1. Na vida de S. Francisco de Assis, entre outros, há dois episódios particularmente marcantes. Um refere-se ao encontro com o leproso e o outro ao mandato de Cristo na Igreja de S. Damião.
2. a) Sabe-se como naquele tempo existia o pavor dos leprosos. Quem fosse acometido por esta enfermidade, considerada incurável e altamente contagiosa, era expulso de casa e da cidade. Rejeitado pela família, pelos amigos, pelos concidadãos, o leproso era detestado e, por isso, votado à marginalização e à mais penosa das solidões. Se andava pelos campos tinha que trazer um badalo ao pescoço para avisar os demais da sua presença, de modo a que alertados o pudessem evitar. O corpo desfigurado pela carne ferida e putrefacta, expelindo fortes fedores nauseabundos, suscitava repugnância geral. O próprio S. Francisco, no início, tinha tal asco e horror aos leprosos que quando passava a dois quilómetros de uma leprosaria, num susto, tapava o nariz receoso de que lhe chegasse o cheiro fétido. Ora certo dia indo ele a cavalo pela planície depara-se com um. Apavorado, esporeia a montada pondo-se em fuga veloz. No entretanto, recorda-se do que o Senhor lhe vinha inspirando nos momentos de oração: “Francisco, tudo aquilo que te era amargo se deve tornar doce e tudo aquilo que era doce amargará”. Num repente, puxa as rédeas do cavalo, volta para trás, apeia-se, abraça o leproso, beija-o e deposita-lhe uma esmola generosa no que lhe restava da mão. A partir desse dia S. Francisco começou a servir na leprosaria. O que significa que - e isto é essencial ao propósito da nossa meditação -, a partir desse momento, S. Francisco reconhece aquilo que até então não admitia, isto é, reconhece os leprosos como seres humanos, como pessoas. Seres humanos criados à imagem e semelhança de Deus e portanto dotados de uma dignidade inviolável e sagrada.
Mais tarde, no seu testamento espiritual, S. Francisco escreverá o seguinte: “Quando andava em pecados era-me extremamente amargo dar com os olhos em leprosos, mas um dia o Senhor Deus me conduziu ao meio deles, e eu com eles usei de misericórdia, e aquilo que me era amargo se me transformou em doçura da alma e do corpo”. “Aquilo que me era amargo”, significa, aquilo que o deprimia, que o fazia infeliz; e “se transformou em doçura”, quer dizer que na relação e amizade com os leprosos passou a encontrar gozo, alegria, felicidade. Daí em diante as suas repulsas são outras. Aos leprosos abraça-os, beija-os, lava-lhes o corpo, cura-lhes as feridas, veste-os, alimenta-os – vê neles a Cristo crucificado. O sofrimento pode ser consequência, não do próprio pecado (basta lembrar Job), mas do pecado alheio, como no sofrimento de Cristo, e, também, salvaguardadas as devidas diferenças, o de outros inocentes que completam “na [sua] carne o que falta aos padecimentos de Cristo, pelo seu corpo, que é a Igreja” (S. Paulo). É assim que o leproso, a quem Cristo Se quis comparar na Sagrada Escritura, surge aos olhos do santo como um “ícone” de Cristo e seu cooperador na redenção da humanidade. Por outro lado, Francisco que tanto se sentira atraído pelo pecado ganha-lhe, agora, nojo. O corpo apodrecido pode ser comunhão na cruz de Jesus e, por isso, caminho de ressurreição, de vida nova, e o seu fim é o Céu, mas a alma corrompida pela lepra do pecado, está destinada à condenação e o seu fim é a perdição, o inferno. No entanto, o horror que o santo ganha ao pecado não o leva a evitar os pecadores, pelo contrário, deles se torna mais próximo para os poder curar levando-lhes a salvação de Jesus Cristo. Assim como quem ama o doente, aliando-se a ele, odeia a sua enfermidade combatendo-a, para o restabelecer, assim também S. Francisco consciente da devastação que o mal moral opera no pecador, à pessoa deste se alia, batalhando com a máxima aversão contra o pecado, que a deforma, desfigura e mata.
b) Sabemos como através da História houve tantas épocas em que se padecia uma determinada cegueira que impedia o reconhecimento de alguns seres humanos como pessoas. Na altura de S. Francisco eram os leprosos, tempos houve em que era o estrangeiro; ou o recém-nascido que, na antiga Grécia e noutros povos, podia ser morto pelos pais; ou o escravo que ainda no século XIX, por sentença do Supremo Tribunal dos EUA, não era considerado pessoa; ou a mulher, a quem não eram reconhecidos direitos básicos, e tantas vezes nalguns países ainda o não são; ou o judeu e o cigano, exterminados no horrendo holocausto nazi, etc., etc.
