segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O Combate

1. Nos seus cinco sermões sobre as cinco pedras que David recolheu no fresco e murmuroso regato antes de avançar destemido ao encontro do colossal Golias, o P. António Vieira pergunta qual das pedras derribou o enorme gigante. Na sua interpretação simbólica as pedras lisas e brancas significam os estigmas de Cristo, sendo que a que foi direita à testa do monstro era a chaga do lado, isto é, a do coração trespassado. O mesmo é dizer que foi o amor de Cristo, o Seu sagrado coração, que triunfou sobre a ameaça pavorosa que entrevava o amedrontado povo de Deus.

2. Despedindo-nos, agradecidos, do arguto Vieira e da sua sagaz contribuição convirá notar diligentemente que o galhardo eleito, ungido largamente pelo Altíssimo, repugna a rija armadura e as poderosas armas mortíferas, próprias da forte arte guerreira, fruto amadurecido de antigas sabedorias humanas, acumuladas meticulosamente ao longo de aguerridas gerações, por uma dilatada tradição de eruditas e detalhadas planificações militares, de elaborados projectos amplamente penetrados de uma eficiência toda pragmática.

David atenta à novidade da circunstância, apega-se ao essencial e, com a agilidade - um dos dons do Espírito Santo - ligeira de uma frágil gazela, pobre, livre, despojado, de mísera funda na mão, ousa, com determinação firme, lançar, com pontaria certeira, uma pedrada formidável, ao principal, à cabeça medonha, à raiz do tenebroso mal.

3. Podemos colher nesta narração breves indicações preciosas: a) é na humanidade de Cristo e, mais concretamente, na Sua Paixão, que nos encontramos com o amor do Pai: "Quem me vê, vê o Pai." É na contemplação de Cristo que se conhece o Pai; b) é no Seu (de Cristo) coração, na simplicidade do Seu amor, que nos é dada a força para vencer o mal; c) desse mal se triunfa, fundamentalmente, convertendo, pelo mesmo amor, aqueles que por ele são escravizados; d) importa desprendermo-nos do acessório e tradicional (não no sentido de Tradição, mas de tradicionalismo) e apegarmo-nos ao essencial; e) as circunstâncias são acontecimentos através dos quais Deus nos fala e/ou vem ao nosso encontro; f) importa discernir e detectar a origem, a raiz, a cabeça dos problemas do mundo para se poder alcançar adequadamente o objectivo pretendido: a cabeça de Golias pode significar a razão, encerrada no racionalismo, que, mutilando a realidade, tem a pretensão, tendo como referência os impossíveis da mentalidade dominante, de anular a categoria da possibilidade.

Não se trata só da razão fechada à fé ou ao sobrenatural, mas da razão técnica, do poder, manipuladora, fugitiva do ser, cega para a metafísica. Esta razão inventiva, entregue a si própria, produz instrumentos, artefactos, fascinantes, fantásticos, numerosos, admiráveis pela sua utilidade, mas, ultimamente, torna-se violenta, totalitária, agredindo o homem na sua humanidade, seduzindo-o e escravizando-o. A pedra - a fé e o amor - que a penetra representa o escancarar do cárcere, a sua abertura à realidade esplêndida e magnífica na totalidade dos seus factores. O colosso desmedido, desproporcionado, estatelado por terra e degolado pela espada acutilante - a Palavra de Deus - , significará a extracção das deformações da cultura actual, das doutrinas dos "falsos mestres", isto é, a superação da disformidade, do monstruoso, o regresso à proporção ordenada e harmoniosa dos vários factores, na sua justa hierarquia.

__
1 A polémica de Sta. Teresa de Ávila, com algumas inteligências teológicas do seu tempo, em defesa da imprescindibilidade da humanidade de Cristo nos seus escritos, recorre explicitamente ao exemplo e ‘autoridade’ de S. Francisco de Assis para a verdadeira oração e para a alta contemplação pode ser de grande utilidade no auxílio aos que estão contaminados pela New Age.
2 O amor ao "Sagrado Coração de Jesus" é, também, um amor àqueles por quem Ele, amando, deu a vida, isto é, por todos. O amor de Cristo é não só um amor a Ele próprio, mas também a Ele capilarmente presente na sua Igreja, no Seu Corpo. Cristo, como dizia St. Agostinho, já não se pode pensar sozinho, é sempre Ele, a cabeça, e os Seus membros. Pode, ainda, adiantar-se que segundo a hipótese teológica do actual Cristocentrismo ( Inos Biffi, Giacomo Biffi, Angelo Scola, Luigi Giussani, etc.) fomos criados, não através do Verbo em vista de Cristo, mas sim, por Cristo, o Verbo encarnado. Parece, por isso, poder-se afirmar, num certo sentido, que "somos feitos de Cristo", em Cristo e para Cristo. Assim, o amor a Cristo passa inevitavelmente pelo amor à Sua "presença capilar" em todos. Sendo a conversão um acesso à identidade própria.

Nuno Serras Pereira
1999