo, que o próprio classificou como um comentário à encíclica Humanae Vitae.
O “combate pelo próprio homem” é a pugna pela sua verdade, pela sua identidade.
Aceitar a contracepção enquanto contracepção implica a aceitação de uma concepção dualista do ser humano e praticá-la cinzela-a ou entalha-a na nossa existência falsificando o que somos. O corpo deixa de ser o sacramento da pessoa para se tornar simples material biológico disponível. Esta visão gnóstica elimina a totalidade unificada que constitui o ser imagem de Deus, pois que o homem não é só imagem de Deus enquanto dotado de inteligência e de vontade, de livre arbítrio, mas é-o também na sua corporalidade, imagem da Trindade, enquanto chamado à comunhão na reciprocidade assimétrica de ser varão e mulher. É precisamente na complementaridade da sexualidade que o homem, varão e mulher, no dom e acolhimento recíproco e total de si mesmo no acto conjugal torna de algum modo visível a comunhão invisível e puramente espiritual do Deus Trinitário. A comunhão das pessoas dá-se na união da totalidade unificada das mesmas. Pelo contrário se o corpo é mera biologia que a pessoa pode instrumentalizar, se é somente um corpo não pessoal enganchado numa pessoa não corporal então o homem rejeita-se como imagem, perde, por assim dizer, a sua dimensão icónica e auto-erige-se como deus idolátrico de si mesmo. Incapaz de um êxodo autêntico, encerrado como uma mônada, deixa de procurar o outro enquanto outro e procura-se tão só a si mesmo no outro. A cumplicidade de egoísmos é impotente para gerar comunhão. Este fechamento de si provoca uma fobia à vida humana, um terror daquele que pode vir, um pavor do acolhimento de um dom inesperado. A recusa da procriação é uma rejeição da união. Desprezar o significado procriador é tolher o significado unificador, porque um não se dá sem o outro. “Não separe o homem o que Deus uniu”. Não havendo conjunção ou interpenetração o que resta é o uso ou a manipulação, embora consentida, anuência à própria escravidão, da pessoa cuja dignidade é de si indisponível e inviolável, não sendo por isso lícito ao próprio aliená-la. Mas se a relação base, raiz e fonte de toda a comunidade e sociedade está corrompida e inquinada, sendo não obstante tida como boa, então os efeitos serão devastadores a todos os níveis dessa mesma sociedade, o bem do homem enquanto homem está gravemente ameaçado, o homem enquanto homem está desnaturado. Os resultados são já patentes a todos: uma concepção materialista da vida; um neo-paganismo de massas; um dissolver de casamentos e de famílias; uma queda abissal na natalidade, única na história conhecida da humanidade; uma obsessão compulsiva pelo homicídio/abortamento de crianças inocentes, a intensificação da eugenia e do racismo; a dificuldade crescente de perceber a imoralidade dos actos sodomitas e sacanas (ver dicionário Moraes – ou o Houaiss - sobre o significado deste último termo); a produção de seres humanos em laboratório gerados não pelos pais, reduzidos a depósitos de material biológico, mas sim por técnicos; a congelação de milhões pessoas, na sua fase inicial em azoto líquido e a morte de outros tantos milhões (no mínimo nove milhões) para que nestes trinta anos, faz amanhã, tenham nascido cerca de três milhões de crianças; a experimentação em seres humanos na sua fase embrionária; a clonagem; a eutanásia e o suicídio assistido; a poligamia sucessiva e a reivindicação da simultânea; a exigência de adopção de crianças por pares homossexuais; o infanticídio reivindicado e já praticado em países ocidentais; a reivindicação da pedofilia como amor inter-geracional e da bestialidade como amor inter-espécies, com as respectivas exigências de casamentos (isto é reivindicado em Universidades por PhD’ s); o trans-humanismo, etc.
3. Amanhã faz quarenta anos que o Papa Paulo VI publicou a Humanae Vitae, uma encíclica profética, que como Cristo encontrou forte oposição e que como a Ele se pretendeu aniquilá-la, tanto os de fora como os de dentro, pois Judas, isto é a sua mentalidade, continua presente na Igreja. Lançada às catacumbas do silêncio e do esquecimento, ela grita através das dores patentes do mundo presente. A RR hoje na sua Nota de Abertura lembrou o dia dos avós depois de amanhã, mas sem Humanae Vitae dentro em pouco não haverá praticamente avós porque os netos escasseiam cada vez mais. Creio que foi G. Weigel que escreveu que por dois mil e cinquenta em Itália (Espanha e Portugal estão iguais, quase) sessenta por cento da população não terá nem tios nem primos nem irmãos. A RR a par da Bola Branca que dá várias vezes ao dia bem podia transmitir com o mesmo tempo de antena o Magistério Branco para nos dar a conhece e formar na doutrina que os Santos Padres nos ensinam.
Pela minha parte esforcei-me para que este ano não ficasse esquecido e se organizasse um evento, um congresso que nos abrisse à verdade que Deus nos comunica para nosso bem e salvação. Não consegui encontrar verdadeiros adeptos. Há outras coisas urgentes. Os nossos Bispos estão ocupados com assuntos sérios e graves que não se compadecem de distracções menores. Dentro em pouco teremos uma sede condigna da Conferência Episcopal em Lisboa! Capital da Corte! Essencial para a salvação das almas. À honra de Cristo Amen.
Nuno Serras Pereira
24. 07. 2008