Ora quem é que hoje, principalmente, não é reconhecido por aquilo que é? Há, certamente, categorias variadas de seres humanos cuja dignidade é ignorada e espezinhada. Por exemplo, povos inteiros de países miseráveis ou os imigrantes famintos, perseguidos, desenraizados das famílias, escravizados, etc., etc.. Todavia, apesar de tudo, todos esses nossos irmãos têm uma multidão de gente que os defende em organizações, em instituições, na comunicação social, na música, na literatura, no cinema, nos parlamentos, nos governos, nos partidos políticos, na sociedade civil e têm a opinião pública por eles, etc.. Por isso perguntei principalmente.
Ora nos tempos que correm, quem esteja minimamente informado será levado a concordar que principalmente quem não é reconhecido por aquilo que é são os nascituros: os bebés que habitam no seio de suas mães, as crianças ainda não nascidas, os embriões humanos congelados ou submetidos a experimentação, etc.. Por isso os governos e os parlamentos aprovam leis injustas, que não só renunciam a defender e tutelar estes nossos irmãos mais pequeninos, inocentes e indefesos como tornam o Estado executor da suas mortes, através dos seus serviços de saúde, os quais deveriam existir para curar e não para matar. Em 30 anos de legalização do aborto, no século XX, foram propositadamente exterminados, através do feticídio cirúrgico mil milhões de seres humanos, antes de nascerem. Isto sem contar com os abortos mecânicos ou químicos provocados por instrumentos ou substâncias falsamente apresentadas como contraceptivos, tais como o DIU e a pílula do dia seguinte; e a multidão incontável de seres humanos, na sua fase embrionária, expostos deliberadamente à morte, em nome de técnicas de reprodução artificial, ou congelados e submetidos às mais bárbaras experimentações. Também estes são rigorosamente, tal como os leprosos, os judeus, as mulheres jovens e adultas, os imigrantes, os negros, os escravos, seres humanos criados à imagem e semelhança de Deus, e portanto dotados de uma dignidade inviolável e sagrada. Tanto mais sagrada quanto são eminentemente vulneráveis e inocentes. Por isso, “de entre todos os crimes que o homem pode cometer contra a vida, o aborto provocado apresenta características que o tornam particularmente perverso e abominável” (João Paulo II – Evangelium Vitae, 58).
Assim, hoje, na sua festa, creio que S. Francisco nos está a convidar para nos tornar-mos mais próximos destes nossos minúsculos irmãos escondidos, de modo a que quando chegar o nosso dia, de encontro com o Senhor glorioso, também possamos escutar “o que fizestes ao mais pequenino dos meus irmãos a Mim mesmo o fizestes ... vinde benditos do meu Pai ... ”. Que S. Francisco nos inspire e nos auxilie a darmos as respostas urgentes e adequadas a tão desmedido problema.
3. a) Intimamente ligado a este problema há um outro, também desmesurado, que pode ser iluminado pelo mandato de Cristo, em S. Damião, como referi no início. Todos nos recordaremos de que estando S. Francisco em oração diante do Crucifixo, ouve a voz de Cristo que lhe diz “Francisco, vai e reconstrói a minha casa que ameaça ruína”. S. Francisco olhou à sua volta e observou que a pequena Igreja precisava, com efeito, de reconstrução. Imediatamente, pois sempre foi sua característica obedecer prontamente àquilo que percebia ser a vontade de Deus, pôs as mãos à obra. Mais tarde, virá a entender com grande clareza que o mandato do Senhor não era só nem principalmente para a reedificação da Igrejinha de S. Damião, mas sim para a reconstrução da Igreja constituída por pedras vivas, homens e mulheres do seu tempo, que se esboroavam e esbarrondavam em caminhos arredios do Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Importava tocar-lhes o coração, movê-los ao arrependimento, suscitar-lhes a conversão, ampará-los no caminho para Cristo. Porque só em Cristo é que somos, isto é, só n’Ele é que alcançamos a nossa verdadeira identidade, é que conseguimos ser o que realmente somos chamados a ser. É assim que dizer, converte-te, significa, num certo sentido, dizer torna-te aquilo que és.
Temos, pois, que a casa de Deus somos nós, é o ser humano. Ou porque fomos baptizados e, por isso, consagrados como verdadeiros Templos de Deus, ou porque somos chamados a sê-lo.
b) Ora, tenho para mim que, nos dias de hoje, as casas em ruínas são, fundamentalmente, aquelas mulheres destroçadas e desgraçadas pelos abortos que praticaram. Não poucas vezes foram enganadas, ou pressionadas, se não mesmo violentadas, por circunstâncias muito difíceis, mesmo dramáticas, ou então impelidas por um momento de leviandade, ou de precipitação, por motivos graves ou por inconsciência, por frio calculismo ou por grande confusão – há de tudo. Não estamos aqui para julgar ninguém, o juízo só a Deus pertence, mas sim para ajudar. Estas são as casas que precisamos de reconstruir. A primeira casa de qualquer um de nós é o corpo da nossa mãe. Esse foi o lugar que Deus quis para nós nos primeiros tempos de vida, no início da aventura da nossa existência. Entre a mãe e o filho que a habita há um vínculo e uma união tal, que o que se faz a um se faz ao outro e o que se deixa de fazer a um se deixa de fazer ao outro. Se se ampara a mãe ampara-se o filho; se se desleixa a mãe desleixa-se o filho; se se agride o filho agride-se a mãe; se se acomete a mãe acomete-se o filho; se se auxilia a mãe auxilia-se o filho; se se protege o filho protege-se a mãe, etc. É, pois, urgente erradicar aquela mentalidade dominante que incute na fantasia da mulher o filho como um inimigo de que se deve defender. Pelo contrário, há uma aliança e uma cumplicidade naturais entre os dois, e importa ajudar a mulher a reconhecer a maternidade como realização profunda da sua identidade: “A maternidade comporta uma comunhão especial com o mistério da vida, que amadurece no seio da mulher. ... Este modo único de contacto com o novo homem que se está formando, cria, por sua vez, uma atitude tal para com o homem - não só para com o próprio filho, mas para com o homem em geral - que caracteriza profundamente toda a personalidade da mulher. Com efeito, a mãe acolhe e leva dentro de si um outro, proporciona-lhe forma de crescer no seu seio, dá-lhe espaço, respeitando-o na sua diferença. Deste modo, a mulher percebe e ensina que as relações humanas são autênticas quando se abrem ao acolhimento da outra pessoa, reconhecida e amada pela dignidade que lhe advém do facto mesmo de ser pessoa e não de outros factores, como a utilidade, a força, a inteligência, a beleza, a saúde.” (João Paulo II, Evangelium Vitae, 99).
Ora hoje é claro, para quem esteja minimamente informado, de que o aborto propositado tem consequências devastadoras para a mulher que o provocou. Eis algumas das possíveis consequências nas mulheres que abortam em “estabelecimentos de saúde legal¬mente autorizados” (note-se o eufemismo para as casas de extermínio): cancro de mama, desprezo por si próprias, pensamentos suicidas, pesadelos, luto, culpabilidade, fobias, comportamentos compulsivos, dificuldades sexuais e no relacionamento com pessoas do outro sexo, agressividade, problemas de relação com as crianças, sensação de vazio, quedas no alcoolismo, na droga e na promiscuidade sexual, esterilidade, abortos espontâneos, gravidezes ectópicas, hemorragias e infecções, perfurações dos úteros, insónias, exaustão, nervosismo, peritonites, febres e suores frios, etc. - aumento de morte materna.
c) É, pois, necessário que estas nossas irmãs, afundadas na dor, possam encontrar na Igreja e, em especial, nos seguidores de S. Francisco, todo o amparo, compreensão, perdão e misericórdia de que necessitam. E assim, serão por Deus, com a nossa cooperação, reconstruídas, pedras vivas e pode ser que santas no Templo Santo do “Altíssimo, Omnipotente e Bom Senhor”. Como escreveu João Paulo II: “Um pensamento especial quereria reservá-lo para vós, mulheres, que recorrestes ao aborto. A Igreja está a par dos numerosos condicionalismos que poderiam ter influído sobre a vossa decisão, e não duvida que, em muitos casos, se tratou de uma decisão difícil, talvez dramática. Provavelmente a ferida no vosso espírito ainda não está sarada. Na realidade, aquilo que aconteceu, foi e permanece profundamente injusto. Mas não vos deixeis cair no desânimo, nem percais a esperança. Sabei, antes, compreender o que se verificou e interpretai-o em toda a sua verdade. Se não o fizestes ainda, abri-vos com humildade e confiança ao arrependimento: o Pai de toda a misericórdia espera-vos para vos oferecer o seu perdão e a sua paz no sacramento da Reconciliação. Dar-vos-eis conta de que nada está perdido, e podereis pedir perdão também ao vosso filho que agora vive no Senhor. Ajudadas pelo conselho e pela solidariedade de pessoas amigas e competentes, podereis contar-vos, com o vosso doloroso testemunho, entre os mais eloquentes defensores do direito de todos à vida.
Através do vosso compromisso a favor da vida, coroado eventualmente com o nascimento de novos filhos e exercido através do acolhimento e atenção a quem está mais carecido de solidariedade, sereis artífices de um novo modo de olhar a vida do homem.” (João Paulo II, Evangelium Vitae, 99).
Que S. Francisco com a sua intercessão nos alcance a graça de encontrar a disponibilidade e a determinação para prestarmos mais este serviço a Deus, que quer que todas as casas por Ele criadas, por Ele sejam habitadas.
Nuno Serras Pereira
04. 10. 2001